sábado, 1 de janeiro de 2022

O racismo naturalizado em Não olhe para cima [Diálogos com o cinema]

(Nota prévia: este é um texto de análise do filme, não de promoção, portanto, contém spoiler)

Desde seu lançamento na Netflix, em 24 de dezembro, Não olhe para cima, de Adam McKay, tem causado considerável debate na nossa neoágora, a internet – essa ágora do imediatismo. Muitos acharam – exageradamente – o filme genial. Do outro lado, houve quem apontasse o filme como raso, com uma crítica fraca. É preciso situar a obra: trata-se de um filme comercial, feito com o dinheiro de uma grande produtora – a Netflix –, que visa lucro: é um produto industrial e portanto não vai se pôr além da lógica do capital. Poucos são os filmes que dão conta de uma crítica incisiva do sistema, e não havia nada para imaginar que Não olhe para cima seria um desses. É um filme bom para o que se propõe: passar duas horas e meia de diversão, sem desligar completamente o cérebro, dando umas cutucadas no espectador.

Algumas pessoas disseram se tratar de um espelho da nossa sociedade. A essas, recomendo trocar o espelho de casa. É uma comédia sarcástica, baseada em estereótipos e que tenta tirar o riso do ridículo do outro – sempre do outro. Algumas pessoas – como a jornalista Bárbara Gancia afirmou em seu Twitter –, conseguiram utilizar o filme para enxergar sua própria superioridade – a mesma com que a mãe a enxergava quando ainda era um toco de carne mama-chora-caga-dorme. Ao cabo, creio que consegue passar a mensagem a um público mais amplo de um modo melhor do que muita obra dita séria e pretensiosa – não apresenta uma verdade (conveniente ou não), mas abre uns rasgos por onde pode ser que entre alguma ludidez. Se essa mensagem vai criar raízes e frutificar, é uma questão que abrange toda a sociedade – sociedade do espetáculo, do imediatismo, do entretenimento, do cansaço –, não será um filme a mudar isso, diferentemente do que gostaria Charles Bramesco, em sua crítica no The Guardian.

A película traz alguns pontos relevantes, explicitados sem nenhuma sutileza, mas de tão naturalizadas muitas vezes não notamos seu absurdo – ou notamos pela metade, só quando a estridência é demais. As lógicas perversas das redes sociais e do novo fluxo de informação é um deles: a memeficação do descontrole da cientista Kate Dibiasky, o aproveitamento do episódio por parte do então namorado, a disputa de opiniões sobre uma questão científica, a “platitudificação” de tudo por parte dos apresentadores do programa de entrevistas televisivo (cujo título é irônico, o “rip” de “rasgo”, de “abrir”, mas também de “rest in peace”, “descanse em paz”), o discurso-espetáculo da presidenta. Outro ponto: as relações por demais íntimas entre grandes fortunas e o poder – aqui, com o risco de ficar parecendo que isso é exclusividade de um campo do espectro político, quando sabemos que no sistema democrático liberal (seja a democracia estadunidense, escandinava, brasileira, sul-coreana, japonesa, africana) trocam-se os nomes e os ramos dos afortunados, mas não as práticas do governo com eles (sem falar no legislativo). Há ainda o discurso de sempre dos 1% (devidamente amplificado pelos seus porta-vozes oficiais, a mídia, e oficiosos, as redes sociais aparelhadas), de que toda crise é uma oportunidade para acabar com a miséria do mundo, de criar novos parâmetros de sociabilidade, um “novo normal”, mais fraterno, mais "humano"; isso a um pequeno risco de extinção da humanidade – e um grande aumento da sua fortuna.

Mas me centro mesmo na última cena – a última ceia. Diante do fim iminente e inexorável, um aproveitar os últimos momentos com seus queridos, sem esperança de salvação e – irrealisticamente – sem pavor, sem choro, sem crises – inclusive com a esposa engolindo a crise recente do casamento. Como Geni Núñez (no Instagram: @genipapos) aponta: na hora do fim, até o mais ateu dos cientistas viraria religioso em busca da salvação da alma. É um discurso conservador, uma vez que desautoriza outras crenças – é o evangélico desgarrado a fazer a última oração –, assim como deslegitima a própria descrença em deus ou no que for (e, pelo exemplo de meu pai, posso afirmar que nem todo ateu na hora H acha que está errado: ele seguiu sendo ateu, como eu também, mesmo quando só um milagre seria capaz de salvá-lo). Vale lembrar que o liberal-fascismo se assenta no cristianismo, ainda que fomente o sectarismo de outras religiões.

Mas na última ceia não está só a família do professor Randall Mindy. Estão também pessoas queridas sem vínculo familiar, muitas das quais surgiram nos últimos momentos – mas nem por isso deixam de ser queridas. Estão lá Kate e Yule, seu namorado novinho, “millennial”, que conheceu há pouco; e também o agente da Coordenação de Defesa Planetária, Teddy Oglethorpe, a quem Randall e Kate conheceram há seis meses e quatorze dias, quando descobriram o cometa em rota de colisão com a Terra. Yule entra na história com dois propósitos: fazer a oração final e reforçar a mensagem de amor romântico, um dos pilares do discurso patriarcal, cristão e capitalista; amor esse que supera tudo e surge a qualquer momento.

Foi a presença de Teddy, contudo, que mais me chamou a atenção. 

Teddy é o personagem negro a compôr a cena – de certa forma cena de redenção, ainda que uma redenção condenada à morte. Sabemos porque Kate e seu namorado estão lá: ambos se desentenderam com seus pais e se uniram porque se amam, ele está com ela e ela está com Randall, seu orientador de longa data; agora, por que Teddy teria viajado de Washington para Michigan, 900 km, para passar seus últimos minutos com uma família desconhecida? Ele não tem pai, mãe? Não tem esposa, esposo, filhos? Não tem amigos? Por que não viajou acompanhado de algum querido seu de longa data, que poderia, inclusive, ser o evangélico desgarrado que faz a oração? Ou será que tudo isso é irrelevante para um personagem negro, porque sua função é somente compôr a cena? Mais: Yule, que chega só no fim da história, apresenta seu passado, sua trajetória, já os dois personagens negros de destaque (secundário) durante toda a trama – Teddy e o apresentador Jack Bremmer –, são desprovidos de qualquer história pessoal: enquanto os brancos tiveram um percurso e chegaram onde estão, os negros só foram postos ali: de Teddy sabemos que há quinze anos trabalha na Coordenação de Defesa Planetária, de Jack, que apresenta um programa de tevê e faz piadas; são pessoas sem história, sem complexidade, sem vínculos, sem relações, quase sem humanidade (ainda mais a se levar em conta a família e o amor romântico como centrais na construção do discurso final): pouco mais que adereços para cumprir a cota racial exigida.

Falei acima que o filme amplifica alguns absurdos que temos presenciado na contemporaneidade, assim como escancara algumas banalizações que acabamos aceitando no nosso dia a dia – até para suportarmos a lógica do choque da sociedade moderna. McKay não precisava fazer do filme um libelo antirracista – não era essa sua intenção –, mas a forma como o apagamento da pessoa negra como sujeito se faz presente em Não olhe para cima mostra o quanto devemos estar atentos às naturalizações que nos são impostas sem estridência. Olhemos para os lados.


01 de janeiro de 2022

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