domingo, 17 de novembro de 2019

Bacurau e a volta dos que não foram (como vovó já dizia) [Diálogos com o cinema]

Composta em 1973, "Como Vovó Já Dizia", de Raul Seixas, foi censurada pela ditadura militar - digo, movimento de 64, conforme o presidente do STF -, e ganhou a versão conhecida, com quase nada da original, que não os versos "quem não tem colírio usa óculos escuros" e "a serpente está na terra, o programa está no ar". Ainda que a versão consagrada traga uma série de críticas veladas à ditadura militar e à situação do país, fica muito aquém da versão original - inclusive faz sentido porque usar óculos escuro diante dos olhos "manchados com teus raios de luar". Há cerca de dez anos sua filha lançou uma versão eletrônica a partir da gravação do vocal do pai com a letra original:

"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa luz tá muito forte tenho medo de cegar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Os meus olhos tão manchados com teus raios de luar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Eu deixei a vela acesa para a bruxa não voltar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Acendi a luz do dia para a noite não chiar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Já bebi daquela água, quero agora vomitar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Uma vez a gente aceita, duas tem que reclamar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
A serpente está na terra, o programa está no ar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Vim de longe, de outra terra, pra morder teu calcanhar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tudo tá na mesma coisa, cada coisa em seu lugar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro"

Há ainda uma outra versão que circula na internet, um show ao vivo, com pedaços da letra original e alguns acréscimos:
"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Einstein usa Fitipaldi
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Hitler usa Pelé
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem New York usa São Paulo"

Além de um solo de boca, que pode ser lido tanto com uma ironia à pretensa incompetência artística do artista, como à precariedade em se fazer arte no Brasil dos anos 1970.

Quase meio século depois e a serpente saiu da terra - graças aos programas que estão no ar. O fascismo emerge forte, nascido aparentemente por geração espontânea para boa parte da esquerda e das forças progressistas, que não duvidaram radicalmente do fim da história de Fukuyama, aceitando implicitamente certa irrelevância do presente na história pós queda do muro de Berlin. Agora corremos atrás de entender como tudo isso aconteceu, como chegamos onde estamos tão repentinamente - aparentemente. Parte da esquerda (na qual me incluo) caiu na otimista crença liberal de raiz iluminista de que o bom senso cosmopolita prevaleceria por inércia: questão de tempo para as pessoas se darem conta de que a defesa dos direitos humanos é tão óbvio quanto a circunferência da Terra. Outra parte (ainda muito relevante dentro da academia) prefere seguir negando dados concretos de realidade em favor de fantasias infantis de poderes supra humanos que ocultam sua real impotência: a incapacidade de aceitar pequenos avanços como vitórias, seu "revolução ou deixa tudo como está", que se não falam abertamente, está nas entrelinhas, nada mais é que incapacidade de enxergar a fome real do outro (e seria possível "enxergar" o que é a fome graças à empatia, não é necessário ver alguém morrendo de fome ao vivo, uma experiência que não recomendo). Os revolucionários de gabinete que ontem gritavam contra a pretensa passividade do povo e as leituras erradas d'O Capital, hoje repetem as mesmas querelas [como a atual, iniciada por trotskystas indignados pela revista Jacobin ter dado voz a um intelectual afim ao stalinismo falar da situação atual do país], e amanhã serão os primeiros a fugir do país, ressentidos por não terem sido ouvidos. Dez anos atrás eu ironizava essa esquerda com o "Troféu Peter Pan de Resistência", no Trezenhum. Humor sem graça. No mesmo blogue, ridicularizava alunos que abraçavam polianamente pressupostos nazistas, assim como seitas evangélicas reacionárias e grupelhos abertamente fascistas que brotavam na Unicamp: minha crença no bom senso não me permitia imaginar que algum dia ganhariam não apenas relevância como o poder. Eu vi a bruxa e desacreditei: como tantos, deixei a vela se apagar.

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E cá estamos nós, 2019, lambendo as feridas e tentando achar linhas de fuga para um devir menos aterrorizante, mas ainda temerosos de enfrentar a noite, o escuro - herança iluminista que achou que o mundo poderia viver num dia eterno, e que o capitalismo tem tentado tornar realidade em seu expediente 24/7 (eu mesmo escrevo este texto já passado da meia noite).
Kleber Mendonça é um desses artistas argutos e que tem lado, cuja obra não apresenta soluções, mas escancara problemas e nos permite elaborar melhor possíveis resistências e contraofensivas - seu senso de oportunidade está em descortinar os mecanismos de poder e dominação e não em tecer loas acríticas ao poder, cada vez mais confundido com o fascismo, como outro cineasta brasileiro, que agora se diz arrependido, por não ter lucrado tudo o que esperava.
Talvez um primeiro alerta cinematográfico para o fato da serpente do fascismo estar apenas adormecida tenha sido dado por Stanley Kubrick, em seu "Dr. Fantástico ou como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar a bomba": a integração tranquila de oficiais nazistas nas altas esferas da inteligência estadunidense só poderia ter acontecido se já houvesse algum tipo de afinidade com o regime derrotado em 1945 [assim como nossa democracia, que aceita Delfim Netto e Paulo Guedes como se não fossem símbolos de propostas autoritárias e excludentes de sociedade, e ainda temos a pachorra de nos surpreender com seus "Heil Hitler" bananeiro-tropical]. João Bernardo comenta que não apenas o embrião das milícias fascistas é "made in USA", com as empresas de "segurança privada empresarial", contratadas para agredir trabalhadores, como a distância do liberalismo para o nazifascismo que hoje é consagrado nas ciências humanas, é um projeto de reescrita da história para tentar escamotear o que de fato se passou e as muitas afinidades entre o liberalismo e o totalistarismo - Hannah Arendt seria uma das mais proeminentes vozes dessa vertente. Porém, por muito tempo seguimos achando que o nazifascismo era apenas espectro de um mundo que não existe mais, ideia reforçada pelos filmes hollywoodianos que pintam Hitler como a besta fera da antipatia e grosseria - exatamente o oposto do carisma contagiante retratado por Leni Riefenstahl em "O Triunfo da Vontade", de 1935.
Voltemos ao Brasil de 2019, ou melhor, de daqui a alguns anos, retratado em Bacurau, pequena localidade do Sertão de Pernambuco - estado de tanta história de resistências e guerras. Essa dupla indeterminação - "sertão" e "daqui a alguns anos" - não é fator menor na leitura da realidade que o filme permite.

O sertão é tido, geralmente, como um lugar ermo e perdido também no tempo, na história, no espaço: um território de reserva, para ser utilizado em algum futuro (daqui a alguns anos), quando necessário ampliar fronteira agrícola ou qualquer outro projeto de indução econômica-capitalista. Antes desses momentos de "avanço", de "interiorização", é dado como um lugar vazio, que só desponta ao "país real" em tempos de crise - catástrofes naturais, como secas, ou fanáticos religiosos brotados da pobreza e da violência do estado, como Antônio Conselheiro e Monge José Maria. O sertanejo - antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha - é antes de tudo um não cidadão - ou deveria ser, uma vez que deixou tal condição graças às políticas sociais dos anos petistas, coisas simples e de baixo custo, como Bolsa Família e Programa de Cisternas (por sinal, uma delas aparece no filme). Essa inserção do sertão no mapa do poder, não no modo habitual, como um antro de atraso a ser domesticado, ainda que não completamente inserido na produção de mais-valia, foi suficiente para gerar revoltas do "Brasil do sul", de grileiros de toda espécie (de terras e de capital político) e das altas esferas burocráticas do estado, como a do judiciário - não por acaso, um dos "caubóis" contratados pelos estadunidenses é funcionário do judiciário.
Bacurau é síntese do sertão: mal está no mapa, e pode ser riscada dele, com aval do poder, sem fazer falta alguma ao país.

O "daqui a alguns anos" em que se passa a história é um futuro indefinido que num primeiro momento deixa o espectador perdido, reforçado pelo início tosco do próprio filme: será uma obra sobre uma distopia futura, meio século adiante, em que o sertão, esse lugar do atraso, congelado no tempo, ainda se vale de tecnologia da segunda década do século XXI? Não tarda para notarmos que esse futuro só não é presente por questão de detalhes - que as elites, bem representadas nos governos que tem assumido o poder nos países latino-americanos pela via golpista, militar ou judiciária, estão tentando resolver. O detalhe óbvio que essas elites não são capazes de compreender, deslumbradas consigo própria, enxergando o Big Ben na torre da matriz da cidade, a estátua da liberdade original em porta de lojas de departamentos de cidades caipiras e o skyline novaiorquino na barafunda arquitetônica paulistana (pastiches de modas europeias com toques de modernismo tropical que ignora o que é a vida nos trópicos): não são brancos - nunca serão. A herança grega é exclusividade europeia - não importa que a Igreja Universal tenha suas colunas dóricas -, e a tal tradição judaico cristã só é verdadeira enquanto nos países ocidentais - Israel, Europa Ocidental e Estados Unidos. Jeanine Añez consegue ser, no máximo, uma mexicana pálida empapuçada de maquiagem; Bolsonaro e seu séquito - Bispo Macedo, Malafaia, Dom Orani - são apenas jumentos que podem ser descartados tão logo percam a utilidade. E por não serem brancos, por não serem ocidentais de verdade, são outras espécies de humanos, um degrau abaixo na hierarquia fascista do mundo.
Falta pouco para esse "daqui a alguns anos" ser presente, um tempo em que as pessoas, tocadas pela questão ambiental e buscando saídas saudáveis para suas frustrações - em especial a de serem losers numa sociedade pretensamente de winners  -, que não via massacres de seus colegas e compatriotas estadunidenses, se dediquem a safáris humanos. Primeiro, um presidente estadunidense que retome a tradição europeia de se chocar com violações gritantes dos direitos humanos dentro do seu território, e forçar sua externalização. Como foi feito com trabalho escravo - legal na África até 1960 -, como é feito com pesquisas científicas usando cobaias humanas, proibidas conforme o código de ética dos países centrais, mas realizadas tranquilamente no Brasil e outros países periféricos; como é feito com o tráfico de órgãos (retratado no filme "Coisas belas e sujas", de Stephen Frears). O fim dos safáris de "mexicanos" no Texas parece exigir antes algum lugar onde eles possam acontecer sem problemas - Brasil, Bolívia, Cambodja, Uganda, Moçambique, África do Sul... O Rio de janeiro, por exemplo, mostra um grande potencial para esse tipo de "turismo de aventura": suas favelas, seus morros já tem todo o apelo de anos de divulgação internacional; [bailes funks na periferia de São Paulo talvez possam até despontar antes, além de ter a vantagem de poder matar vários gastando poucas balas, e ainda ser elogiado pelo governador, quem sabe condecorado]. O problema, por ora, é garantir a segurança aos turistas, porque há uma parte da criminalidade que ainda não coadunou o suficiente com o poder na divisão do domínio do território e suas populações. Mas isso é algo que tem se buscado uma solução, via governos comprometidos com milícias, milicianos, traficantes de drogas e paramiliatres - além, é claro, dos comprometidos com lavadores de dinheiro de toda ordem.
Enquanto não se põe ordem nas áreas propícias para safári humano, o que resta é acompanhar à distância, estilo reality shows, a câmera seguindo qualquer policial fascista transformado em um Capitão Nascimento - realizando o fetiche de parte das elites brasileiras -, estimulado por apresentadores de tevê a dar esculacho em um zé ninguém, desarmado e desprotegido, por ser pobre preto e periférico - até o momento da consagração, o assassinato de estado de alguém cuja vida não vale. Nesse ápice, nós, que não temos Hitler, veremos um de nossos líderes sair do helicóptero a comemorar, dando soco no ar como Pelé. Em casa ou acelerando seus potentes carros, os cidadãos de bem comemoram.


17 de novembro de 2019 [com complementos e título (mesmo que péssimo) dia 02 de dezembro]

ps: ainda pretendo escrever um texto sobre outro aspecto levantado pelo filme.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Venezuela: um país em colapso.

Por falta de remédios, hospitais vazios -
como se as pessoas tivessem desistido de ficar doentes.
No início de setembro, Gilberto Maringoni, graças a um crowdfunding do DCM, foi até Caracas, conferir in loco a situação da Venezuela [http://bit.ly/31GZf2J]. O que ele descreve em seus artigos é um país em crise. "Se em Caracas está bem, o resto do país pode estar explodindo, que eles não ligam": ouvi isso de um grupo de venezuelanos, e me lembrei ao ler os textos do professor da UFABC. Relativamente ao resto do país, a crise em Caracas é “estar bem”.
Estive na Venezuela no mesmo período que ele. Fui pelo projeto Caminhos de Solidariedade, da CNBB, por trabalhar no Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Estive em Ciudad Guayana e Ciudad Bolívar, no estado de Bolívar; e em Tucupita, no estado de Delta Amacuro. O que presenciei não foi um país em crise, foi um país em colapso.
No trajeto entre a fronteira com o Brasil, em Pacaraima, e Ciudad Guayana, quinze postos de fiscalização. Em alguns pedem documentos, em outros perguntam de onde viemos, para onde vamos; outros apenas observam atentamente dentro do carro. Na grande maioria das barreiras os agentes estatais usam fuzil AK-47, em poucos se restringem a pistolas. Isso reforça a impressão que tenho das leituras que faço: é guerra.
O país está em guerra - e não é civil. E é a população, claro, quem mais sofre as consequências dessa situação. Onde estive falta tudo, falta o básico.
O país detém as maiores reservas petrolíferas do mundo, mas falta gasolina em várias regiões - no caminho, estado de Amazonas, várias pessoas vem para o Brasil encher o tanque a R$ 5,00 o litro, valor que compraria 25.000 litros na Venezuela (1 bolívar o litro, 5.000 bolívares o real). Papel higiênico ou guardanapo, são raros os lugares que tem - sequer no palácio episcopal ou em shopping center -; e quando há, é porque alguém trouxe do exterior (admito, na casa paroquial de um padre estadunidense, roubei umas seis folhas de guardanapo, que me foram de grande utilidade na viagem). Parece anedótico, mas é grave. Não há papel para se limpar, haverá nas escolas? Não fomos conferir, por ser período de férias, porém o fato do último ano letivo ter tido apenas 50 dias efetivos de aula sinaliza o tamanho do caos - e as consequências para o futuro do país: é um projeto de destruição de longo prazo. Pior ainda quando ficamos sabemos que muitos pais vêem isso como positivo em alguma medida: sem aula, não precisam acordar cedo, e criança dormindo não reclama de fome o tempo todo (ouvir relatos como esse chocam, angustiam, comovem; deparar frente a frente com uma criança moribunda de fome é algo que ainda não consegui elaborar: adjetivos não fazem sentido). Esse foi um dos casos que me fez lembrar do romance Meio sol amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Sim, estive em uma área de guerra.
O salário mínimo é de dois dólares (quarenta mil bolívares), uma cartela com trinta ovos custa quatro dólares. O quilo de carne, cinco. Não vi mercados nas cidades que visitamos: grandes lojas fecharam e a venda de comida é feita em feiras, nas ruas ou improvisado na portas das casas - geralmente farinha para arepa e artigos importados do Brasil, farinha, óleo, bolacha. Mesmo nos locais "abastados" onde fomos recebidos rala-se os frios para fazer renderem mais. Economia de guerra.
Logo no primeiro dia, precisei de um relaxante muscular, por conta da viagem, e a guia que nos levava por Ciudad Guayana fazia mil ligações para conseguir um, sabe-se lá a que preço, em um esquema com uma enfermeira de uma clínica particular - por sorte, ainda que avisado tarde, uma das pessoas que viajou comigo avisou que tinha um. Num hospital oncológico que visitamos o médico comenta: a Venezuela tem 60 a 70% do medicamento para câncer de que necessita. O que faz com que os médicos tenham que escolher que paciente tentarão curar - é perverso com os pacientes tanto quanto com os médicos. Num hospital geral, médicos há - geralmente recém formados ou velhos -, contudo, não há remédios ou alimentação: o acompanhante recebe a receita e parte em busca do dinheiro para comprar comida e remédio, há dias que têm de escolher qual comprarão. Assim, casos simples, em que a internação duraria três dias, levam dez - quando não levam óbito. Diante desse quadro, muitas pessoas preferem morrer em casa: menos risco de contrair uma infecção - quem sabe um milagre não os cure? Um padre comenta: em sua paróquia as exéquias ocorriam uma vez por semana, passaram a ser diárias e já chegaram a vinte numa semana. "As pessoas estão fracas, desnutridas, qualquer infecção pode ser mortal". Biafra é aqui.
Os subsídios do governo - um dólar por semana, um arremedo de cesta básica e energia elétrica e água de graça (onde não há crise hídrica, o outro grupo do projeto, que visitou outras cidades, tomava banho com água do ar condicionado) - não são suficientes para garantir a sobrevivência - nem a permanência da população. Decorre disso que cerca de quatro milhões de venezuelanos, aproximadamente treze por cento da população, ter saído do país em três anos (seria como se a região sul do Brasil tivesse emigrado desde o golpe na Dilma, contra a democracia), e outro tanto ter ido para a região de Las Claritas, a região das minas de ouro, que um padre definiu como o "inferno na Terra", onde as pessoas vão na esperança de conseguirem fazer uma reserva para retomar a vida e acabam desumanizadas - e pobres. Nas cidades outrora pujantes, como Ciudad Guayana, muitas casas na periferia com a inscrição “CVD” - Se vende. Se vende, mas ninguém compra. Falta dinheiro, mas faltam também compradores. Nas residências em que ainda tem gente morando, é comum estarem habitadas apenas por idosos, ou por idosos e crianças, uma vez que os adultos em idade laboral saíram tentar a sobrevivência. Inclusive, essa a principal fonte de renda dos venezuelanos que conversamos, inclusive médicos: algum parente que mora fora e envia dinheiro. Um dos resultados mais imediatos e menos comentados: a depressão é uma constante - para quem fica como para quem parte.
Diante de tal estado de calamidade, não surpreende que Maduro seja praticamente uma unanimidade - ouvi apenas um homem, um chavista convicto, defender o presidente. Que não lhe botem a culpa - não toda - pela situação que estão vivenciando, a ele fica o ônus de não estar conseguindo dar nenhuma solução satisfatória - afinal, é ele quem ocupa o Palácio Miraflores. Pior, tentando mimetizar o estilo personalista de Chávez, porém sem o mesmo carisma e sem o mesmo contexto, o excesso de propaganda com seu rosto estampado, várias em locais inapropriados - como numa praça de pedágio ou no corredor de um hospital decrépito -, ajudam a criar uma antipatia extra. O que chama a atenção é que ele ainda tem legitimidade por ser o presidente da República, ninguém o questiona quanto a isso. Guaidó, tão alardeado por nosso presidente e por nossa mídia, é um nada: ouvi seu nome uma vez, de um taxista anti chavista radical, que disse que tudo na Venezuela piorou desde que Chávez assumiu, não houve nada de bom em vinte anos; posso creditar ter sido citado indiretamente outras duas vezes, por pessoas que falaram que tiveram esperança no início do ano. Fora isso, é um zero. José de Abreu teve mais respaldo interno quando se autodeclarou presidente do Brasil.
E se Maduro é tido por inepto, a oposição não suscita qualquer ânimo, mesmo entre os ferrenhos opositores do atual presidente: as críticas mais elaboradas dizem que não tem nenhum projeto de país, apenas desejo de poder. Em geral, as pessoas apenas lamentam que é mais do mesmo, são todos corruptos. A única vez que ouvi uma menção positiva (ou próximo a isso) a um grupo opositor, foi em uma rádio católica, acerca de uma dissidência de esquerda do chavismo, o Marea Socialista, ainda assim, muito rapidamente, e sem grande ânimo. Diante desse quadro, Maduro acaba sendo tolerado por completa falta de opção.
Ao cabo, à população resta o desalento, disfarçado com uma esperança vaga, uma esperança rasa, sem qualquer ancoragem na realidade: um desejo de dias melhores, porque como está não é possível suportar muito tempo mais; uma esperança posta num futuro indefinido, que evita criar expectativas ou prazos minimamente palpáveis, para não se deparar com mais uma decepção. No quotidiano de fome e carências, a vida que se arrasta em ritmo de morte, buscando uma precária sobreviência em uma guerra não declarada - mas não por isso menos devastadora.


22 de outubro de 2019