sábado, 5 de março de 2022

Estamos discutindo Arthur do Val e não as violências contra as pessoas vulneráveis


A polêmica envolvendo o turismo sexual de guerra do deputado estadual do Podemos, Arthur do Val, e seu colega de fascismo, Renan dos Santos, é só mais uma mostra da latrina que se tornou nossa política institucional - e que não é mais que reflexo de toda nossa sociabilidade.

Desnecessário maiores adjetivos à atitude abjeta do integrante do MBL - esse movimento tão querido da Globo, Folha, Bolsonaro, Moro, liberais da Faria Lima e outros -, mas convém salientar que é difícil fazer um ranqueamento para apontar o que de mais escroto já saiu da boca de um político (eleito, em campanha ou usando o judiciário e o MP) nestes últimos tempos, desde que a dita Grande Mídia deu palco a todo mundo que se opusesse ao PT e às pautas sociais. O pior é que seguimos discutindo o último espalhafato, ao invés de discutir suas causas, exatamente como é o desejo dessas polêmicas lançadas seguidamente: muita discussão sobre um fato isolado, deixando para o plano secundário as questões relevantes.

Arthur do Val não é primeiro cidadão ou deputado a fazer turismo sexual, nem a aproveitar da condição social de outrem para gozar com seu corpo. Não fosse o contexto de guerra aberta na Ucrânia e seria capaz de haver quem defendesse a atitude do marmanjo por estar “vingando” o turismo sexual que europeus fazem no Brasil (com estímulo dos governos militares, inclusive o atual [https://bit.ly/3MnEL7D]). Afinal, defender estupro de colega de Câmara dos Deputados ou encoxar colega na Alesp não mereceram mais que reações indignadas em redes sociais, sem efeitos práticos aos deputados que cometeram tais crimes - o que permitiu, no final, a eleição de um deles para presidente do Brasil.

O erro de cálculo do “garoto” do MBL talvez (talvez!, a ver como será sua votação em outubro) tenha sido o momento: uma guerra hiper-televisionada e dramatizada na Europa. Muitas das pessoas que hoje se mostram chocadas (tipo Sérgio Moro e seus seguidores), nunca se incomodaram com as notícias (que com muito sofrimento ganham alguma luz na imprensa tradicional) de fatos exatamente iguais ou então muito similares que acontecem na África, na Ásia, na América Latina ou no próprio leste europeu - desde o avanço do capitalismo por aquelas terras, onde antes não se tinha a liberdade de vender o corpo (ou parte dele) para não morrer de fome (o filme “Coisas belas e sujas”, do Stephen Frears, já denunciava prostituição forçada e venda de órgãos por parte de refugiados em pleno coração da Europa que se diz civilizada, a Inglaterra). E não nos esqueçamos de tudo o que é feito em nome de Jesus - enquanto a mídia corporativa mantém seu discurso islamofóbico diário.

O foco no fato isolado - um deputado estadual fazendo prospecção para turismo sexual de guerra na Europa - abafa as discussões acerca das causas tanto do comportamento machista e perverso dele quanto das condições que permitem que ele possa se aproveitar dessas pessoas. Migrantes e refugiados são sempre populações altamente vulneráveis - sem diminuir a dor dos ucranianos que hoje vivenciam isso, ouso dizer que eles estão em situação menos horrível que pessoas de outras nacionalidades, cuja cobertura e dramatização por parte da mídia é ínfima (quando existe) e violências de todo tipo são de uma banalidade como o nascer do sol.

E quais as causas (a causa, segundo boa parte da opinião mundial) da guerra que força essas pessoas a migrarem? Seriam desejos de um presidente descontrolado (como nossa grande mídia apregoa) ou uma questão estrutural, da forma como a riqueza é produzida e a renda distribuída, além de outros fatores? E como mudar isso? Trocando dirigentes e desligando a torneira de casa na hora de escovar os dentes, ou entrando com ações contundentes contra suas causas - a começar pelo direito de propriedade dos meios de produção, um direito absoluto, que autoriza o assassinato de pessoas quotidianamente (como diz o grupo Magiluth, de Recife, em seu espetáculo “Estudo nº 1: Morte e Vida”: ninguém morre de fome, se alguém morreu de fome é porque foi assassinado).

A atitude do integrante do MBL deveria ser o estopim para discussões mais amplas e aprofundadas - além de cobrança de cassação do mandato. Pelo que noto, contudo, não estamos conseguindo fugir da armadilha posta. Agimos segundo a lógica das redes sociais: elegemos um bode expiatório, discutiremos alucinados esse caso bem específico, esperando pela próxima polêmica do mesmo tom. Hoje é Arthur do Val, ontem foi Fernando Cury, anteontem, Marcos Feliciano, antes foi Jair Bolsonaro, antes ainda Gervásio Silva, e assim seguimos: mudam os nomes, seguem as atitudes. Estamos perdendo.


05 de março de 2022


PS: eu revisava este meu texto quando me repassaram o artigo do grande Jamil Chade, “Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz” [https://bit.ly/3KpscXT]. Acho que o artigo é dolorosamente preciso nisso que tento apontar aqui: Arthur do Val beira a irrelevância diante de todo o quadro. Que seja cassado, mas vamos tratar da dor das pessoas cuja miséria servem de alimento para tantos homens - na Ucrânia como no Brasil ou na África.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Eataly, uma experiência

Meu irmão e sua companheira estavam em São Paulo e decidiram conhecer o Eataly, uma vez que estávamos perto. Eu nunca havia ido lá, mas diante do convite resolvi aproveitar a oportunidade. Não que eu tivesse tido qualquer interesse algum dia, ou que tivesse surgido na hora, diante da possibilidade iminente: fui só para acompanhá-los, mesmo - até porque achei que seria um bom momento para ir a um mercado caro: como havíamos acabado de almoçar, os riscos de cair em tentação diminuem drasticamente. Diante das minhas baixíssimas expectativas, devo admitir que fiquei surpreso com o local, a ponto de querer compartilhar aqui com minha meia dúzia de leitores eventuais - eu que não sou adepto de resenha de consumo.

O mercado está localizado em região nobre da capital, perto da radial oeste - mais conhecida por avenida Faria Lima. Ao chegar, fica evidente um primeiro problema: não há serviço de vallet (não logo na entrada, pelo menos). Uma coisa é o prazer de dirigir que Doria Jr e sua versão sem sapatênis que ocupa o Palácio do Planalto sempre apregoam, outra, muito diferente, é fazer baliza. Enfim, como eu não sei sequer dirigir, e fomos à pé, não me alongo neste tópico, mas achei importante constar.

Como não se trata de um mero mercado, é mais que um mercado (como não pensaram neste slogan? Chama que faço um preço camarada pelo direito de uso), ninguém vai lá para fazer compras ou uma refeição: vai para ter uma experiência - e postar no Instagram, claro. 

Para fazer o distinto público se sentir na Itália, frases em italiano nas paredes e nomes em italianos para os produtos. Só o banheiro tem nome francês - e eles até pedem desculpas por isso. Ok, esse lapso passa - mas só porque na porta está "uomo" e, desconfio, mulher em italiano no banheiro feminino (que fica depois do masculino, por isso não fui conferir). Por falar em banheiro, achei a qualidade muito próxima da de banheiro de aeroporto, ou seja, já vi banheiro de shopping muito melhor. 

O sorvete que meu irmão comprou antes de sairmos não era um sorvete, mas um gelato, com preço de dois litros em um copinho de duzentos mililitros. Ao ser entregue em suas mão, como um aviso de que estava prestes a ter outro nível de experiência, ele não recebeu um desnecessário "bom apetite" ou "bom proveito" da atendente, mas um desnecessário e brega "buono gelato". Poderia ser pior? Poderia, mas não me vem nada à mente agora.

Claro que a atendente do buono gelato, assim como várias outras funcionárias e funcionários e os seguranças atendiam aos padrões tupiniquins de democracia racial: eram negros, servindo brancos e alguns asiáticos, todos em perfeita harmonia, mostrando aquilo que Kamel sempre repetiu: não há racismo no Brasil. Não que na Itália e na Europa não tenha racismo ou tenha um racismo do bem, apenas acentuo as cores tropicais que o mercado soube tão bem marcar.

O espaço do mercado não é muito grande, mas ainda é maior que o do Mercadinho Tem de Tudo, que fica aqui na esquina de casa - e que recentemente teve uma reforma, perdendo um bom espaço nos fundos, adaptado para duas quitinetes, digo, studios para locação -, e com uma variedade um pouco maior de produtos, todos importados: café italiano, vários tipos de azeite da mesma marca, água mineral islandesa e água de côco do Sri Lanka. Uma versão com metade das coisas, tudo pelo dobro do preço, do que é encontrado na rede de quitandas que pertenciam ao seu Abílio - o parâmetro de mercado chique que eu tenho para comparar. Destaque para o ovo de galinha a R$ 44,00 a dúzia (e pensar que até esta semana pegávamos o ovo ainda quente das galinhas na casa de minha mãe, a um custo razoavelmente mais baixo).

A parte de bebidas parece maior, mas na verdade se trata de muitas garrafas dos mesmos produtos dispostos de maneira a dar a impressão (e todos, sempre, pelo dobro do preço que se acha por aí). Há algumas bebidas que eu não havia visto nem mesmo na zona cerealista, como uma grapa de R$ 1.299  (esse número mostra o público que frequenta - classe média a prestações sempre flertando com o rotativo do cartão pra garantir a boa aparência) numa garrafa que passa a impressão de muito frágil, esperando o primeiro desavisado pegá-la e ser obrigado a pagar porque a quebrou. Achei uma boa estratégia de vendas para um produto como aquele. Em tempo: não achei sequer um conhaque Remy Martin Louis XIII, um Henessy Richard ou algo nessa faixa. Ou seja, nada de bebida pra rico.

Mas se o mercado não é nada demais, as lanchonetes, cantinas, caffetteria, snack bar, bagulhos de comida, sei lá como chamar, parecem ser do mesmo nível. Não sei da qualidade do que ali é servido, só que certamente não valem o preço que é cobrado. Mas se tem otário disposto a pagar vai ter esperto disposto a oferecer. E se fizer uma publicidade com conto da carochinha para adultos infantilizados - qualquer besteira, como inventar que as vaquinhas ganham beijo de boa noite antes de dormir, para darem leite feliz na manhã seguinte -, dá pra acrescentar ainda mais 20% no valor. Parafraseando Racionais MC's: o novo rico sai da praça de alimentação, mas a praça de alimentação não sai do novo rico.

Em suma: minha experiência antropológica no Eataly durou cerca de vinte minutos, foi tempo demais.


19 de fevereiro de 2022