quarta-feira, 19 de junho de 2013

É mais do que vinte centavos – é menos do que contra tudo

Alguns elementos ajudam a explicar a perplexidade da Grande Imprensa para com os atos que agitam São Paulo há duas semanas e avançaram com força Brasil adentro esta semana. Um deles, muito comentado, é a falta de lideranças nos moldes típicos de sindicatos, partidos e organizações afins: os tais líderes do Movimento Passe Livre têm pouca ascendência sobre a massa que se reúnem ao seu chamado – resultado do angariamento de pessoas ter origem na internet e não fruto de um trabalho de longa data de “conscientização”. Um segundo é a ausência de bandeiras claras – demorou para os ideólogos da Grande Imprensa se darem conta de que vinte centavos não eram o motivo de juntar tanta gente. Soma-se a isso que outro fato incomum é seu caráter não-reativo. Nos últimos dez anos, desde a chegada do PT ao executivo federal e conseqüente desarticulação dos movimentos sociais organizados, o que se vê são movimentos reagindo a pautas postas desde cima, pelos governos de turno – as poucas exceções que lembro são alguns movimentos de minorias e os movimentos por moradia, apesar d'estes só terem conseguido visibilidade quando num momento de luta reativa, a desocupação de Pinheirinho, em janeiro de 2012.

Os tais vinte centavos foram tão-somente o estopim para uma insatisfação generalizada, que não possui foco claro – é uma insatisfação com a situação social do país. Os motivos (em um primeiro momento) são muitos, variados e até mesmo contraditórios. Isso não desmerece o movimento, pelo contrário. Pode prejudicá-lo, é certo: a massa de pessoas, não estando sob o cabresto de uma ou algumas lideranças, tão fácil se aglomerou, tão fácil pode se dispersar. Ou pior: pode achar quem dê as rédeas da situação. Por outro lado, a ausência de uma vocalização clara do que querem atrapalha os movimentos dos donos do poder: o que atender, com quem dialogar? (Com todos, como se vivêssemos literalmente em uma democracia?). Na década de 1960, Herbert Marcuse já levantava que uma das formas de enfraquecer movimentos reivindicatórios e a tomada de consciência era identificar problemas pontuais e saná-los (a genérica “insatisfação pelas condições de vida” viraria um problema de baixo salário ou de transporte público).

Na ausência de bandeiras definidas, a Grande Imprensa e os donos do poder vão tentando impôr as suas – aquelas cheias de boas intenções que servem para mudar absolutamente nada. É o que comenta com propriedade Paulo Motoryn: “a grande imprensa já está mobilizada para maquiar o movimento de acordo com um ideário conservador” [http://j.mp/15kmj30]. Apesar do estopim ser o reajuste nos transportes públicos, não é contra o aumento do custo de vida, como foi dito no Jornal Nacional. Não é contra a corrupção, como tentam definir e confinar os protestos, pois como Alex de Castro fala em seu artigo “O problema com o movimento anti-corrupção” [http://j.mp/11ZS6Zd]: existe alguém abertamente pró-corrupção? Se o motivo para tantos irem às ruas fosse esse moralismo rasteiro apregoado por Veja e seus novos (não tão novos) seguidores diários – Folha e Estadão –, desde o início da república não sairíamos dela. As reivindicações por migalhas, contra bodes expiatórios, até juntam algumas pessoas, mas não duzentas mil.

Se não consegue seqüestrar, esvazia-se. Se as reivindicações não viram à direita, que sejam todas, a ponto de não ser nenhuma. “Contra tudo”, como foi capa da Folha. O esvaziamento do discurso pode ser sentido em uma presença vazia de conteúdo nas manifestações: me chamou a atenção no ato de segunda uma foto publicada pela Folha, de uma família que fora até o largo da Batata “protestar” com um cartaz com dizeres algo como “filho, pai, avô presentes no ato”. No ato de terça, na Paulista, li alguns relatos no Fakebook (não estou em SP para acompanhar in loco) de que o protesto de tão pacífico se tornara uma micareta, praticamente um aquecimento pro jogo da canarinho na copa das confederações, com direito a ufanismo e ambulantes. Caras pintadas enrolados em bandeiras do Brasil são uma excrescência que logo deve ser alçada pela Grande Imprensa como a cara das manifestações.

A questão não é tirar essas pessoas dos atos, antes como fazer com que essa participação seja minimamente pensada e sentida como protesto. Com ou sem partidos, os atos motivados pelo Movimento Passe Livres são políticos, aberta e escancaradamente políticos. Retomar métodos da esquerda tradicional, como vejo em análises pela internet? Defendo antes a derrota do movimento do que seu retrocesso.

Chama a atenção que dos movimentos que chamei de não-reativos, ou seja, que conseguem impôr uma pauta de discussões e não seguir a ditada pelo governo, dois deles, o movimento por moradia e o passe livre, são movimentos urbanos – papel que durante a década de 1990 foi do MST. E é do passe livre que sai o estopim para esse levante que ainda deixa a todos perplexos.

Não acho que os manifestantes sejam incapazes de compreenderem a ligação dos problemas locais com questões globais – talvez preguiçosos, admito. Entretanto, grandes temas não conseguem mais mobilizar como faziam até meados do século passado. São problemas pontuais, ainda que longe de serem problemas menores, que abrem para uma questão mais ampla: a da cidade. Penso que talvez esteja aí uma das chaves para compreender esse movimento e possíveis desdobramentos na política institucional. Não chega a ser plausível, por ora, mas dá pra sonhar em ver políticos no cargo de prefeito não abandonando a prefeitura por cargos mais “nobres”, nas esferas estadual e federal: a política (em qualquer nível) como vocação e não como carreira e profissão.

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Sobre os acontecimentos não-pacíficos das manifestações desta terça-feira. Eu comentava antes do ato de segunda que a briga era pela opinião pública. A pecha de vândalos e violentos migrou dos manifestantes para a polícia militar e o governador Geraldo Alckmin. Eu chutava que a tentativa seria taxar novamente os manifestantes de arruaceiros. Eu arriscava: “é bem provável que a ordem do governador Alckmin e seu secretário de segurança pública (sic), Fernando Grella Vieira, seja infiltrar mais homens do que geralmente ocorre. A solitária pedra que citei em outra crônica terá a companhia de outras, e pode ser o estopim para a polícia militar reprimir com 'rigor' manifestantes que nada tem a ver com policiais à paisana. Ou pode ser que a polícia não use de toda a violência do dia 13, apenas o suficiente para inflamar os ânimos amainados de alguns, e deixe o 'vandalismo' correr solto. Diga-se de passagem, os tais atos de 'vandalismo', supondo terem sido cometidos pelos manifestantes, são bem leves e ordeiros: barricadas com lixo são necessárias para atrapalhar o avanço da polícia, e a quebra de vidros é coisa pouca, perto do que uma multidão pode fazer. Mostra disso é o respeito às vacas sagradas brasileiras – os carros –, que seriam barricadas bem mais eficientes”.

Respeitaram o ato de segunda: talvez porque seria dar muito na cara infiltrar homens logo no primeiro ato após aquele que descortinou quem eram os violentos na história. Para a sexta manifestação, usaram um pouco de cada tática que levantei: alguns infiltrados para agitar alguns mais exaltados – sempre há – e a omissão da polícia militar para dar conta dessa meia dúzia. A completa ausência da polícia militar só pode ser ter sido deliberada – ou então é de uma incompetência que justificaria sua extinção até por aqueles que a defendem. De qualquer forma, a inação dos fardados não foi menos incompetente (mesmo para seus objetivos), e o recado que fica é que parece que a polícia militar só sabe agir com violência – do contrário, não age.

Os atos de vandalismos desta feita foram muito diferentes de todas as outras: nas demais aconteceram quando a manifestação estava em estágio mais avançado e, salvo na quinta, em reação à truculência da polícia militar. Os atos contra a prefeitura aconteceram logo no início, puxados por uma meia dúzia que se movia com desenvoltura e poderiam ter sido impedidos muito facilmente – se as forças de segurança não tivessem se omitido.

Os demais atos que se seguiram, nada mais que conseqüência do primeiro. Achar que a partir dali a polícia militar, o Estado, ou qual outro órgão da “ordem” que possa estar interessado em causar tumulto não esteve presente soa certa ingenuidade: conforme o portal Ig, no “minuto a minuto” das manifestações: “o prédio onde fica a agência bancária incendiada foi um antigo hotel. Nele há uma ocupação de sem-tetos. Aproximadamente 300 pessoas moram no local, mas não há informação de feridos”. Com centenas de agências bancárias pelo centro da cidade, os “vândalos” acertam de incendiar justo a de um prédio ocupado pelo movimento de luta por moradia? É um senso de coincidência muito grande por parte dessas pessoas!


PBco, 19 de junho de 2013.

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