terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Globeleza vestida em 2017 pode ser um Cavalo de Tróia

No meu Fakebook pulula a notícia de que em 2017 a Globeleza aparece vestida - e não em um sumário tapa-sexo. Quem compartilha a notícia a apresenta em tom positivo, como vitória feminista pela igualdade de gênero. Olhando o fato em si, descontextualizado, realmente, vitória. Entretanto, ao tentar entender o que poderia ter levado a essa mudança em 2017, há muito mais motivos para se preocupar que para comemorar.
Fosse 2010 e, definitivamente, poderíamos ver as vestes da Globeleza como avanço na desconstrução do estereótipo feminino de corpo-objeto para satisfação sexual alheia, em nome de um protagonismo político da mulher. Convém lembrar: na Alemanha, Merkel seguia firme e intocável; na Argentina e no Chile, Kirchner e Bachelet ocupavam o executivo federal e enfrentavam, dentro da moldura liberal-burguesa, os setores mais conservadores de seus países; no Brasil, elegia-se a primeira mulher para a presidência desta república bananeira (que então achava que podia ser minimamente independente), e na metrópole, o segundo cargo mais importante era ocupado por uma mulher (muitos atribuem a Clinton, por sinal, o caos no mundo árabe e os retrocessos na América Latina). Então a Globeleza seguia sem roupa, anunciando o que a imprensa diz ser a festa mais popular do Brasil (diz ela mais que as festas juninas), e oferecendo seu corpo para desfrute alheio, chamariz para as belezas naturais desta terra que os civilizados europeus tanto gostam de desfrutar e gozar, desde 1500.
Mas estamos em 2017. Na Europa até cresce o protagonismo político das mulheres na França, Inglaterra e mesmo na Alemanha, em que a extrema-direita é encampada por delicadas figuras maternais a proferir discurso de ódio contra o imigrante, o estrangeiro e o muçulmano. Na Argentina, Kirchner é perseguida por ter sido eleita presidenta (uma versão mirim do que fazem com Lula aqui); enquanto no Brasil e nos EUA são eleitos para a presidência dois homens misóginos - nos Estados Unidos eleito democraticamente, no Brasil, eleito por um conchavo entre donos do poder, da bufunfa e da mídia, já que o povo votara "errado" em 2014, na candidata que cidadãos e cidadãs de bem classificavam como "vaca", "vadia", e outros termos lisonjeiros. Não só isso: não temos em Pindorama apenas um governo de homens, trata-se declaradamente de um governo machista, em que o papel da mulher é o de bibêlo mudo para enfeite do ambiente. Marcela Temer, anuncia a Veja, é a nova tentativa de marketing do governo golpista, não por qualquer traço marcante de personalidade ou aguda inteligência, mas por ser "bela, recatada e do lar" (e eu acrescentaria: uma oportunista do machismo) - e impedida de falar. Ao mesmo tempo, cresce o número de evangélicos ocupando cargos eletivos com a bandeira do proselitismo religioso, generalizado na pauta dos bons costumes e da moral (claro, para esse grupo pastor estuprar não é algo que atente a moral). É neste contexto, em que a mulher perde espaço na política para pautas conservadoras e de submissão da mulher a papéis "tradicionais", que a Globeleza aparece vestida.
Ainda que se tenha vestido a Globeleza para atender aos segmentos religiosos, majoritariamente aos evangélicos, não se poderia considerar isso positivo? Até poderia - eu mesmo achei simpática a idéia de mostrar o carnaval em suas diversas manifestações, as quais incluem, muitas vezes, pesadas indumentárias (e essa abertura da Globo à diversidade regional pode ser sintoma de crise de seu poder de afirmação de uma pretensa unidade nacional). A questão é tudo o que isso implica de negativo em 2017, que não pode ser ignorado por quem ainda preza pelo razoável e pela sensatez. Faço uma analogia: diante do catastrófico governo Dilma, sua saída poderia ser considerada positiva - desde que abstraiamos que tal saída se deu via golpe de Estado e levou ao Planalto uma corja de corsários sabujos do Tio Sam, que conseguem fazer com que sintamos saudades de Dilma, Mercadante, Levy e cia. Daí que há pouco a comemorar entre aqueles que defendem os direitos da mulheres o que se passa em nossos televisores.
A Globeleza de roupa não merece comemoração e deve fazer com que aumentemos os questionamentos. A que mais cabe neste 2017: que papel queremos às mulheres em nossa sociedade? Escolher entre as opções "corpo para consumo" e "submissa para a obediência" me parece uma falsa escolha - na verdade, não há exatamente escolha, mas construções coletivas, que devem ser protagonizada pelas próprias mulheres, que podem, sim, querer para si uma dessas opções. E outra questão, que eu faria em 2010, e ainda vale este ano: não é hora de retomarmos a antropofagia modernista e, ao invés de tentarmos vestir o índio, despirmos o europeu? Antes de cobrirmos a Globeleza, não seria mais interessante tirar a roupa de todo mundo - homens, mulheres, trans, velhas, adultos, crianças, brancas, negros, índios, asiáticas, gordas, magros - , como se fosse natural que por baixo da roupa houvesse um corpo (e não um pecado), e que num calor de 35, 40 graus fosse natural haver quem se sentisse mais confortável em trajes sumários, sem que isso implicasse em qualquer atento à moral?
Espero estar errado, mas a Globeleza vestida em 2017 me soa a chegada no Brasil do século XXI daquela civilidade que fez a Alemanha grande na década de 1930.

10 de janeiro de 2017


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Limpar a cidade

Em minha última crônica [http://bit.ly/cG170103] falei da técnica oriental de limpar o chão, que aprendi com a Bia Sano, durante a residência artística que fiz com o dançarino Eduardo Fukushima, e que fez com que criasse uma outra relação com o local de ensaio, que me irmanasse dele. Do ato de limpar, arrisquei em minha crônica, seria possível estabelecer novas relações, com o espaço e com as pessoas - para muito além de não jogar lixo no chão.
Nada mais distante disso que as aparições populistas do lobbysta e grileiro de terras, atual prefeito de São Paulo, João Doria Junior. 
Se a técnica japonesa faz despertar uma atenção cuidadosa pelo local que freqüentamos, permitindo percebê-lo em outras dimensões - até mesmo afetivas -, e dando chance para que nos abramos ao novo, o gesto de Doria Junior vestido de gari, empunhando uma vassoura pela primeira vez na vida, para ser fotografado por publicitários travestidos de jornalistas, não desperta atenção, não desperta cuidado, não desperta abertura, não desperta valorização de nada que não da figura do prefeito e da sua concepção de "cidade linda" - limpa, higienista, sem pobres, sem discordantes ou dissonantes, sem povo, e ainda com Romero Brito e Bia Doria.
Vestido para o trabalho reificado - o de gari -, Doria Junior passa o recado de que agora ele vai comandar um exército de faxineiros, prontos para limpar a sujeira feita pelos cidadãos de mal - aqueles que emporcalham a cidade jogando lixo ou com sua simples presença. O horário de seu primeiro happening midiático também foi propício à mensagem a ser passada: seis da manhã. Deixa avisado: logo cedo, durante a madrugada, antes da maioria das pessoas saírem de casa, será feita a faxina da cidade daquilo que fere o bom gosto dos cidadãos de bem. Não por acaso, alguns outros atos de "embelezamento" da cidade consistiram em esconder moradores de rua e criticar pixadores - desconfio que se ele desse a cada pixador os valores que sua mulher ganhou do governo, via leis de incentivo, para fazer "arte", o pixo sucumbiria vertiginosamente.
Perguntas retóricas: que abertura teve o prefeito para a cidade? Que olhar teve para os moradores de rua que vivem sob viadutos - sem dúvida uma questão das mais complexas a ser lidada, já que muitos preferem morar na rua? Que relação afetiva é capaz de ele criar com a cidade que vê passar pela janela de seu Audi de 200 mil reais (novo, já que não está na sua declaração de bens da campanha)? Conseguiu minimamente entender algo da vida daqueles garis que ganham por mês menos do que ele gasta em um almoço, e que fizeram figuração no seu show? (Tenho medo de resposta afirmativa a essa pergunta, e por isso ele achar que o salário de um gari é o suficiente, até demais).
Ficássemos por aqui, e eu até diria que está tudo bem, o populista tacanho de antanho repaginado de playboy semi-collorido. Convém lembrar, entretanto, que Doria Junior não é apenas representante da direita, ele é o atual novo nome da extrema-direita brasileira deste início de século - junto com seu padrinho, o Santo Alckmin. Se em 1930 usava-se a retórica de "ratos", atualmente a palavra da moda da extrema-direita é "lixo", usada para desqualificar o diferente e negá-lo não apenas a humanidade como o direito a ser considerado um vivente. É para esse cidadão de bem (que defende chacinas e atrocidades e logo mais estará aplaudindo câmaras de gás) que Doria Junior se veste de gari - convém lembrar, mesmo depois de eleito, ele não abandonou o palanque e o discurso de ódio que foi um dos que embasou sua campanha -, mais que para os órfãos de Jânio, Adhemar de Barros e Paulo Maluf.
As imagens de Doria Junior de gari, fingindo que varre, me fizeram lembrar das suspeitas de que o Papa Francisco andava se disfarçando de padre anônimo, para dar acolhida a sem-tetos, nas madrugadas romanas. Propaganda é arma da direita. Não por acaso, mancheteia a Folha de São Paulo, um dos porta-vozes da extrema-direita brasileira, no dia seguinte à posse do prefeito: "Doria assume SP, promete conciliação e diz que recuará quando necessário". Fosse sincera, a manchete seria: "Doria assume SP, defende adesionismo irrestrito e diz que recuará quando isso afetar sua imagem". Quem sabe não possamos, finalmente, mudar o hino da cidade para aquela canção dos anos 80 que tão bem encarna o fascismo paulista: "Dentro de mim sai um monstro/ Não é o bem, nem o mal/ É apenas indiferença/ É apenas ódio mortal/ Não quero ver mais essa gente feia/ Não quero ver mais os ignorantes/ Eu quero ver gente da minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue". Em algo concordamos: "Pobre São Paulo/ Pobre paulista".

09 de janeiro de 2017