sábado, 27 de abril de 2024

Quiropraxia [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Depois de passar a semana maldizendo uma dor na costas - mais especificamente na lombar -, Macedo finalmente aceitou a sugestão de Meireles e foi atrás de um quiropraxista (é assim que fala? Ou é quiroprático? Quiróprago? Enfim, um profissional de quiropraxia), deixando de lado a sugestão de Goreti de terapias holísticas - reiki com sanguessugas, para ser preciso; quero dizer, reiki ao mesmo tempo que as sanguessugas, não são as sanguessugas que fazem o reiki, como de início ele deu a entender. 

Achei ambas ideias ótimas e super apoiei a quiropraxia quando Macedo se decidiu por ela, por mais que nunca que pretenda me aventurar por tal senda (nem com reiki, nem com sanguessugas, diga-se de passagem), visto que tenho certa agonia a estalos corporais - o que ainda causa sérias desavenças entre mim e meu Brotinho, que alega se excitar com esses “momentos de crocância”, como ela diz. Na verdade, o apoio se deu mais porque não aguentava mais ele se queixando - que se resolva ou sofra em silêncio!, pensei e não disse, mas agora ele vai saber, ao ler este texto.

Sigamos. A indicação de Meireles era cara e Macedo já pensava em desistir quando numa busca rápida pela internet achei um que havia perto do trabalho e por um bom preço. Decidiu ir logo após o almoço.

Estávamos compenetrados trabalhando (leia-se estávamos fingindo que trabalhávamos enquanto fazíamos algo importante, como conversar por whats ou ler notícias, esperando dar a hora do sextou libertador, ou meio libertador, ilusão de libertação, auto-engano de alguma alegria, aquela sensação de breve respiro, que seja, das duas noites até o próximo dia de labuta). Retomo que me perdi no parêntesis e acho que a desocupada leitora, o desocupado leitor também. Estávamos compenetrados trabalhando quando Macedo retoma com cara de poucos amigos, andando torto. Mas não o andando torto de arqueado, e sim de pés meio de lado, estava estranho, muito estranho, um torto de carro bem mal regulado, de cachorro cujas patas traseiras são mais rápidas e por isso precisa andar com elas ao lado do corpo.

E aí, passou a dor? - perguntou Meireles, fingindo ignorar o estranho jeito que nosso colega se movimentava e mesmo sentava.

Passar, passou, mas agora estou com as costas travadas assim, tendo que andar feito um Curupira de 90 graus.

Meireles não soube explicar o que houve - nós menos ainda -, apenas disse que isso nunca tinha acontecido com o quiropraxista, quiroprático, quiróprago dela. Mas antes de dar a deixa para que Macedo começasse a se queixar, viu a coisa pelo lado bom - ao menos havia parado de doer -, e discordou dele que estava um Curupira de 90 graus, pois ainda estava agudo, iniciando assim a importante discussão de a quantos graus estava nosso colega. Os observadores externos concluimos que devia ser algo em torno de 45 graus - quem sabe até menos. Decidido isso, voltamos todos a ficar compenetrados em nossos trabalhos, comemorando silenciosamente que é sexta-feira e quem vai ter que aguentar Macedo maldizendo o quiroqualquer coisa no final de semana é a Senhora Maceda, não nós.


26 de abril de 2024

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Quando novos sujeitos compõem a cena [Diálogos com o teatro]

Parece haver um interessante movimento nas artes desde que certo establishment se viu obrigado a se abrir não apenas a pessoas de grupos marginalizados, como aceitar diferenças na forma de propôr o que se apresenta.

Faz um tempo que tento identificar o que chamo de “pensamento branco” e “pensamento não-branco”. A generalidade no não-branco se dá não por arrogância, mas por reconhecer ainda grande dificuldade em perceber as nuances fora dos parâmetros em que fui educado desde sempre - seja no dia a dia, seja nas artes.

Três peças de teatro a que assisti recentemente me chamaram a atenção pela mudança sutil mas marcante de enfoque: “Bom dia, eternidade”, do grupo O Bonde; “Cena Ouro”, da Cia Mungunzá; e agora “eXílio”, do Coletivo Comum - mas poderia citar outras, vistas há mais tempo, como “Muitas ondas são o mar”, com direção de Key Sawao; “A cidade dos rios invisíveis” e “Reset Brazil”, do Estopô Balaio.

Em comum, os espetáculos referidos tratam de populações historica e atualmente marginalizadas. Não se furtam de trazer as agruras sofridas pelas pessoas sob tais estigmas, denunciar o comportamento geral (nosso comportamento?) da nossa sociedade diante de tais pessoas, contudo fogem do que era muito comum até pouco tempo atrás, de espetáculos que se encerravam no denuncismo do mundo cão, quase uma espécie de Datena gourmet. 

Faço esta crítica apenas agora porque por muito tempo via nesse tipo de discurso algo de impacto - salvo quando era algo muito exagerado, como um dramaturgo e um coreógrafo aclamados na cena paulistana, brancos, demasiadamente brancos em suas propostas, que não iam além de um mundo-cão estéril e paralisante. E de fato, branco classe média, me impactava esse denuncismo - e se não me paralisava talvez fosse por qualquer questão de consciência de classe, ensinada por meus pais.

Fã do Coletivo Comum desde quando se chamava Kiwi Companhia de Teatro, senti algum estranhamento em “eXílio”, mesmo se comparado a “Universo”, a que assisti recentemente. E foi pensando nesse estranhamento que notei o que parece ser a consequência da entrada desses novos protagonistas não apenas para atuar, mas para autorar várias peças.

O foco agora parece ser a construção de resistências e subjetividades, formas de estar no mundo, apesar de todas as dificuldades, de todo o aparato estatal e paraestatal posto na contramão dessas populações marginalizadas. E se parece óbvio agora que noto - afinal, não somos o país da capoeira, do samba, do sincretismo religioso, tudo forjado nas frestas deixadas pelos senhores de escravos e seus descendente? -, por muito tempo essa dimensão estava ausente, porque esses sujeitos também estavam ausentes dos palcos e, principalmente, das coxias. 

E isso porque por muito tempo público, críticos, produtores e curadores eram majoritariamente brancos - se não na pele, no pensamento -, e mesmo quando buscavam inovações, ficavam dentro de certas balizas que não permitiam a essas populações ascenderem como sujeitos - era um olhar de quem está fora, de quem tem empatia, mas não de quem vivencia, sente na pele, na alma.

Que dessa cena teatral paulistana que desponta quebrando - de fato - nossas formas brancas de ver e produzir arteconsciência - de se pôr e estar no mundo -, surjam novas formas de resistência, capitaneadas por aqueles que há séculos resiste - exitosamente, ainda que parcela das nossas elites intelectuais não seja capaz de perceber - a várias formas de exploração, dominação e apagamento. Viva o teatro feito com as margens!


26 de abril de 2024