sexta-feira, 26 de abril de 2024

Quando novos sujeitos compõem a cena [Diálogos com o teatro]

Parece haver um interessante movimento nas artes desde que certo establishment se viu obrigado a se abrir não apenas a pessoas de grupos marginalizados, como aceitar diferenças na forma de propôr o que se apresenta.

Faz um tempo que tento identificar o que chamo de “pensamento branco” e “pensamento não-branco”. A generalidade no não-branco se dá não por arrogância, mas por reconhecer ainda grande dificuldade em perceber as nuances fora dos parâmetros em que fui educado desde sempre - seja no dia a dia, seja nas artes.

Três peças de teatro a que assisti recentemente me chamaram a atenção pela mudança sutil mas marcante de enfoque: “Bom dia, eternidade”, do grupo O Bonde; “Cena Ouro”, da Cia Mungunzá; e agora “eXílio”, do Coletivo Comum - mas poderia citar outras, vistas há mais tempo, como “Muitas ondas são o mar”, com direção de Key Sawao; “A cidade dos rios invisíveis” e “Reset Brazil”, do Estopô Balaio.

Em comum, os espetáculos referidos tratam de populações historica e atualmente marginalizadas. Não se furtam de trazer as agruras sofridas pelas pessoas sob tais estigmas, denunciar o comportamento geral (nosso comportamento?) da nossa sociedade diante de tais pessoas, contudo fogem do que era muito comum até pouco tempo atrás, de espetáculos que se encerravam no denuncismo do mundo cão, quase uma espécie de Datena gourmet. 

Faço esta crítica apenas agora porque por muito tempo via nesse tipo de discurso algo de impacto - salvo quando era algo muito exagerado, como um dramaturgo e um coreógrafo aclamados na cena paulistana, brancos, demasiadamente brancos em suas propostas, que não iam além de um mundo-cão estéril e paralisante. E de fato, branco classe média, me impactava esse denuncismo - e se não me paralisava talvez fosse por qualquer questão de consciência de classe, ensinada por meus pais.

Fã do Coletivo Comum desde quando se chamava Kiwi Companhia de Teatro, senti algum estranhamento em “eXílio”, mesmo se comparado a “Universo”, a que assisti recentemente. E foi pensando nesse estranhamento que notei o que parece ser a consequência da entrada desses novos protagonistas não apenas para atuar, mas para autorar várias peças.

O foco agora parece ser a construção de resistências e subjetividades, formas de estar no mundo, apesar de todas as dificuldades, de todo o aparato estatal e paraestatal posto na contramão dessas populações marginalizadas. E se parece óbvio agora que noto - afinal, não somos o país da capoeira, do samba, do sincretismo religioso, tudo forjado nas frestas deixadas pelos senhores de escravos e seus descendente? -, por muito tempo essa dimensão estava ausente, porque esses sujeitos também estavam ausentes dos palcos e, principalmente, das coxias. 

E isso porque por muito tempo público, críticos, produtores e curadores eram majoritariamente brancos - se não na pele, no pensamento -, e mesmo quando buscavam inovações, ficavam dentro de certas balizas que não permitiam a essas populações ascenderem como sujeitos - era um olhar de quem está fora, de quem tem empatia, mas não de quem vivencia, sente na pele, na alma.

Que dessa cena teatral paulistana que desponta quebrando - de fato - nossas formas brancas de ver e produzir arteconsciência - de se pôr e estar no mundo -, surjam novas formas de resistência, capitaneadas por aqueles que há séculos resiste - exitosamente, ainda que parcela das nossas elites intelectuais não seja capaz de perceber - a várias formas de exploração, dominação e apagamento. Viva o teatro feito com as margens!


26 de abril de 2024

quarta-feira, 17 de abril de 2024

A terceirização das guerras e golpes de Estado para os bilionários

Diante do imbróglio todo entre Elon Musk e seus asseclas contra o Estado brasileiro, chamo a atenção para um aspecto trazido no programa 360 do podcast Xadrez Verbal, da Central 3. 

Ao comentar a notícia do lançamento do satélite espião sul-coreano pelo foguete da Space X, do Elon Musk, Felipe Nobre Figueiredo dá a interpretação que tal lançamento pode ser para mandar uma mensagem de que a Coreia do Sul não pretende entrar numa corrida espacial com a Coreia do Norte, e lembra os ouvintes que as diferenças de um foguete para um míssil são de detalhes, sendo o principal deles o alvo que se quer alcançar com cada um; também recorda que o projeto espacial do herdeiro fanfarrão sul-africano depende de financiamento da Nasa. Para mim, esses adendos do apresentador não são novidades. O ponto é que dado o contexto mundial que estamos (sobre)vivendo, esses elementos me parecem indicar talvez caminhos que até agora pouco ou nada vi na imprensa que acompanho (e com certeza não apareceu na dita grande mídia).

O contexto é de neofascismo ultraliberal. Do liberalismo, atomismo e individualismo radical, assim como apagamento das diferenças, com tudo passando a ser reduzido ao denominador comum do capital, ao mesmo tempo em que se favorece grandes agentes privados que assumem funções típicas do Estado; do fascismo, o militarismo, o culto à guerra e à morte, e a solução para caso o apagamento das diferenças pelo liberalismo não seja suficiente: o apagamento dos diferentes.

Guerras por procuração, como a da Ucrânia, não são novidade, como atestam as próprias Coreias; assim como o financiamento de inimigos do inimigo em conflitos específicos, como foi o caso do Talebã na guerra contra a União Soviética no Afeganistão. Exércitos de mercenários é algo que vem do que chamamos de antiguidade, tampouco é qualquer elemento novo. Contudo, dentro do novo contexto, eles têm outra significação.

Weber definia como um dos aspectos do Estado moderno o monopólio da força - e ele tem cada vez mais aberto mão disso. Vemos a terceirização da segurança pública no Brasil e seu correlato ilegal, com a venda de “segurança” por milicianos e crime organizado; na Palestina, colonos judeus armados fazem as vezes de primeira linha de ataque contra palestinos; nos EUA, a ideologia de cada um que se defenda por si, com a população armada, levanta questões sobre o futuro do país diante do crescimento da extrema-direita.

No plano internacional, não é apenas que se tem exércitos mercenários, eles são coordenados por estados nacionais para agir em seu nome. A recente rebelião do Grupo Wagner, na Rússia, mostra que esse tipo de organização se assemelha muito aos exércitos de países “em desenvolvimento”, e pode agir contra o próprio país e seus interesses, como conhecemos muito bem aqui no Brasil - ou então na Bolívia, no golpe contra Evo Morales, em 2020 (ainda que lá tenham sido as forças de segurança pública a dar o golpe).

Por falar em Bolívia, e aqui entra nosso personagem, ele não teve peias ao afirmar que dariam golpe de estado onde bem entendesse - sem especificar bem quem comporia esse coletivo.

Não vou adentrar nas questões de momento envolvendo Elon Musk e uma republiqueta de bananas (desculpe, não é complexo de vira-latas, é conhecimento de nossas elites, em especial a econômica, a judiciária e a militar), meu ponto é outro, mais especulativo.

Nesse momento de terceirização das funções estatais, cabendo a estes a coordenação - e com possível enfraquecimento dessas funções, em especial nos países periféricos -, um bilionário adepto da extrema-direita deter tecnologia de lançamento de foguetes/mísseis sinaliza para uma autonomia muito além do que estamos acostumados. 

O capital já detém o quase monopólio da comunicação e do discurso público, seja via meios de comunicação em massa, seja pelas plataformas e redes sociais de algoritmos fechados, seja por satélites que garantem a cobertura de certa região (a Starlink na Amazônia, por exemplo); possui uma série de exército de mercenários, em tese coordenados por estados nacionais, mas que muitas vezes acaba sendo quem realmente coordena as ações ("Os exércitos mercenários". Le Monde Diplomatique, ed. 31, fevereiro de 2010); possui fábricas de armas, e agora detém também a tecnologia de lançadores de mísseis. Aquele temor com o fim da guerra fria, de armas nucleares soviéticas nas mãos de terroristas se torna plausível com o ultraliberalismo - mas os terroristas aqui serão chamados de empreendedores de sucesso.

E se hoje essas empresas ainda se subordinam aos estados nacionais centrais, nada impede que a união de suas fortunas - assim como de suas tecnologias - possa fazer com que prescindam de suporte estatal, e passem a agir por conta própria. Claro, sua ação tenderia a ser contra estados periféricos, o que é bem o modo de agir do Ocidente moderno: joga para fora de suas fronteiras as externalidades negativas de seu modo de vida, terceiriza seus mal feitos, e posa como arauto da civilidade. É muito mais fácil atribuir a culpa do golpe na Bolívia a um bilionário tosco como Musk do que o golpe no Brasil a um político carismático como Obama. 

A autonomia de grandes conglomerados em atuações de guerra (híbrida e tradicional) em regiões e países pelo mundo permitiria aos países centrais lavar as mãos e seguirem com sua autoimagem de civilizados, desobriga moralmente sua população de assumir os ônus das escolhas políticas feitas por terceiros - até porque não seriam mais em seu nome, já que quem age são particulares.

Eu gostaria de ser mais otimista, mas com os caminhos que a humanidade tem tomado, não creio que no futuro bilionários farão apenas bravatas via Twitter contra estados-nação.


17 de abril de 2024