segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Banca do Enem cava trincheiras na defesa da democracia e da educação

Os elaboradores do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) cavaram importante trincheira contra os retrocessos no país, em especial contra o Escola Sem Cérebro, conhecido popularmente como "Escola sem partido". Também é um tapa em quem acha que corrente de WhatsApp e meme no Facebook servem para se informar. Não apenas pelo conteúdo, mas pela forma, o Enem marca uma forte posição de resistência. 
Fiz o exame: foi uma prova pesada, cansativa, muito texto e grande exigência de interpretação - não se tratavam de pegadinhas, mas de pegar filigranas do texto. Não sei se em anos recentes era assim (o último Enem que fiz foi em 2011), mas cada questão se referia a um ou dois textos (no meu tempo, a ordem era inversa: duas ou três questões se referindo a um texto). Textos curtos mas densos, com questões pedindo interpretação fina do que estava exposto. Se a atual geração está acostumada a ler no tapa, passar o olho e achar que entendeu, o Enem foi um tapa na cara. Não eram questões difíceis, mas exigiam olhar atento e preparação de maratonista - ou os alunos reaprendem a ler com atenção ou falharão no Enem.
O conteúdo das questões também foi para não deixar dúvidas sobre se houve golpe ou movimento em 1964, se existe ou não gays no mundo, se feminismo é coisa de esquerdopata ou mobilização em favor de direitos sociais, que o racismo está presente na vida de milhões de pessoas e não é vitimismo (o poema "Quebranto", do poeta Cuti, foi uma porrada poética no meio da prova).
A redação me fez lembrar de Jânio de Freitas, e da Folha de São Paulo, numa época em que o jornal valia a pena, com a divulgação velada e antecipada dos vencedores dos leilões ferroviários no governo Sarney. Talvez a banca que elaborou a redação não imaginasse o vitorioso, porém já sabia dos métodos que seriam utilizados pelo candidato fascista.
Não sei como funcionam os contratos de quem faz o Enem, é certo que se a banca não puder ser substituída ou não forem usados meios pouco ortodoxos de pressão, o exame desponta como resistência ativa ao Escola sem partido, e põe as escolas que já aderem ao programa - por medo de represálias dos pais, má repercussão na mídia ou adesão ao fascismo, mesmo [https://bbc.in/2JEkQBo] -, em aporia: se aderirem ao revisionismo fascista, muitos de seus alunos fracassarão retumbantemente. O Liceu Jardim, de Santo André, por exemplo, que se orgulha de ser a 16ª escola no ranking nacional do Enem: se tivesse aderido no início do ano ao fascismo, teria despencado nesse ranking (furado, entretanto esse é outro assunto), com os pais revoltados por terem gasto dinheiro numa educação de segunda, que sequer prepara para o Enem. Para sua sorte, aderiu ao Escola sem partido e demitiu a professora de história que salvou seus alunos apenas neste fim de ano [http://bit.ly/2RCW6fL], na semana do Enem. É de se questionar como fará ano que vem, para não perder alunos nem a fama, talvez crie uma disciplina extra, "fake news para Enem", poderia ser EaD apresentada pelo próprio presidente da república bananeira.
É esse o xeque dado pelo Enem 2018: ou se modifica drasticamente o exame, e transforma numa prova de conhecimento de whatsapp e youtubers, ou as escolas (em especial as de classe média, média alta) se verão obrigadas a comprar a briga de professores e da parcela democrática da sociedade em defesa de uma educação plural e de qualidade.

05 de novembro de 2018


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Eleições 2018: Balanço prévio de perdedores e vencedores.

Reitero o que disse ao fim do primeiro turno: esta eleição é uma grande perda para todo o Brasil - e seria mesmo com vitória de Haddad. Porém, vou dar uma analisada em mais detalhes diante do resultado das urnas (não fraudadas, apesar do processo eleitoral fraudulento). 
Há quem veja alarmismo naqueles que dizem que a eleição de Bolsonaro é o fim do nosso breve interregno democrático (de baixa intensidade, mas ainda assim, algum respiro democrático). As instituições estão funcionando, dizem, e sou obrigado a concordar com essa constatação e por isso digo com mais segurança ainda: a democracia caminha célere para a tumba. Porém, como padeço de otimismo inveterado, creio que não é uma marcha inexorável. Se as forças democráticas (progressistas em especial, mas não só) souberem se organizar e agir com inteligência, a dominação neofascista-neoliberal, em alta atualmente, pode não conseguir se firmar: a experiência histórica, aliada às novas tecnologias, os novos meios de comunicação, permitem novas formas de articulação e resistência, em que comunidades solidárias micro podem caminhar juntas com articulações macro - a onda espontânea de escuta e diálogo que tomou os últimos dez dias de campanha me parece ser um ponto de partida importantíssimo: deixar uma parte da população sob aviso de que há pessoas dispostas a ouvir e acolher, para quando a decepção com Bolsonaro começar (e ela começará em breve, a não ser que haja uma guinada fascista na economia também, por ora descartada). Agir sorrateiramente, menos passeatas e mais "passeios": a possibilidade de construção de uma narrativa - ou das bases para uma narrativa - pró democracia é grande.
O PSDB, como eu já anunciara em 2016, acabou enquanto opção democrática. O murismo de FHC, o vai e volta de Huck, e a vitória do fascista de cashmere em São Paulo devem levar os tucanos a hastearem sem peias a bandeira fascista e à debanda de figuras históricas, mesmo as mais à direita. Doria Jr. se apresenta como o fascismo de bom gosto (sic), para desfilar no exterior, e tem tudo para ser a oposição a Bolsonaro dentro do mesmo campo.
Ciro Gomes caiu na armadilha que engoliu vários expoentes nacionais: a política baseada no ressentimento. Cristóvão Buarque, Marina Silva, Marta ex-Suplicy são alguns exemplos de políticos que abdicaram da personalidade pública pelo próprio ego e desapareceram. Ciro talvez consiga contornar essa sina - afinal, é um coronel -, mas terá dificuldade em recuperar sua imagem nacionalmente: se se apresenta como alguém bem preparado, ganhou também a pecha de fugir no momento decisivo, e deixar o orgulho se sobrepor ao espírito público - seu passeio pela Europa não vai poder ser vendido como estratégico (juro que de início tentei acreditar que articulasse algum apoio internacional, para um retorno triunfal).
Uma pena, Ciro poderia vocalizar parte importante do antifascismo, um público reformista, que sabe que as instituições faliram, mas creem que um "coronel esclarecido" saberia encaminhar uma reforma sem maiores traumas. Por ora temos Boulos, com ativismo mais de base; Haddad, com penetração em meios mais ilustrados e "moderados", "habermasianos", com possibilidade de se firmar como expoente do "pós-petismo", apesar de ser do PT; e Lula e o PT, em um universo mais popular e menos organizado - e um dos papeis do lulo-petismo atual seria marcar uma clivagem social "identitária", de modo a forçar novos termos do debate (para além de nordestinos, ou assistidos, e também mais complexa que questões de gênero). Há espaço, portanto, para um antifascismo mais estridente que Haddad mas menos chão de fábrica que Boulos (Requião, se tivesse sido reeleito, talvez; não sei qual seu apelo longe da tribuna). Nesta luta contra o fascismo, parte da esquerda vai ter que aprender que vencer vale mais que "vitória moral" (Freixo ganhar a prefeitura do Rio com apoio da Rede Globo, em 2016, teria sido muito melhor que permanecer imaculado mas deixar a cidade para o bispo da Universal). Identificar coronéis dispostos a resistir junto, e abraçá-los criticamente, mas abraçá-los (não que sejam confiáveis, mas pelas últimas movimentações, Renan Calheiros e Gilmar Mendes seriam duas dessas figuras importantes neste início de luta contra o fascismo).
Quem perde também é a igreja católica e a Rede Globo. Provavelmente a igreja será posta em aporia: ou extirpa seus ramos pastorais sociais, ou sofrerá perseguições. Se aceitar a chantagem, deixa a avenida livre para evangélicos assumirem a hegemonia religiosa; se resiste, tende a definhar mais lentamente (Juliana Cunha alertou que a educação básica à distância é um ótimo negócio não apenas para conglomerados educacionais, como para as igrejas evangélicas, que poderão abrir seus salões para os pais deixarem as crianças, doutrinando-as enquanto têm "aula"); talvez sua maior chance seja dobrar a aposta e incentivar o trabalho de base, mas a cúpula brasileira é conservadora demais, e prefere seguir o bispo Macedo ao Papa Francisco, como deixou claro o bispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta (que alega não ter declarado apoio ao candidato, mas os gestos de seus funcionários mostra bem o espírito que animou a visita de Bolsonaro), além de tantos padres de paróquias.
Já os irmãos Marinho tem tudo para seguir o destino de seu precursor, Assis Chateubriand, defenestrado pela ditadura cujo golpe apoiou. Não basta a perda de importância da mídia tradicional, o que já diminui seu poder, a Globo deixará de ser a rede oficial do poder - enquanto Lula deu sua primeira entrevista aos Marinho, Bolsonaro deu a Macedo. Tentarão ser mais realistas que o rei, na expectativa de não serem liquidados, porém é óbvio que a Record será a nova porta voz oficial, com consequente aumento nas receitas. É esperar para ver os próximos capítulos (inclusive o quanto suas novelas ganharão um ar mais recatado, do lar e evangelizador). Para agora, não consigo vislumbrar saídas à emissora, muito menos de ela caminhar para a oposição, uma vez que Guedes encampa todo seu ideário.
Quem perde também com a eleição são as forças armadas. Ainda que reassumam a ribalta por meio democrático, quem estará à frente da nação é um capitão obscuro, sem controle da tropa. Nomear uma série de ministros generais é a tentativa de ter alguma autoridade no exército. E mesmo que consiga essa autoridade, seu estímulo às milícias sem qualquer controle levarão ao caos, e não à ordem. Se, como disse Marcos Nobre, Bolsonaro cresceu e só sobrevive no caos social, isso acabará por respingar nas forças armadas, que serão vistas como incapazes de restabelecer a ordem - se restabelecerem, Bolsonaro será incapaz de se manter no poder. Ademais, os tempos são outros: assim como a resistência se faz mais firme e fluida que em 64, as novas mídias não permitirão que os casos de corrupção sejam escondidos. Haverá sempre o argumento de fake news, reforçado pela mídia tradicional - e é aqui que o trabalho de base, de corpo a corpo fará a diferença, e uma hora esse discurso não dará mais conta de desmentir a realidade mais óbvia no dia a dia de uma pessoa comum.
Quem realmente ganha? Talvez o 1%, ou uma parte dele, parte do exército, alguns grupos internacionais. Mineradoras, agronegócio, petrolíferas internacionais, bancos, evangélicos, alguns grupos do crime organizado, redes privadas de ensino, mercado de bens e serviços (como saúde, educação e segurança) de luxo. O Brasil deve perder ainda mais relevância internacional, e se os artistas internacionais (como Madonna, Bono, Cher, Waters e outros) começarem a vincular marcas ao regime de Bolsonaro, é bem provável que empresas abarquem a campanha antifascista, ao menos abdiquem de lucros em nome da imagem, já que o mercado brasileiro vai minguar com as políticas econômicas prometidas (vincular a Nike à CBF e o uniforme da seleção aos fascistas poderia ser um primeiro teste).
Disse que sou otimista? Sim, sem deixar de ser realista. É a oportunidade, aproveitando a onda "micro-ativista" do fim das eleições, de começar desde já a construir contranarrativas, a desmantelar a ditadura que se aproxima e, espero, não se firme.

29 de outubro de 2018.