Pouco
depois das 21h do dia 13 de junho de 2013, após subir por uma
Augusta cheia de lixo e restos de alguns focos de incêndio, eu
chegava ao cruzamento com a Paulista. Havia uma névoa das bombas de
gás lacrimogêneo no ar. O choque estava a uma quadra de distância
e vinha em direção à Consolação, distribuindo balas de borracha
e bombas democraticamente, sem distinção de cor, gênero, opção
sexual, renda. Manifestantes, curiosos e moradores de rua eram
obrigados a correr. Dois partidos ali estavam bem representados: os
contestadores e os defensores da ordem.
Dia
20 de junho de 2013, chego na Paulista com a Augusta pouco depois das
21h, após percorrer a avenida mais importante de São Paulo
desde seu início. Há fumaça de churrasquinhos. Ambulantes também
vendem cerveja. Na Hadock Lobo, dois carros de cachorro-quente. A
polícia está ali, sem nada para fazer com aquele excesso de
contingente. Dois partidos? Nada: integração! O povo é um só! O
clima, comparado ao da quinta-feira anterior, é outro, é certo, mas
está longe de ser a festa unânime que tenta aparentar.
Uma
semana depois do excesso de excessos da polícia militar, dois dias
depois da omissão da mesma polícia militar no início da
manifestação e de truculência no seu final – pouca gente viu ou
soube, há algum registro no twitcasting do pos_tv
[http://twitcasting.tv/pos_tv]
–, vejo manifestantes tirando foto ao lado de policiais militares,
a poucos metros dos integrantes do Movimento Passe Livre. De duas
uma: ou há uma revolução, ou há uma farsa.
Passo
uma primeira vez pela manifestação, logo em seu início –
temporal e espacial. Vejo uma faixa de “Fora Alckmin”, bandeira
de “Todos contra a corrupção”, muitas pessoas com caras
pintadas e enroladas em bandeiras do Brasil. A estas últimas, dou um
desconto: como li comentário de amiga no Fakebook: há gente que só
conhece manifestação de dia de jogo na Copa e a única referência
que tem de protesto político é o “Fora Collor”. As outras duas,
algo me diz que não estão no seu devido lugar – ou, como passarei
a achar depois: eu não estou no meu devido lugar.
Na
República e Cracolândia, onde vou bater um rango com uma amiga, a
vida segue normal. O garçom comenta a goleada da Espanha, a feirinha
dos barrados do baile acontece na São João, como sempre. Há mais
policiais militares do que de costume, mas não vejo carros da Rota,
diferentemente da quinta passada. O clima é bem mais leve – e não
só porque a manifestação começou longe dali: quinta retrasada, no
primeiro ato do Movimento Passe Livre, o clima já era tenso na
República.
Volto
com minha amiga pra Paulista. Ela acha positivo as pessoas na rua,
mesmo que estejam ali por motivos aleatórios, mesmo que tenham ido
mais pra ver como é que é. Tenderia a concordar com ela: pessoas na
rua, em contato umas com as outras, é oportunidade de diálogo e de
convivência com o diferente. Contudo, algo me enrosca essa noite.
A
primeira impressão é de que está parecendo a parada gay sem trios
elétricos, com blocos no lugar. Vemos alguns vários. Há o bloco
dos “Fora Dilma”. Há o dos “Pela democracia – Fora PT”. Há
os “Contra a ditadura” (que gritam, “quem não pula quer PT”).
Há um contra o Lula (querem tirar ele do New York Times, será
isso?). Há os contra a corrupção (e quem é a favor para precisar
de um ato?). Há os “Fora Renan”. O grito, não é de se
surpreender, é um só: “Vem pra rua, vem, contra o governo”. Sem
qualquer organização, munidos de toscos cartazes de cartolina –
os acima possuíam faixas feitas em gráficas com ótima qualidade de
impressão –, passávamos por vários manifestantes contra
Feliciano e a cura gay. Amigo meu depois disse que havia ainda um
bloco de anarquistas. O “Fora Alckmin” que vi no início, não
viria mais, nem na ida, nem na volta da Paulista. Em compensação
depararia com cartazes “Pela vida, contra o aborto”. Leio na
internet que, logo no início, havia também um bloco das esquerdas –
escorraçadas por portarem bandeiras de partidos, afinal, o povo é
um só. Vejo, no fim da Paulista, que há também, como já disse, o
bloco do Movimento Passe Livre, praticamente insignificante no ato
que ele próprio chamou. Ah, sim! Havia também uma grande faixa que
indiretamente se punha contra o passe livre, ao pregar o fim dos
impostos.
Em
casa ficaria sabendo das agressões contra aqueles que manifestavam
positivamente sua preferência política. “O movimento é
apolítico”, justificavam – porque manifestar negativamente
contra o PT não é partidarismo. Expulsaram aqueles que estavam
desde o primeiro ato reivindicando: haviam apanhado da polícia
militar, agora apanhavam de civis. A idéia era construir um povo só,
unido e unânime, e para isso se valiam de truculência maior do que
a do Choque: porque a tropa de Choque reagia com bombas, mas não
calava vozes; a PM teve suas ações (fardadas) documentadas e
expostas àqueles que achavam que vândalos eram os manifestantes.
Ali, no meio da multidão, os grupos anti-esquerda, muito bem
organizados, se sobrepunham a qualquer voz dissonante – com fogos
de artifício, se preciso. Com agressões e fogo nas bandeiras, se
ainda insistissem. O clima era para ser de comunhão: cante com todos
ou caia fora. Preferi sair – o quanto antes. Mesma sensação teve
o amigo que mora comigo, que chegou logo depois. Tudo me cheirou a
golpismo – e eu espero ser uma impressão muito equivocada, causada
pela emoção da noite.
Afinal, como diz um dos cartazes desse Gigante que acordou: não é contra a seleção, é contra a corrupção |
Supondo
que o cheiro de golpe seja delírio meu e de meio milhar de amigos
meus, não resta dúvida que o ato deste dia vinte de junho foi uma
grande derrota. A começar que a massa de pessoas – que nas
primeiras quatro manifestações do passe livre se guiava por São
Paulo, enfrentando a polícia militar, o Estado, os políticos, o
trânsito, a nossa vida quotidiana de pequenas frustrações – se
tornou uma massa de manobra: eram bois que passeavam pela Paulista e
reprimiam quem não mugisse como eles – adestrados nos comentários
raivosos de internet, regurgitando preconceitos, babando
agressividade gratuita (que não era vandalismo, porque pessoas não
podem ser vandalizadas, conforme a Grande Imprensa).
Isso
por si já seria uma derrota acachapante. Havia mais: a esquerda
calada, o movimento passe livre marginalizado, ambos acuados.
Não
apenas isso: aquela sensação de insatisfação difusa contra as
condições de vida – a vida pobre de viver para trabalhar, a vida
precária de cada um em sua bolha, a vida insuficiente que tenta se
bastar pelo consumo – rebaixada a uma disputa entre partidos, e a
política, novamente, reduzida a uma parte dela, a
institucional-partidária – a parte mais precária (e mais visível)
da política quotidiana. Fora Alckmin, fora Dilma, fora Lula. Fora
Feliciano, fora Fifa. Alckmin pode ir. Para pôr o que no lugar?
Palocci? Skaf e a bandeira brasileira projetada na Fiesp? Fora Dilma
para entrar quem? Temer? Serra? Fora Feliciano? Feliciano é mosca na
sopa: tem Bolsonaro (que elogiou as manifestações do dia 20, não
por acaso), tem Garotinho, tem Marina Silva, tem uma série de
políticos de conservadorismo extremo para ocupar seu lugar. “Vem
pra rua, contra o governo”, não contra o Estado: tudo pode
continuar como está, desde que mude o nome de quem manda. Debate
sobre mobilidade urbana? Sobre contratos entre poder público e poder
privado? (Amigo meu disse que as vaias do passe livre em frente à
Fiesp foram duramente combatidas). Debate sobre direito à cidade?
Sobre uso da rua, dos espaços públicos? Debate sobre prioridades
dos governos? Discussão sobre a extinção da polícia militar?
Contestação da forma de democracia representativa? Todos esses
pontos, que em alguma hora foram levantados nas últimas duas
semanas, morreram na alegria ufanista (proto-fascista) que não
tolerava diferenças – desconfio seriamente que a marcha para Jesus
deva ser mais democrática do que se tornou a manifestação de hoje.
Contrariamente
a uma semana atrás, hoje, quando passei no cruzamento da Paulista
com a Augusta, não havia dois partidos se expressando na rua – e a
polícia militar estava ostensivamente presente.
São
Paulo, 20 de junho de 2013.
ps: o ato era tão contestador que não só a Fiesp ajudou com seu prédio verde-amarelo, como também o banco Safra, ao liberar seu sinal wi-fi ao manifestantes.
ps2: conveniente pro momento:
"Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.
A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País."
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