quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Calvin, meu gato [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Algo que sempre falei dos meus gatos é que eles são super carinhosos, em especial o Calvin - ainda que Haroldo não fique para trás. Goreti, amargo, discorda: diz que não são carinhosos, são carentes. Carinhosos ou carentes, estão sempre me pedindo carinho.

Um dos momentos que Calvin não perde é quando vou fazer café: é ele escutar o barulho da chaleira sendo aberta e não importa onde esteja, o que esteja fazendo, se encaminha para a cozinha, dá dois miados e se planta ao meu lado, querendo carinho - o que faço, é claro.

Ao menos assim eu imaginava. Se Goreti tentava - sem sucesso - desfazer minhas ilusões falando que eram carentes, Brotinho, semana passada resolveu dar cabo a essa minha história de gatos carinhosos, que adoram receber agrado quando vou fazer café.

Estava eu preparando um café para nosotros quando lá veio Calvin, com seu caminhar típico, e se postou diante de mim, se oferecendo para o agrado tradicional. Diante do meu enésimo comentário de como eles são carinhosos, especialmente ele na hora de preparar o café, Brotinho não se aguentou:

- Desculpa dizer isso, mas você já reparou na cara de enfado que ele faz toda vez que vem para a cozinha nessa hora?

- Cara de enfado?

- É, repara: ele não está nem um pouco feliz.

- É que eu ainda não fiz o agradinho de sempre nele, não é, Calvin?

- Não, ele não vem aqui por carinho...

- Então por o que ele viria?

- Repara na carinha dele: parece muito mais que ele está supervisionando você, cuidando pra você não fazer nada de errado.

De início não quis acreditar, mas comecei a reparar, e de fato, diferentemente das outras situações em que ele me busca por carinho, essa hora do café (e quando vou cozinhar também, ainda que cozinhe só de vez em quando) a cara dele realmente é diferente, parece haver aquele cansaço das obrigações fastidiosas. Mas não desisti do meu otimismo. Hoje contei o fato ao Goreti:

- Acredita que meu gato, de tão carinhoso, se dá ao trabalho de ir até a cozinha acompanhar eu fazendo café, não importa o que ele esteja fazendo?

- Sei como é. E isso não é carinho, é desconfiança, mesmo. No mínimo você já se queimou cozinhando e ele não bota fé que o dono não vá se machucar. Ele não confia muito em você, não.

Goreti é um cara amargo.


09 de outubro de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Os jogos de azar e a crise da sociedade do trabalho


Jornalistas e influenciadores sérios há muito têm alertado sobre as bets e jogos de azar - de Luis Nassif, do GGN, a Eduardo Moreira, do ICL -, a caminho de serem legalizadas no Brasil. Há três questionamentos principais: toda a avenida que essa atividade abre para a lavagem de dinheiro, o quanto afeta a economia real, ao retirar dinheiro de circulação para apostar nos jogos e os riscos à saúde pública, com o vício em jogos. Tudo isso com propaganda quase onipresente nos meios de comunicação e internet, seja publicidade direta, seja via patrocínio a equipes de futebol - no Brasil e no exterior.

Chama a atenção que a maioria dos apostadores seja das classes menos favorecidas [https://bit.ly/3N4XztU]: seriam os pobres mais vulneráveis ao vício?

É de se destacar que quem aposta em bets e jogo do tigrinho e afins não visa se tornar milionário, ou fazer um pé de meia - como no caso das loterias da Caixa -, mas tão somente complementar a renda do mês - daí, inclusive, muitos influenciadores venderem a aposta em bets como investimento.

O que isso nos mostra é que as pessoas das classes C, D e E antes de enriquecer, querem apenas sair da condição de sobreviventes. É a assunção, mesmo que inconsciente, de que o trabalho permite apenas tocar a vida no seu mínimo, sem permitir confortos ou planejar minimamente o futuro - até pela instabilidade de quem está empregado, para além dos baixos salários. Implícito também está que ninguém fica rico trabalhando - por isso a necessidade de se “investir” e a esperança de ganhar na loteria. 

Ainda assim, se insiste na ideia da necessidade de se trabalhar, de que “o trabalho dignifica o homem”, sendo poucos os casos em que o trabalho de fato dignifica - é lucro quando ele não danifica a pessoa (e falo não só por experiência pessoal). A manutenção desse discurso é ideológico, no sentido de negar a realidade vivida em prol de crenças repetidas diuturnamente pelas instâncias para-estatais - igreja, família, meios de comunicação de massa.

Sem dúvida, há o problema do vício em jogos - pelos dados apresentados, é de se imaginar que aflija pelo menos metade dos apostadores de bets -, e isso é motivo suficiente para proibir esse tipo de jogo - literalmente ao alcance da mão, a qualquer momento -, contudo há esse elemento implícito acerca o trabalho que precisa também ser trazido à tona: o quanto se recebe trabalhando, a função na sociedade dessas oito horas diárias de labuta desprendidas para os outros - algo que aflige também as classes mais altas, e que ajuda a formar esse caldo de descontentamento e tesão difusos que comentei alhures.

Trabalho sem sentido para conseguir apenas sobreviver em meio à sociedade da abundância: é também nisso que hoje os jogos de azar pela internet assentam suas bases.


27 de setembro de 2024