quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Dizia minha avó: "Quem muito prega pouco crê"

Carente de um ganha-pão, estou em alguns grupos do Fakebook de pessoas em situação semelhante, um deles de vagas para professores (no meu caso, de filosofia e sociologia). Aí ontem, já que o mês fechou sem maiores perspectivas, um dos integrantes, incomodado com todas as imprecações a Jesus, resolveu pedir que as pessoas se limitassem a usar o grupo para divulgar vagas e não correntes de orações e afins, por respeito a quem não é evangélico ou cristão e mesmo por respeito à profissão de professor - que idealmente seria a de ensinar e não de doutrinar. Como era de se esperar, uma guerra se instaurou nos comentários.
Por questão de saúde, evito entrar em discussões de internet e, salvo em crônicas minhas, nunca leio os comentários - no máximo, passo o olho em três ou quatro, para amostragem. Na amostragem dessa postagem, o esperado: de um lado gente cobrando laicidade e tolerância, ou provocando com convites para rituais de magia negra; de outro, gente cobrando "os incomodados que se retirem", defendendo uma singular tolerância religiosa combinada com conversão compulsória ao cristianismo, e ataques a todos que não se prontifiquem cristão temerosos de um deus todo filho da puta.
Também eu quis contribuir com o elevado debate, e citei frase que há tempos uso, e que a cada dia acho mais pertinente, diante da reação de quem a ouve ou lê. Para dar uma suavizada, não solto a máximo como uma verdade pronta: começo com o aviso que quem dizia era minha falecida avó, mulher que acreditava em deus, freqüentava a missa e era boa observadora, para, ao fim, soltar a lapidar "quem muito prega pouco crê". Na verdade, a autora da frase é minha mãe, que volta e meia vem com umas máximas geniais e precisas, mas uso minha falecida avó com o intuito de diminuir um pouco a virulência dos esperados ataques: afinal, vó tem aquela coisa de sabedoria dos antigos, não foi corrompida pela depravação destes tempos (minha mãe, por exemplo, não vê qualquer problema em alguém ser homossexual), até por já estar morta - sem contar a esperança de um respeito a mais que os mortos costumam ter. Que nada!
Há uns dois anos, a caminho de uma missão pastoral social da igreja católica (pois é, sou um ateu que colabora com o trabalho social da igreja - já até aprendi o pai nosso), falei isso para um chato que insistia que eu devia aceitar a palavra de deus - no caso, um santinho mal feito que ele entregava a quem ia no banheiro da parada do ônibus. Ficou possuído, temi que fosse tentar me bater, porém se limitou a vociferar contra minha família e avisou que logo eu estaria no inferno fazendo companhia a minha avó. Ainda bem que deus é amor, porque se fosse ódio...
No grupo de professores, em vista do meu comentário, recebi pistas sobre a pretensa vida da minha avó, antes de ter sido mandada por um deus ressentido e raivoso ao encontro de um diabo tolerante e acolhedor - tudo por causa da mentira do neto sobre a frase da filha. Enfim, me informam, pessoas que nunca vi e que sequer são da mesma cidade que a falecida dona Maria, que ela teria sido mulher de vida fácil (sic), ou pelo menos mulher de vida boa. Da vida fácil, gosto de um vídeo do Karnal com respostas para isso, mas ouso dizer que ainda tivesse sido puta, vida fácil não teve - como a grande maioria das pessoas (homens, mulheres ou trans) que acabam seguindo pela profissão mais velha da Terra. Ouso mais, e sem achar nenhum demérito em quem trabalha como prestadora de serviço sexuais - pelo contrário -, afirmo que minha avó, dona-de-casa semi-analfabeta, nunca tentou a vida por esse ramo: era de uma época de moral mais rigorosa e não se desviou do caminho da igreja (apesar da Bíblia indicar sendas contrárias), tanto que passou por todos os apertos financeiros pelo qual passou. Mulher de vida boa, dessas cuja maior preocupação é a unha e a roupa da estação, também acho que quem fez o comentário deve ter confundido minha avó, pois não me consta que ela passava os dias no salão de beleza e em chás em clubes com as amigas, enquanto o marido assentava tijolo em troca de um salário de fome e as filhas brincavam de bóia-frias desde as cinco da manhã até o pôr do sol para conseguir um complemento à renda do patriarca que garantisse a sobrevivência da família. E por falar em semi-analfabetismo, a professora que falou da vida rósea de minha avó não sabia sequer pontuar sua frase - talvez porque estivesse ocupada demais a orar, não teve tempo para estudar enquanto comprava o diploma.
Não sei se por sorte ou azar, antes de saber mais sobre minha avó - devo deixar registrado, houve um rapaz que assegurou a sapiência de minha avó, que nesse caso é da minha mãe -, a postagem da discórdia foi excluída do grupo. Se da minha avó, não levei muito a sério as informações recebidas, sobre o nível dos professores que educam as próximas gerações, disso tive mais uma alarmante demonstração.
Em tempo: quem começou o furdunço todo era um filósofo: prova da necessidade premente de aprovar logo o "escola sem partido" e outras leis do gênero (melhor, sem gênero, porque gênero é ditadura gay-feminista), de modo a garantir uma educação ordeira, cristã e doutrinadora, sem qualquer risco de questionamento das ordens do pastor ou apelos a laicidade, tolerância com o diferente e respeito com o espaço público. A Idade Média européia, com suas fogueiras da verdade, nos espera na próxima esquina.

01 de fevereiro de 2017


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Literatura, publicidade e queijo

Todo mundo sabe que uma das funções da publicidade - imprescindível para a sobrevivência do sistema capitalista de produção de lixo sob o qual vivemos - é a criação de pseudo-necessidades, falsos desejos nos cidadãos do espetáculo. O "todo mundo" do início é forma de dizer: na verdade poucos sabem e entendem tal mecanismo, e mesmo entre os conhecedores, não raro esquecemos e vamos na onda da propaganda. Pois digo que a literatura também é criadora de necessidades e desejos alienígenas em seus leitores - e não me refiro à necessidade de mais literatura que as boas obras ensejam. Não que isso me seja novidade: quando entrei em filosofia, no início do século, obrigado a cursar uma língua clássica, optei por latim e não por grego, apesar de meu maior interesse por Atenas frente a Roma: é que latim era a língua falada por um dos Buendía, em Cem Anos de Solidão, do García Marquez, por isso a escolha (e só não me tornei um latinista por obra do destino que me pôs, logo no segundo semestre, nas mãos de um professor claramente perverso, que tinha como objetivo de vida desestimular qualquer aluno que se destacasse).
Nas últimas duas semanas o livro que esteve a mexer com meus desejos foi Queijo, de Willem Elsschot. Nunca tinha ouvido falar do livro, muito menos do autor: comprei-o numa dessas feiras de dois reais. O que me levou à aquisição, além do preço irrisório, foi a apresentação do Marcelino Freire - esse, sim, eu conheço. Por ser de bolso e de capítulos pequenos, escolhi pra ser minha literatura no metrô. Trata-se da história de um escriturário de um estaleiro, Franz Laarmans, que de repente se torna empresário, ao ter a oportunidade - arranjada por um amigo influente - de ser o representante de queijo holandês para a Bélgica e o Grão-Ducado de Luxemburgo. Boa parte do livro é Laarmans a abrir sua firma e tentar comercializar os cremosos queijos edam, vindos diretos da Holanda. Várias cenas Elsschot descreve o cremoso edam sendo cortado e oferecido a amigos, aos filhos, a clientes. E eu, apesar de não ter idéia do que seja um queijo edam, adoro queijo e fiquei a salivar diante de várias páginas. Me vinha à mente um queijo que eu vira com minha mãe, fim do ano passado, quando a levei para conhecer a zona. Era uma embalagem bonita, em que se via um queijo mais amarelo e firme por fora, e cremoso por dentro. Hesitamos em levá-lo, e preferimos um garantido emmental. Esta semana, tentado pelos cremosos edam da Grapfa, fui à zona (cerealista, se é que alguém ainda não havia entendido) comprar o maldito queijo, que não era um cremoso edam holandês - na verdade, nem edam, nem holandês, mas era cremoso. Por sorte, também não era dos mais caros.
Mal chego em casa, abro a embalagem. Estou salivante, desejoso. A embalagem não é de metal, como aparentava com o rótulo, mas de plástico. O queijo está envolvido em outro plástico. Ao tirá-lo, o cheiro não é ruim, tampouco dos melhores - tudo bem, os edam da Grapfa fediam muito, segundo o narrador de Queijo. Corto uma fatia, o queijo é cremoso por dentro e firme por fora, como mostrava a embalagem. Mas a tal fatia não mata minha vontade: por fora, um queijo mussarela de qualidade ordinária; por dentro, um composto de prato e mussarela e sei lá o que mais que lembra um requeijão. Não é que seja ruim, só não é bom. Quer dizer, é ruinzinho, ainda que não incomestível - eu devia ter desconfiado pelo preço. Olho para o queijo que resta: é uma peça de novecentos gramas - calculo que vai ser difícil dar conta dele. Para piorar: falta apenas um capítulo para eu terminar o livro, vou ter eu mesmo inventar ou lembrar de alguma historieta com queijo cremoso que me desperte vontade de encarar esse frustrante que comprei.

PS: ao buscar foto para esta crônica, descubro o que é um edam: parece um emmental.

24 de janeiro de 2017