quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Lula e o PT precisam de uma leitura crítica e pessimista das nossas elites

Em sua participação no GGN 20h de terça-feira, 01 de fevereiro [https://youtu.be/iKCk-RphfUY], Pedro Serrano comenta sobre sua preocupação com a integridade física do presidente Lula - que já sofreu um atentado a tiro no Paraná (na região do Dallagnol, por sinal), em 2018, nunca investigado. Pego esse gancho para comentar a entrevista dada pelo ex-presidente a parte da imprensa progressista, em 19 de janeiro. O assunto não é o do momento, mas ainda é relevante. 

A entrevista foi ótima, com Lula marcando muito forte a necessidade de construção democrática via participação democrática - há um personalismo, mas que se apresenta como catalizador e não como quem vai resolver. Houve quem analisasse melhor a coletiva; aqui, quero pontuar dois momentos que me chamaram negativamente a atenção. Ambas, creio eu, são frutos da mesma falha de análise das elites brasileiras por parte do PT. 

O primeiro momento diz respeito à segurança de Lula. Aproximadamente aos 32 minutos, Luis Nassif, do GGN, pergunta sobre o risco de algo acontecer a Lula e Alckmin assumir. Após Lula esbanjar seu otimismo, dizendo que Alckmin é leal e ele pretende viver até os 120 anos, Nassif põe a coisa em termos mais concretos: milícias, escritório  do crime, ou seja: um atentado contra o presidente. Lula responde que não trabalha "com essa preocupação, mesmo sabendo que ela possa existir", pois o Brasil "não tem essa cultura" do assassinato do oponente, antes a da mentira.

Primeira falha: vamos aceitar que o Brasil não tenha "essa cultura", acontece que estamos vivendo a ascensão do neofascismo, se espalhando pela sociedade sem controle, com gangues, máfias e milícias, com ex-militares, religiosos e fanáticos de toda sorte. Se não tinha essa cultura, pode vir a ter agora - e os tiros no seu ônibus, em 2018 são uma pequena amostra.

Segunda falha: esse pressuposto de o Brasil não ter essa cultura de violência política. Lula com isso repete uma fantasia criada por parte das nossas elites, a do povo cordial. Talvez boa parte da população brasileira possa ser cordial, mas nossas elites não o são, nunca foram, e seus capatazes atuam exatamente como elas gostariam que atuassem: com violência, com assassinato, com extermínio, com tortura, sob a lógica do medo permanente. Dos capitães do mato a Felinto Muller, do delegado Fleury aos Bolsonaro e seus amigos de negócios, dos assassinatos de indígenas pelo agronegócio e pela mineração ao assassinato do congolês Moïse por cobrar a jornada que lhe era devida, dos 111 mortos da chacina do Carandiru ao mortos diários pela polícia em autos de resistência. A história do Brasil é uma história de violência contra população e resistências várias por parte dela - resistências ignoradas e desdenhadas por boa parte da nossa elite intelectual (inclusive de esquerda), que só sabe enxergar a partir dos modelos importados da Europa e EUA: a capoeira, o carnaval, os terreiros, as CEBs, e tantas outras são vistas como algo menor - resistências de segunda linha -; acusam a população de ser passiva (enquanto ela própria só arrota teorias sem nunca enfrentar as ruas), sendo que em um baile funk a PM mata 9 e tem o aplauso do governador!

O segundo momento complicado foi com cerca de uma hora e dois minutos, na resposta dada a Paulo Donizete, da Rede Brasil Atual, sobre a questão da industrialização e desenvolvimento sustentável. No fim de sua resposta, Lula diz que nossas elites "não se dão conta que não há democracia sólida se a sociedade não estiver bem estruturada do ponto de vista organizacional".

Pergunta que fica: nossas elites não se dão conta ou não tem interesse? Democracia para boa parte da nossa elite é totalmente dispensável, ou não teriam dado todo apoio à ditadura militar (ditabranda, dizem alguns); não teriam apoiado (mesmo que veladamente) e eleição de um candidato que defende a ditadura e cujo vicia anunciava um autogolpe. Para uma parte diminuta das nossas elites, a democracia vale como adorno para se apresentar em salões no exterior: pega mal vir de um país com um ditador (ainda mais um ditador amigo), não é a coisa mais agradável dizer que em seu país não tem eleições. Democracia de fato, nunca houve interesse da maior parte das elites brasileiras (inclusive das elites intelectuais, que se julgam muito acima do povo) e de boa parte de uma classe média que atua como sabujos dessas elites, esperando colher alguma migalha para poder se distinguir de seus pares de classe.

Segundo ponto: nossas elites econômicas são uma elite de rapina, praticam um capitalismo de butim no Brasil, são herdeiras diretas da mentalidade colonial - mesmo que tenham ascendido recentemente.

Parece que falta ao Lula e à inteligência do PT uma leitura crítica e pessimista das elites brasileiras. Quando falo em leitura pessimista não é ser fatalista, achar que é assim mesmo, e não vai mudar. É trabalhar a partir disso, de modo a enquadrar essas elites num projeto de nação de longo prazo, sem chance de usar políticas do governo para deslanchar seus negócios para, em seguida, abrir o capital na Bolsa de Nova Iorque, mudar a sede para os EUA, e a residência para Miami; ou então vender para o primeiro estrangeiro que fizer uma oferta razoável - como nos casos do projeto dos "campeões nacionais" que o PT tentou implementar apostando apenas na boa fé de nosso empresariado, como se capitalistas como Roberto Simonsen fossem a regra e não a exceção.

Lula está certo em defender a reconstrução do Brasil em bases democráticas, com participação de todos os setores da população - ainda que isso vá ocorrer dentro das limitações de uma democracia representativa liberal burguesa, por ora uma democracia de baixa intensidade, sem raízes na sociedade e sem lastro em boa parte da população. Contudo, tão importante quanto trazer o pobre para o orçamento e para as discussões e construções das políticas públicas, está em criar contrapartidas rígidas e de longo prazo para os capitalistas nacionais - as nossas elites. Negociadas até certa altura, mas em outra, restringindo, em favor de todo o país, as liberalidades que os donos do dinheiro sempre tiveram no Brasil. Haverá a ameaça de fuga de capitais, de que vão abandonar o Brasil. Sejamos realistas: como provam até hoje, farão isso assim que tiverem oportunidade, não importa quão pouco impostos paguem aqui, quão poucos direitos sociais tem seus empregados: o Brasil, para a maioria da nossa elite, é só um fazendão para fazer dinheiro que será desfrutado no dito mundo civilizado.


02 de fevereiro de 2022

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O apagamento do humano no corpo humano

Lendo Os Anormais, do Michel Foucault, e fazendo associações aleatórias sem muito rigor, como é do meu feitio, a apresentação do autor da dialética e forças em conflitos que permeiam o corpo do prazer e do desejo a partir do século XVII fez com que relacionasse com o discurso de vários grupos feministas atuais sobre a “invisibilização” do corpo feminino - e que o mesmo vale para o masculino, acrescento eu.

Parece contraditório: o corpo feminino é ainda muito visado e utilizado, principalmente o corpo que se encaixa nos padrões de beleza da indústria cultural (que movimenta toda uma série de ramos industriais paralelos). Se no passado os difusores desses padrões se centravam na publicidade de agências e nas concessões públicas de televisão, hoje está espalhado pela internet e redes sociais, com suas milhares de influenciadoras digitais em potência ou em ato – numa triste democratização do trabalho de reificação do outro a partir de si, feito sem consciência. 

É mais que conhecida a crítica de que padrões de beleza irreais são mobilizadores de desejo e, ao mesmo tempo, de insatisfação, os quais são canalizados para o consumo (de homens e mulheres). Ao lidar com o corpo do desejo, o espetáculo busca instrumentalizar o inconsciente, o desconhecido de cada um para si próprio, para um fim racional-utilitário. 

Parte das críticas a essa instrumentalização, ao invés de visarem o consumismo subjacente a essa estetização (proto-fascista?) do corpo, acabam por mirar no próprio corpo – esteja no padrão ou não –, gerando cruzadas contra o corpo feminino (ou feminizado, no caso de homossexuais masculinos, travestis e mulheres trans), perceptível tanto em grupos conservadores e reacionários, quanto em grupos ligados a pautas identitárias: ambos tentando normatizar o desejo do outro a partir de seus ideais de usos verdadeiros e autorizados do corpo e da imagem.

Ao mesmo tempo que tem toda essa visibilidade, vários grupos feministas denunciam que o conhecimento mesmo do corpo pela mulher (e pelo homem também) passa ao largo. Nos últimos anos tenho notado a emergência de vários coletivos que se centram no empoderamento feminino a partir desse autoconhecimento mais elementar - cada um com sua abordagem, algumas mais críticas, outras esotéricas e bastante “ingênuas”. Conhecimento que é também a assunção do corpo como local de desejos e de prazeres legítimos – não só desejos do outro, tal qual geralmente posto à mulher na “divisão social do prazer”, e sim do próprio sujeito. 

Como mostram os contos do Marquês de Sade, na virada do século XVIII para o XIX, a ignorância é uma benção - para os dominadores. Vivendo em sociedade, em uma estrutura machista, se constituindo a partir das relações tecidas no dia a dia, se conhecer, conhecer seu corpo para além das funções médico-biológicas e espetaculares, reconhecer seus limites, seus desejos e seus prazeres, soam tarefas micropolíticas primordiais – até para que grandes mudanças estruturais na sociedade que venham a acontecer tenham raízes firmes para não sucumbirem ao primeiro sopro reacionário. De quantas mulheres não li o relato – ou mesmo os ouvi pessoalmente –, de que só foram ver sua vagina e tentar conhecê-la depois de provocadas por esses grupos de empoderamento a partir do próprio corpo, que só se autorizaram ter prazer e gozar durante as relações sexuais depois de mais velhas, do divórcio ou da maternidade – estas, numa dupla heresia a vários desses grupos que combatem o prazer: uma mãe que ainda busca o sexo.

Há, contudo, um ponto no discurso desses grupos que preciso discordar: não raro fazem um paralelo entre o desconhecimento do corpo da mulher por ela própria com o fato de que os homens seriam desde cedo estimulados no sentido contrário. Nada mais equivocado. Uma sociedade onde as pessoas conhecem seus corpos, experimentam-no de diversas formas e tem prazer com ele é uma sociedade com menos insatisfeitos, com menos gente disposta a destruir – seja a felicidade alheia, seja a si próprio, seja a natureza, via consumo desenfreado. Homens, por mais que tenham facilitados os acessos para posições de mando, graças à estrutura patriarcal da nossa sociedade, ainda assim estão na estrutura geral do capitalismo-espetacular como consumidores – não podem estar satisfeitos ou não consomem.  

Via de regra, o menino é estimulado a se masturbar e ensinado que todo o prazer emana de seu órgão genital – para si e para a mulher. Assim, no homem já (de)formado, seu prazer sexual se vincula estritamente ao pênis – sendo que boa parte dos homens sequer sabem lavá-lo direito, achando que o esmegma é capa protetora da glande. Outras zonas erógenas do corpo não são apenas desconhecidas, como temidas - um arrepio por um estímulo em outra região pode ser prova de fraqueza, que põe a masculinidade em risco. 

Esboço de foto-performance para o texto,
executado sem muita qualidade


Que a criança tenha tido a sorte de não ter uma educação machista – como este escriba –, ainda assim o corpo masculino, dentro do ideal fortemente posto e cobrado pela sociedade, deve ser um corpo rijo, duro, firme, forte, um corpo sob controle - seja o corpo trincado de academia, seja o corpo do homem desleixado com a aparência, que acha sua barriga flácida sexy enquanto critica mulher que tem celulite ou pelos. As implicações psicoemocionais para os homens são muitas e foge do meu escopo enumerá-las aqui - assim como suas consequências em cadeia para outras pessoas do seu entorno. Sigo centrado no corpo: os movimentos tidos por mais sensuais, mais femininos, o serpentear, o rebolar, não cabem ao corpo masculino: sinalizaria não apenas um homem homossexual (como se isso fosse qualquer demérito), como, pior, um emasculado – vale recordar que “seja homem” ainda hoje é um chamado à honra bravia, pretensamente superior, e muitas vezes aplicado às mulheres também. (Me vem agora um insight: se a capoeira não seria uma resistência negra também contra esse enrijecimento do corpo praticado pela cultura europeia-branca-cristã).

O masculino na nossa sociedade, já apontava Bourdieu em A dominação masculina, é uma espécie de varinha mágica que tem o dom de tornar o que toca automaticamente superior – o contrário acontece com o feminino: daí que qualquer gesto que faça alusão ao feminino ou à posição da mulher é rebaixador, é ridículo (vide várias comédias de Hollywood), é inferior e deveria ser evitado por pessoas razoáveis - afinal, estamos numa sociedade liberal-meritocrática, em que o que importa é ser vencedor, ser superior: toda inferioridade seria uma mácula (expediente instrumentalizado para adesão cega ao líder fascista). Trago um relato próprio quanto a isso: quando comecei a fazer dança contemporânea, com o curso de “Técnicas e Pesquisa de movimentos”, com a Key Sawao, mesmo tendo feito anos de yoga e tai chi, tive que entrar em outra qualidade de movimentos - e que não eram meras imitações do que o professor mandava. A dificuldade nesses movimentos não foi o de fazer, mas de aceitar que eu estava tendo iniciativa de fazê-los; incomodava não por ser uma postura que socialmente fosse encarada como inferior (como a do cachorro, no yoga, que eu fazia sem dramas), mas por apresentar a mim mesma prazeres com meu corpo em movimentos que não são “autorizados” a um homem - anos depois, com muita análise e crises, me daria conta de que desde criança não me identificava com o gênero masculino, nunca fui “homem”, apesar de todo esforço em me encaixar, e isso foi consequência de romper essa primeira armadura do corpo masculino, rijo e sob controle.

Nosso corpo - independente do sexo biológico e do gênero - guarda um manancial de potencialidades, abafadas pela tradição europeia decorrente da reinterpretação da filosofia grega, principalmente a platônica. Reprimir tais potencialidades já foi útil à Igreja católica - e vem sendo novamente útil às neopentecostais -, já foi útil ao sistema capitalista (por afinidades eletivas, como dizia Weber) para forjar o corpo produtivo, que parece agora descobrir que explorá-lo de modo controlado pode gerar uma nova fronteira de lucro - infelizmente, vários grupos identitários acabam reforçando esse movimento, ao traçar limites de como devem ser as pessoas da minoria ou da dissidência sexual que elas representam, como acusam Elizabeth Badinter e Judith Butler.

Que tenhamos coragem e organização para, numa afronta à sociedade e a quase dois milênios de história, podermos ser livres com nosso corpo - nos usos, movimentos, experimentos e prazeres que tiramos dele. E que a partir desse corpo, expandido para além da imagem que vemos no espelho e das relações hierarquizadas com que fomos educados, consigamos construir também outras qualidades de relações com pessoas e corpos que nos envolvem.

Movidas pela necessidade, mulheres e transexuais já começam a se embrenhar nessa direção; os homens (principalmente os heterossexuais), imaginando terem poder numa estrutura em que, no máximo, são os capatazes, ainda tardam para perceber sua real condição e atacam aquelas pessoas cuja coragem deixa evidente seu comodismo, sua covardia submissa.


10 de janeiro de 2022