O Brasil é um caldeirão de ódio prestes a explodir. Cozinha esse caldo faz tempo, desde os primeiros portugueses, e as atuais gerações não conseguiram dirimir, sequer diminuir a fervura. Pior: em boa medida, deixamos de tentar. Esse ódio com o inferior (socialmente) vem de cima, como paradigmático, e desce até o ponto onde não há mais ninguém abaixo para humilhar. O questionamento ao de cima surge parca e precariamente, resta a revolta difusa a reforçar a ordem social. Esboços de reação às injustiças sociais não raro se desvirtuam rapidamente, guiados por essa mesma cultura do ódio, da necessidade de se achar um inimigo, um Outro estereotipado, personificação do Mal, a quem é imputado toda a culpa - pelos males a esses que, por conseqüência lógica, são do Bem. A outra face da mesma moeda - e ai de quem não ajoelhar e rezar por esse novo ódio, só pode ser favorável ao outro, quem não está conosco está contra nós.
Esta semana, esperava com minha mãe e meu irmão a hora de embarcarem, quando se aproxima um homem e puxa conversa. Pergunta se somos descendentes de poloneses, e diante da (óbvia) afirmativa passa a fazer elogios aos polacos e ao papa fdp. Não tarda, introduz novo assunto: "o atual problema do Brasil". Já imagino que vai falar do Lula, do PT e da corrupção. Me equivoco: não estou diante de um homem de bem de classe média, mas de alguém do "povo" - esse que certa esquerda Peter Pan julga ontologicamente como "do Bem". Começa a falar mal de nigerianos e haitianos, a quem classifica como bandidos - "todos bandidos, tudo bandido", repete. Como bem assinala Pedro Serrano em Autoritarismo e golpes na América Latina, "bandido" é a versão tupiniquim para "judeu" na Alemanha nazista, a senha para rebaixar a pessoa da condição de ser humano, livre conduto para qualquer atrocidade extra-legal: "o bandido não é tratado o cidadão que erra, mas como um inimigo da sociedade, que não tem reconhecido sequer os direitos fundamentais inerentes à condição de ser humano. Nesse contexto, sua vida pode ser suprimida" (p. 152).
Nosso interlocutor da rodoviária, periférico (ainda que branco), talvez esteja em momento raro de sua vida: se sente um honrado cidadão brasileiro, alguém a quem é garantido o direito de odiar e pregar a eliminação do subalterno, sem medo de reação (afinal, imigrantes são sub-humanos, estão abaixo dele, sub-cidadão). Talvez pela primeira vez na vida ele se sinta alguém, integrante da irmandade da Casa-Grande, um ser humano com direito, um, que seja: o direito de aniquilar o Outro. Claro, não percebe que uma vez aniquilado quem está abaixo, passará a ser ele o próximo estorvo à felicidade geral da nação, o novo inimigo, voltará à condição de bandido aos olhos dos cidadãos de bem e dos apresentadores de tevê dos programas de fim de tarde. Não percebe que só temporariamente perdeu a pecha de bandido - por mais que não tivesse cometido algum crime.
Na internet, na linha do tempo do meu Fakebook, acadêmicos das diversas matizes da esquerda se atacam mutuamente em acusações de quem é o culpado do ponto onde estamos (o PT, a falta de união, o homem machista, os evangélicos, algum nome da direita que está em voga na mídia). É sempre mais fácil dizer que a culpa é do outro, desobriga de se comprometer em alternativas factíveis, e permite que se siga ignorando que o fracasso é antes de tudo seu (meu, nosso), é de toda a esquerda, de todo o campo progressista. Paulo Freire é só um nome pomposo para trabalhos teóricos, há muito parece não ter realidade prática no Brasil - que chafurda no ódio e na ignorância.
30 de dezembro de 2016