segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Flores negras nos subterrâneos dos brancos [Diálogos com a dança]

O que guardam os subterraneos de nossa sociedade, de nossa historia, de nosso ser? O quanto esses subterrâneos sugam da vida de pessoas tidas por descartáveis, o quanto fertilizam o que os proprietários das terras desejavam que fosse árido e estéril, de fértil basta os lucros do agrobusiness?
Subterrâneo, da Gumboot Dance Brasil, é um espetáculo de lavar a alma, de hipnotizar pelo trabalho de corpo e fazer acreditar que nos subterrâneos da sociedade e da história fervem devires que não enxergamos na superfície - e por isso devemos seguir lutando, a despeito das últimas notícias que tentam nos desalentar.
Dos escravos aos mineiros, a miséria de uma vida transformada em instrumento para o enriquecimento de algumas poucas pessoas e algumas poucas nações se torna em uma cultura rica, potente, forte e delicada, instrumento de afirmação de um povo - um povo difuso, sem limites territoriais e étnicos bem delimitados e por isso muito mais perigoso aos nacionalismos ocidentais.
Os grilhões da escravidão transformados em chocalhos, corpos negros transformados de objetos de trabalho em sujeitos de cultura: a humanidade pulsa e resiste onde homens brancos (e seus asseclas) gostariam que restasse apenas o conformismo e a força bruta instrumentalizada para seus lucros. Se os negros foram forçados a migrar para a América, servir de mão de obra em plantações brancas, que esta terra dê origem a uma nova cultura, de resistência e afirmação, mescla do passado que não conseguiram apagar e de possibilidades de futuro que senhores tentam em vão negar, fermentado nos nos vãos dessa sociedade racista, na luta e no reconhecimento da dor do próximo - é isso que me passa a primeira parte do espetáculo.
Subterrâneo me deu a forte impressão de que, ainda que sem contato direto com os povos andinos, os negros aportados no dito novo mundo souberam fazer do novo solo uma Pachamama: se não há ancestralidades milenares aqui, o suor e o sangue da primeira geração já teria bastado para fazer desta terra um solo sagrado e de pertencimento. 
Não por acaso, nestes tempos de golpe e neofascismos, os brasileiros que gritaram e gritam que querem seu país de volta não tem com a terra relação além de mercantil e mal vêem a hora para migrar para alguma terra branca - Miami ou Portugal (esquerdista). Nossa intelectualidade de esquerda, branca, não fica muito longe. Se não se reconhece no chauvinismo de seus pares egressos da academia, na primeira oportunidade tratam de migrar para os países centrais, em seus doutorados sanduíches que se transformam em oportunidade de empregos além-mar. É nos EUA e Europa onde estariam as melhores cabeças, dizem - coincidentemente brancas ou que pensam como brancos. Também eu tenho meus cacoetes de formação branca, e junto da tensão dos gestos e do ritmo do tambor, a primeira parte de Subterrâneo tem uma leveza que me remeteu aos barrocos Vivaldi e Boccherini.
A segunda parte do espetáculo, onde entram em cena mineiros no lugar de escravos, tão brutalizados e instrumentalizados quanto estes, me fez pensar no quanto essa categoria é sintomática do capitalismo: os escravos das Minas Gerais, no século XVIII, que financiaram a revolução industrial na Inglaterra; os escravos não declarados como tal das minas inglesas que sustentaram as indústrias de "seu" país no século XIX, para honra e glória do rei e alguns poucos; os escravos descarados das minas de diamante europeias em solo africano, até 1970 (ou mais), para brilho e glamour de brancos que lucram com suor negro. Se os mineiros ingleses eram brancos, o trabalho nas minas os transformava em negros, a fuligem imprimia-lhes a cor e o rótulo que brancos impingem a negros ou a quem faça trabalhos equivalentes: não-pessoas; descartáveis.
Se hoje a Europa vê a retomada do racismo, convém lembrar que ela não aguentou meio século livre da escravidão (e nenhum ano sem imperialismo): dizem que o Brasil foi último país a abolir a escravidão, meia verdade: quando vemos o que europeus faziam na África - a Diamang, em Angola, por exemplo -, é notável que a Europa manteve escravidão até o último quarto do século XX, mas, como bons civilizados, mantiveram-na longe de suas vistas, de suas cidades, apenas desfrutaram das riquezas extraídas do sangue negro enquanto proferiam belos discursos pela liberdade. O mundo Ocidental civilizado nunca foi contra a escravidão, apenas não gosta dela no seu jardim (o que mostra o atraso civilizacional da elite brasileira e seus patinhos amestrados).
Se vi leveza na primeira parte, na segunda, os mineiros do capitalismo consolidado me pareceram pesados, a tensão sem alívio, a necessidade da ordem militarizada: as botas dos mineiros mimetizando os coturnos dos soldados que os oprimem em nome da ordem e do progresso - sempre com os negros, nunca para os negros. O capitalismo enquanto guerra permanente, em várias frentes: guerra contra os trabalhadores, guerra contra o meio ambiente, a água, a terra, as florestas, as geleiras, os oceanos, os animais de todos os biomas; guerra contra os negros, indígenas e todos que ousam questionar a supremacia do lucro sobre a vida; guerra contra a Vida. Guerra generalizada, ideologicamente ampliada numa guerra de todos contra todos, trabalhadores brancos contra trabalhadores negros, tralhadores homens contra trabalhadores mulheres, trabalhadores nacionais contra trabalhadores migrantes...
Mas em meio a todas essas guerras, Subterrâneo nos mostra que a humanidade resiste e faz frente à desrazão da civilização branca. No melhor do espírito da dialética moderna, mostra que a cultura advinda da escravidão e da exploração negra foi capaz de sublimar a dor e ressignificar o quotidiano, transformando o que era dado por destino em futuro aberto ao devir, o que era submissão e vergonha em afirmação e beleza. Subterrâneo é a afirmação do negativo que muitos tentam negar - a escravidão e a dívida histórica que ainda temos com a população negra - e a afirmação do positivo que a cultura dita superior resiste a aceitar como tendo valor: o quanto as culturas negras, tidas por inferiores, bárbaras, sem refinamento, podem e devem se afirmar, com valor por si ou na sua capacidade antropofágica, em tudo o que pode ampliar os limites estreitos que vêm da Europa e seus imitadores (me recordo do artigo "A tradição viva", de A. Hampaté Bâ, uma amostra do quanto o mundo perdeu por causa do eurocentrismo, surdo ao outro). Enquanto cultura segura de si, pode ser altiva sem precisar depreciar as outras, não que baste por si, mas por reconhecer a si própria, saber de onde vem, e isso faz com que saiba de seu valor, e do valor de expressão cultural autônoma. Portanto, Subterrâneo não é um tapa na cara dos brancos, é um sopro de vida e alegria para todos abertos a e desejoso da construção de um outro mundo.

10 de setembro de 2018

PS: o espetáculo está em circulação por São Paulo. Infos na página do grupo: www.facebook.com/gumbootdancebrasil/


sábado, 18 de agosto de 2018

Eleições 2018: Impressões sobre o debate na Rede TV

Foi perceptível que equipes de marketing e professores de teatro e oratória trabalharam duro nessa semana que separou o primeiro do segundo debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito. Ciro, Cabo Daciolo e Bolsonaro não alteraram seu estilo, Boulos fez pequenos ajustes - mas há algo ainda desajustado no candidato do PSOL -, enquanto Meirelles, Alckmin, Dias e Marina correram atrás de recuperar a imagem do primeiro debate.
Cabe antes observar que se o nível dos debatedores seguiu baixo, a organização do debate da Rede TV do golpe foi muito superior ao da Band do golpe: os âncoras tinham o controle e mantiveram a compostura do início ao fim - diferentemente da triste figura do Boechat -, as regras permitiram que todos participassem igualmente, o pôr os candidatos frente a frente no centro deu um ar de pugna interessante - poderia ser lido como onde devem ser tratadas as diferenças políticas, na arena, no ringue político, não na covardia anônima da internet ou das milícias -; e os jornalistas foram mais "plurais" - ao menos não estavam ali para levantar a bola para a direita e tentar sinucar a esquerda. Foi, inclusive, curioso notar a postura de Reinaldo Azevedo, arrependido dos seus arroubos fascistas tentando retornar ao velho figurino de jornalista de direita liberal da época das primeiras edições do Primeira Leitura (que eu lia eventualmente), ainda no governo FHC - foi praticamente um cirista no debate, levantou a bola para o pedetista chutar. Tagliaferri e Masson ficaram em terreno mais "neutro". Pardellas me fez lembrar um texto antigo do Pondé, em que o filósofo (sic) da boca torta lamentava que ser de direita "é péssimo para pegar mulher" [bit.ly/2BnimHh]. Pardellas deve ter lido esse texto e achado a verdade suprema: a culpa é da esquerda, e não de tudo o que se reprime, dando a impressão de que até suas articulações são rígidas - parecia personagem caricato de filme adolescente. Chegou a pôr Alckmin na fogueira, na ânsia de preparar o terreno para os candidatos de extrema direita - Bolsonaro e Dias.
Ficou mais claro onde cada candidato decidiu correr atrás de votos, por enquanto: são três de extrema direita, quatro de "centro" (no sentido de evitar tomar muitas posições, para desagradar o menor número de eleitores, o tal "catch all party" da teoria política), um de esquerda, e um bode na sala. 
Pela esquerda, Boulos vai sozinho, mas tem um problema de formação: por mais que seja líder de movimento social, genuíno intelectual orgânico, é filho de professores universitários, com mestrado em psicanálise na USP, tem um quê de distinção indelével - no sentido bourdieusiano. O tal "gente como a gente" soa com um quê de falso. Talvez devesse explorar mais a questão de ter 36 anos, e se apresentar como o único de uma nova geração política, que surge não da velha política (para usar a expressão de Pardellas na pergunta a Alckmin e Dias), mas da labuta do dia a dia. Poderia também adentrar certos temas caros à esquerda, como segurança, de modo a desbancar Bolsonaro: falar em inteligência é importante, mas faltou falar de valorização do profissional, pagar melhores salários, oferecer melhor estrutura, exigir mais respeito aos cidadãos em troca, de modo que a população (o "cidadão de bem" da direita) possa viver sua vida tranquilamente, sem medo e sem precisar carregar arma. No enfrentamento com Bolsonaro (aqui penso na sua tática do primeiro debate com a questão do segundo), poderia acusar o fascista de esconder parte de sua vida, de ser hipócrita, por defender armar a população, mas quando foi assaltado, em 1995, ciente de que reagir não é a melhor opção, perdeu o carro E a arma para os "bandidos" - se nem um militar reage a um assalto, por que um zé ninguém mal preparado deveria reagir? Se bem calibrada essa questão, pode trazer alguma desilusão aos bolsonaristas. Sua postura de apresentação de propostas é boa, mas precisa aproveitar o debate para partir para o enfrentamento, ainda mais numa eleição em que a tônica não é gestão, porque tudo vai bem.
No campo que defini como centro, Meirelles é surreal. Difícil acreditar que leve a sério sua candidatura, ela é tão descolada da realidade quanto um manual de economia - começo a desconfiar de que é capaz de ele acreditar de verdade nos manuais ortodoxos. Melhorou nos dedinhos, tentou ser assertivo e até partiu para o confronto com o Bolsonaro, ao questionar sobre igualdade de salários entre homens e mulheres, sem sucesso: o fascista deitou e rolou, disse que nunca disse o que sempre diz, que basta cumprir a lei, e teve ali, talvez, seu momento alto para seu séquito de fanáticos - Meirelles sequer conseguiu revidar. Reiterou seu discurso de self made man made in USA que largou o sucesso para se dedicar ao Brasil. Talvez fosse útil para algum candidato, para ele, não há salvação. Mesmo com MDB e toda a máquina, não me surpreenderá se ficar atrás de Cabo Daciolo. Fiquei imaginando se a elite brasileira não fosse tão burra e tosca, e ao invés de tentar desestabilizar o governo PT, deixasse que o partido seguisse a trilha da póspolítica neoliberal, de gestão de migalhas em favor do capital: Palocci sucedendo Lula, quem sabe agora Meirelles - o ideal tecnocrático neoliberal - sucedendo Palocci. Imaginou um discurso dele, essa figura meio Sancho Panza meio família Adams, como presidente da república? Enfim, temos o Temer como "consolo".
Com relação a uma semana atrás, Alckmin foi mais firme na fala e menos didático nas propostas, deu menos a impressão de estar chamando o eleitorado de burro. Ainda assim, falta carisma, falta firmeza, e sobra discurso técnico em um tom tecnocrático - um Meirelles repaginado. Tentou, pela primeira vez, tratar das questões "geográficas", falando dos problemas do nordeste - num tom de quem se dirige ao eleitorado sulista, "problemas de uma terra distante que é preciso resolver". Insiste na questão dos impostos às empresas, sem conseguir fazer a ponte disso com a vida comum - diferente do nome no SPC de Ciro. Bem provável que esteja planejado uma jogada em conjunto com a mídia corporativa, que passará a tratar dos assuntos que o candidato mais explora. Buscou marcar presença no antipetismo, sem exagerar, porque essa raia está bem congestionada. Talvez esteja arrependido de ter escolhido uma fascista como vice, queimando pontes importantes com um eleitorado mais moderado ou então de fora do eixo sul-sudeste. Sentiu o baque de ser vinculado ao governo Temer, tentou jogar a culpa no PT, mas ainda teve o azar de ter que fazer suas considerações finais antes do Boulos, que assinalou o golpe. Vi pessoas que falaram que não houve enfrentamento com ele, que passou tranquilamente por todo o debate. Contudo, para Alckmin, ficar onde está não é nada positivo, ele precisa crescer - logo e rápido - para não ser descartado. Não achou ainda por onde correr, e isso deve desesperar sua equipe.
Marina Silva notou o fracasso que foi no primeiro debate, onde não conseguiu sequer tomar posição sobre assunto que tem posição tomada e afim à maioria - a possibilidade de aborto legal. Sem encampar o antipetismo de Álvaro Dias, com quem trocou figurinhas nas perguntas, tentou surfar na onda da antipolítica, do "contra tudo o que está aí". Seu ponto alto foi no enfrentamento (ao que tudo indica sem planejamento prévio) com Bolsonaro, sobre a questão de Meirelles acerca do salário de mulheres: não tirou um voto do fascista, mas pode ter ganho alguns dos até então desiludidos com ela, graças ao seu discurso emocionado de mulher e mãe, daquela que cresce pra proteger os filhos - inclusive foi corporalmente para cima do fascista. Na verdade, parece ter demorado para notar que é a única mulher cabeça de chapa, e ao invés de tentar reconstruir o mito de herói a la Lula, ou da líder que enfrentará todos (que exige uma postura mais "testosterona", no linguajar de Ciro, uma postura mais assertiva e agressiva que não ornam com seu estilo), devesse marcar sua candidatura nessa nota, de mulher e mãe, explorando o estereótipo de que mulher e mãe é mais sensível aos problemas pequenos, esses que afligem as pessoas comum.
Ciro ficou onde esteve no último debate. Cirinho paz e amor, que vai tirar o nome do SPC e entendido em economia e do Brasil. Sua insistência em perguntar a Alckmin mostra com quem está disputando - parece haver uma crença de que Bolsonaro desidrate o que é uma aposta de risco. Ou então que a chapa petista seja impugnada por completo. Mais simpático que o tucano e mais bem articulado, dando a impressão de entender do que fala e não de estar repetindo algo que decorou, pode tirar votos do paulista. A ver o quanto cresce e se vai precisar buscar votos no antipetismo para sonhar com o segundo turno - o que é sempre um risco para o campo progressista.
No campo da extrema-direita, Bolsonaro tenta ficar onde está, mas é perceptível que corre perigo e sabe disso: estão todos esperando seu momento Celso Russomano 2012 (ou mesmo Ciro 2002), uma frase infeliz que vai fazer ele murchar inevitavelmente. Pode não acontecer, e o ideal seria forçá-lo a uma escorregada, talvez em algum campo que ele aparentemente domine. Repetiu duas vezes o discurso proferido no primeiro debate - pior, segue mal decorado e falado sem firmeza e convicção. É ver se vestir o figurino de candidato sério, pró establishment, vai agregar votos suficientes para compensar os que vai perder entre os desiludidos com sua tibieza ou seduzidos pelos outros dois candidatos dessa raia - até no seu enfrentamento com Cabo Daciolo saiu perdendo. Azevedo prestou um desserviço a ele (e um serviço à nação), ao pôr para discutir economia com Ciro. Entretanto, ao notar as interações no youtube e no fakebook da Rede TV, foi possível notar que Bolsonaro provavelmente focará sua campanha em guerrilha de internet. Ao que tudo indica, ele tenta criar uma onda de "a maioria é a favor de mim, só que a mídia não mostra" que, aliado à tal ideia de "não perder o voto" de muitos eleitores - isto é, votar no candidato que ganhou a eleição ou que vai ao segundo turno -, pode fazer a diferença - para não falar na utilização de big data e afins para publicidade ultrafocada. É algo que tanto seus adversário direitos  do campo conservador/reacionário, quanto os adversário do campo progressista/democrático devem estar atentos.
Álvaro Dias mudou de figurino, deixou de lado o camicie nere em favor de um terno mais tradicional e diminuiu a dose do que usou antes do primeiro debate - o que o torna mais palatável à família brasileira. Suas bandeiras são o antipetismo e o moralismo anticorrupção/lavajatismo - basicamente um recall do PSDB das duas últimas eleições federais e da última para a prefeitura de São Paulo, o que aponta provável erro tucano de não indicar Doria Jr. ao Planalto, depois do partido debandar para extrema direita nos últimos anos. Inclusive por ser ex-tucano e se vincular tão fortemente à Lava Jato, deve tirar votos de Alckmin. Carregou na tinta do antipetismo, mas carregou tanto que não foi muito esperto: ao começar atacando, logo na primeira pergunta, a insistência da candidatura de Lula fez muita propaganda para o petista. Seu discurso, inclusive, também pode ser lido como propedêutico para novas etapas do golpe, ao dizer que se Lula for candidato não há democracia - logo, partamos logo para a ditadura explícita, fica dito no subtexto. Quem sabe espere ser nomeado marionete dos togados numa eventual ditadura judiciária aberta. Tenta fazer o papel da extrema direita assumida e ilustrada, diferentemente dos dois militares, extrema direita xucra, e de Alckmin, extrema direita ilustrada mas envergonha (por sinal, o paulista fez suas propostas fascistas de derrubada do estado de direito, ao falar em inversão do ônus da prova "para políticos", ou seja, quem quer que queira mudar por dentro as instituições terá que ser aprovado por elas, ao provar que é inocente; se quiser mudar por fora, já conhecemos o "porrada, bomba e tiro" com que ele trata reivindicações sociais). Por falar em antipetismo, são três candidatos abertamente nessa raia - Dias, Alckmin e Bolsonaro -, outros três que tentam marcar distância para o petismo - Ciro, Marina e Meirelles - e Cabo Daciolo como anticomunista antitudo geral. São sete candidatos para dividir 30% do eleitorado.
Cabo Daciolo eu sigo achando que é um nome a ser observado com mais seriedade e menos desdém, tal como faz a esquerda ilustrada tupiniquim. Não é candidato para ganhar, mas pode surpreender - tivesse alguma estrutura partidária e cresceria mais. Acredito que sua maior falha seja o excesso de religião - cabe a ele seguir na toada religiosa, reafirmando que não faz pregação de uma religião (?!), apenas cortar a ideia (implícita) de transformar o Brasil numa república teológica. Falar que a primeira semana de sua presidência será para louvar o senhor pode ter custado votos de quem o levava minimamente a sério, ainda que siga com apelo dentre os que querem fazer um voto de protesto - e ele deixou dito que esse é o voto que busca. Porém Daciolo vai além do voto de protesto "zueiro": ao trazer teorias conspiratórias - URSAL e urna eletrônica - para rede nacional ganha fama de "não ter medo de falar o que os poderosos tentam esconder", tem pose coerente de antissistema - quem mais tem essa coerência, na minha opinião -; se porta como um pastor, linguagem corporal familiar a muitos brasileiros dos estratos mais baixos; prega um anticomunismo maluco mas que não descamba para o ódio puro - como quando teve que enfrentar no centro do auditório Boulos -, no confronto dele com Bolsonaro, cresceu pra cima do candidato do PSL: fala com firmeza (e fanatismo), enquanto Bolsonaro titubeia, quase um recruta diante do sargento; também reafirma o Bolsa-Família, inclusive naquele discurso de pai severo e amoroso; seu estilo é naturalmente o mais próximo do "gente como a gente" que Boulos tenta encarnar; ademais, junto com Ciro, parece o candidato que melhor encarna a reunificação do norte e sul do Brasil, assinalado na coluna de Marcos Nobre [bit.ly/2L3KAGC].
Restou o bode na sala, o candidato favorito - ou o que for posto no seu lugar -, o que não pode ser dito, o desdito, mas é falado o tempo todo - o risco para a democracia (porque pode fazer valer a vontade popular e não dos donos do poder), o que dividiu o país antes unido na fraterna comunhão ideológica da casa-grande e senzala. A forma como tentam tratar Lula me faz lembrar da letra da fase áurea de um decrépito roqueiro destes Tristes Trópicos: "Eu sou a Explosão, o Exu, o Anjo, o Rei/O samba-sem-canção, o soberano de toda a alegria que existia (...) Eu sou o terror da próxima edição dos jornais/Que me gritam, me devassam e me silenciam". 
Ao que indicam as pesquisas, seja em primeiro ou em segundo lugar, a disputa explicitada por mais esse debate-menos-o-favorito foi pela outra vaga no segundo turno. E com mais o imbróglio da ONU, pode ser que Lula entre mesmo na corrida eleitoral - o que trará grande reviravolta a todo o cenário, com possibilidade de vitória petista no primeiro turno, que faria com que se tornasse praticamente o foco único nos debates posteriores, levando chuva de ataques, sem direito a resposta. Não vivêssemos tempos sombrios, de estado de exceção e ditadura (ditabranda, pelo ditadômetro da Folha), e eu diria que é uma eleição das mais interessantes e instigantes.

18 de agosto de 2018