quarta-feira, 14 de abril de 2021

O tudo bem que nos sufoca


"Oi, tudo bem?" é uma forma quase canônica de cumprimento no Brasil. Usamos (os bem educados) para cumprimentar do atendente da padaria ao bom amigo que há tempos não víamos. Questão feita, resposta dada com o mesmo automatismo: "tudo, e você?".

Há anos esse "tudo bem?" me incomoda - desde que acompanhei um amigo com crise renal ao pronto socorro, às oito horas da manhã de um domingo, e o vi cumprimentando (e sendo cumprimentado) por uma conhecida (também com cara de dor) com o "oi, tudo bem?". Se por um lado é uma demonstração de educação - o que não é pouco para estes tempos de esgarçamento da sociabilidade, consequências da reação à tímida democratização da democracia e dos direitos humanos, com a ascensão da extrema-direita neofascista e das ditas guerras híbridas -, por outro revela muito da nossa cordialidade de cala-a-boca, das interdições sociais sutilmente (im)postas.

É curioso notar que nas línguas europeias ocidentais-coloniais, o tudo bem é marcadamente do português. O "qué tal?" espanhol, o "how are you?" inglês, o "comment ça va?" francês, o "wie gehts?" alemão, se traduzidos mais fiéis à letra, significam "como está". Se cumprem, numa primeira camada, a mesma função do "tudo bem", num segundo momento oferecem abertura à resposta do interlocutor.

O tudo bem, se se analisar mais detalhadamente, direciona a resposta. Não é uma pergunta aberta, que convida a uma resposta pessoal, não se pergunta como a pessoa está: ela é um protocolo, sinaliza qual deve a resposta do interlocutor, se não quiser ser inconveniente. É uma mostra de educação e descaso ao mesmo tempo: pergunto como você está, mas se estiver mal, por favor, não me diga: quero saber que está tudo bem.

É parte da construção do mito do brasileiro como um povo alegre: provavelmente nos dizemos alegres porque não nos é dada a oportunidade de admitir nossa tristeza, ou mesmo nuançar nossas emoções (perguntei a amigos residentes em Portugal, dizem que lá se usa também o “tudo bem”, mas não com a mesma hegemonia que aqui). Estamos sempre tudo bem. Mesmo em meio a pandemia, seguimos com essa pergunta completamente sem sentido diante de quatro mil vidas perdidas por dia - apenas para o COVID -, desemprego, fome e uma série de inseguranças quanto ao futuro. E noto que as pessoas seguem respondendo com o automático "tudo", a ponto de causar estranhamento minha resposta habitual: "felizmente estou bem no que posso estar, mas, não, não está tudo bem". Não por acaso, o Brasil é o segundo país com maior número de depressivos nas Américas - fica atrás apenas da terra do mito do sucesso individual, os EUA. 

Christian Dunker, em entrevista à BBC [http://bit.ly/dunkerbbc1], por conta de seu novo livro, Uma biografia da depressão, comenta que a "depressão e ansiedade acabam sendo duas formas de sofrer que vão compactando a narrativa, a tal ponto que o sujeito acaba se resumindo a 'eu sou um depressivo'. Faz parte da depressão esse déficit narrativo, essa demissão de contar sua própria história, sua vida, e dividi-la com o outro". Indo ao seu encontro, podemos dizer que o "tudo bem" é um desses compactadores da narrativa nas relações interpessoais - dos mais arraigados. Tudo bem? Tudo. Estamos sempre bem, tudo está sempre bem. Até que a tristeza negada de ser compartilhada, numa tentativa de alívio, transborda e nos toma. Ao depressivo brasileiro, a culpa por não estar na grande comunhão nacional da alegria, ou a culpa por mentir: tudo.


14 de abril de 2021


quarta-feira, 17 de março de 2021

Fase emergencial: é proibido, mas se quiser pode (até porque os governos não dão alternativas)

Foto de paralela da 25 de Março, no dia 17
Há um meme na internet, foto de uma placa que remete a bailão do interior, em que diz: "É proibido dançar agarrado. Mas se quiser pode". A fase emergencial na capital paulistana, com várias e rígidas restrições, parece esse aviso: é proibido, mas se quiser pode. No trajeto para o trabalho, oito da manhã, várias pessoas nas ruas, o habitual fluxo de ida para o trabalho, com as bancadas de café da manhã imantando trabalhadores de diversos setores. Na Sé, a prefeitura se esmera na limpeza da rua com um caminhão pipa - e azar de quem está dormindo sobre o asfalto ainda frio. Aparentemente, tudo normal. Na volta, meio da tarde, é que se percebe pequenas mudanças, entre elas o "se quiser, pode". 

Na 25 de Março, os vendedores estão nas ruas, anunciando cabelos, tênis, camisas de times, acessórios para celulares, armação para óculos e outros artigos do gênero (achei exótico um que oferecia "cigarro, remédio, eletrônico"). As lojas estão com as portas fechadas, mas basta bater nela que você está autorizado a comprar algum dos bens de primeira necessidade citados acima; há também a opção delivery pelo WhatsApp: você chama no número e eles abrem para sua você entrar escolher o que vai ser entregue após pagar a conta. Afinal, o que é a vida se não for para consumir, mesmo que produtos falsificados, numa vã esperança de que sua vida se pareça com as peças publicitárias que vendem uma felicidade irreal? 

Nas periferias - extremo leste e sul, que foi onde circulei -, algumas lojas maiores estão fechadas, mas o pequeno e médio comércio seguem normais. O motorista critica que pobre não respeito as leis, eu tento dar uma suavizada nessa moral simplória de certo e errado sem atentar para qualquer nuance: a situação é complicada: sem um auxílio emergencial que faça minimamente frente aos gastos habituais, os trabalhadores ou trabalham ou morrem de fome (esses R$ 250,00, conseguido às custas do salário futuro de médicos do SUS, professores, policiais e outros funcionários públicos, é um arremedo que soaria como escárnio não estivéssemos em situação calamitosa); donos de pequenos negócios - no fundo proletários iludidos que são proprietários de algo -  sem apoio governamental correm o risco iminente de falir; os grandes capitalistas e seus asseclas, esses se opõem a medidas restritivas por união carnal do capital com o sofrimento, que tem a morte, a escravidão e a miséria como seus frutos mais abundantes - nada de novo na essência, apenas explicitado sem verniz ideológico. 

O que notei de mudança grande diante do meu trajeto de duas semanas atrás foi o tanto de pessoas usando máscara: até parece que estamos numa pandemia!

Esse fato me chamou a atenção e me fez pensar muito sobre: de onde teriam as pessoas voltado a perceber que a pandemia está grave - ou melhor, que há uma pandemia -, se há mais de um mês essa bola é cantada por gente séria, com estados então beirando o colapso e Manaus dando um trailer do inferno que nos espera? Dez dias atrás, no centro de São Paulo, reparei que máscara tinha virado pulseira, que se punha no rosto na hora de entrar no transporte público, alguns ainda ostentavam o nariz pra fora, para mostrar que não são maricas ou medrosas; tanto que faz umas semanas que, tendo notado a esbórnia geral, tratei de me conformar a pagar caro em máscaras hospitalares PFF2, já que ficar em casa não me era permitido, e apesar de saudade enorme de uma sala de teatro (já autorizadas pelo protocolo do governo - pretensamente atento à ciência - de São Paulo), preferi me resguardar todo tempo no qual não sou obrigado a sair. Terá sido passar 2.500 mortes diárias, porque até 2.499 não surtia efeito? Não me parece o caso.

Sei que é fácil fazer previsão de fatos consumados, mas me parece que, para além do mau exemplo dado pelo prefeito e governador (o presidente é desnecessário dizer), houve uma falha grave na hora de estabelecer as fases de abertura dos setores da economia. Não que não se possa dizer que não havia como prever: a forma como foi estruturada essa abertura gradual poderia ter se utilizado como uma das referências as pesquisas sobre rotulagem de alimentos ultraprocessados: as versões coloridas e nuançadas não tem o mesmo efeito das que imprimem um triângulo de alerta para alimentos com alto teor de açúcar, sódio e gorduras (pouco importa se esse alto é excessivamente alto, muito alto ou apenas alto, se é alto é alto. O site O Joio e o Trigo tem acompanhado com ótimas reportagens o assunto: http://bit.ly/JoioRotulagem). O mesmo dá para imaginar que se passou com as fases de abertura da economia: ao propôr quatro fases antes da volta à normalidade, e ter em novembro admitido que se chegara à verde - a quarta e última com restrições -, o recado passado foi: relaxa que a coisa já se encaminhou pro final. As amigas da minha então companheira, por exemplo, cansadas do isolamento e se sentindo autorizadas pelas autoridades, aproveitaram novembro para ir para a praia: máscara no caminho, mas chegando lá, área aberta e fase verde, para quê seguir com ela? O sinal verde é sinal de avançar - a pandemia está ficando para trás.

Deixo de lado a questão do quão essa entrada na fase verde - ao menos sua duração - foi eleitoreira, o ponto é: numa pandemia, ainda sem vacina e sem tratamento efetivo para a doença, não se pode dar a impressão de que o pior já passou e é questão de tempo de tudo se normalizar. Não se tratava de manter restrições rígidas, pois há de fato um esgotamento da situação de confinamento (dos que puderam ficar isolados), mas ao se estabelecer as etapas de abertura, deviam ter pensado nos seus efeitos psicológicos também, e decidido que as duas últimas antes da normalidade só poderiam ser alcançadas com total segurança: nem que para dar essa impressão se aumentasse de quatro para seis fases restritivas antes da normalidade, e não se passasse da quarta, que seguiria os parâmetros tal qual é hoje (que me parecem bastante lassos); haveria nesse caso sempre um aviso implícito de: ainda temos duas etapas antes de chegar à normalidade, então aproveita um pouco, mas não relaxa demais. Tenho a impressão de que foi esse o recado dado pelas restrições severas impostas atualmente, e por mais que as pessoas sigam saindo, por obrigações laborais ou fadiga de confinamento, o desdém com as máscaras voltou a ser minoritário.

Queria que esta fosse uma reflexão impotente, uma vez que, graças às vacinas, a pandemia estaria caminhando para seu fim. Infelizmente, a inoperância do governo federal não nos autoriza vislumbrar fim próximo para esta tormenta. Que ao menos consigamos passar pelos próximos momentos mas cientes do que devemos fazer - os que tiverem oportunidade de seguir vivos.

17 de março de 2021

PS: vejo nas notícias que o governo do Estado, com um ano de atraso, toma algumas medidas para tentar evitar uma maior quebradeira de pequenas e médias empresas e minorar o sofrimento de trabalhadores. Não havia um economista sério na equipe de Doria Jr, capaz de prever isso logo no início da pandemia? Já o prefeito Bruno Covas, ao invés de decretar um lockdown, antecipa feriados. A ver como será este ano, mas em 2020 as pessoas levaram bem ao pé da letra essa antecipação de feriados: trataram de aproveitar o feriado: descer pra praia, ir para a parte não cercada do Ibirapuera, passear, curtir com a família. Novamente, ao recusar o lockdown, a mensagem que se passa é de que não é tão grave assim. São Paulo é governada por dois amadores incompetentes que se destacam apenas porque no governo federal temos um competente genocida que se regojiza com a morte.