quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Um Esperando Godot revisitado para a periferia brasileira do século XXI

Acompanho o trabalho de Jhonny Salaberg desde a apresentação de “Buraquinhos ou o Vento é inimigo do Picumã”, no CCSP. Suas obras tem uma temática recorrente - pessoas negras e vivências periféricas, sendo ele próprio negro nascido em Guaianazes, zona Leste de São Paulo -, porém cada abordagem é muito diferente, na forma e no conteúdo: Salaberg, definitivamente, não se acomodou nem se contentou em reproduzir a fórmula que teve sucesso, e se mostra um dramaturgo versátil e sempre denso. 

Fui assistir ao seu mais recente trabalho, “Tá Pra Vencer”, que ficou em cartaz no Sesc Ipiranga, com direção de Naruna Costa e atuação de Ailton Barros, Bia Rezi, Filipe Celestino e Jennifer Souza. Nele, Salaberg, de alguma forma, faz uma releitura de "Esperando Godot", de Samuel Beckett, para o contexto de periferia de São Paulo no século XXI.


Três amigos organizam no quintal de sua casa uma festa surpresa para um quarto amigo e o esperam, enquanto fazem os últimos ajustes. Esse amigo por chegar teve uma ascensão social e parece desdenhar suas origens: fez faculdade, foi morar na região central, faz terapia, está com várias restrições alimentares - que são tratadas por frescuras -, e nem mesmo a mãe ele visita direito. A espera pelo amigo, ao invés de "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão de que a gente existe”, como em Beckett, é uma afirmação de existência, e o preparar a festa serve para relembrar que suas existências são mais que sobrevivência - ainda que em momentos breves. Ainda assim, é espera.

Entretanto, quando a campainha toca, quem chega não é o amigo aniversariante, e sim o entregador de aplicativo - que é reconhecido por ter estudado na mesma escola que os demais. É ele quem traz a mensagem, não ao anfitriões da festa, mas ao público: na descrição que fazem desse amigo, começamos a perceber que se trata de uma pessoa que, apesar de ter subido na escala social (não sabemos o quanto), o fez com um ritmo de trabalho doentio. Tão doentio quanto o do entregador - que se identifica com a descrição, mas é ignorado por ser um igual aos três amigos em cena - e nisso vemos que os personagens não avaliam com a mesma acuidade sua própria situação, como se para pobre trabalhar muito fosse obrigação e não conseguir ir além da sobrevivência, destino.

O entregador/mensageiro sai em busca de sinal para a maquininha de cartão, de pronto começa o segundo ato, alguns anos mais tarde, a mesma espera, as mesmas falas. Altera a entrega a ser feita, o amigo do trio a comentar do seu drama/desabafo laboral-existencial - o que trabalhou como motorista de Uber e fazia jornada até o limite que suportava, a mulher que queria ser útil e fracassa, a outra que aprendeu que devia fazer tudo sozinha e começa a não dar conta -, e a velocidade da cena. São quatro atos, cada vez mais acelerados - como as exigências atuais de produção, reprodução e consumo. Poderiam, quem sabe, alguma hora se queixar: "Estou cansado de respirar”, porém não há tempo para isso: mal há tempo para respirar, precisam seguir o fluxo para conseguir pagar os boletos, pôr comida no prato e seguir a vida - e de vez em quando se divertir.

O último drama laboral-existencial é do entregador/mensageiro. O que ele traz não é o aviso de que o quarto amigo deve vir, mas da situação de todos os cinco daquela cena - presentes e ausente. É quando finalmente o amigo ausente liga, mas diante do esgotamento dos demais, é o entregador quem atende e explica que entende sua ausência - afinal, também ele está a trabalhar no dia de seu aniversário, impossibilitado de comemorar com seus. Impossibilitado de comemorar, assim como de viver uma vida plena, por conta das exigências econômicas de sobrevivência. Como os demais presentes ali (na plateia também?).

Aqui chegamos ao título da peça. Até o primeiro desabafo - do ex-motorista de Uber, corroborado pelo entregador -, podemos interpretar que todos ali estão à espera do momento em que o trabalho árduo será recompensado, em que vencerão, finalmente - como o amigo teria vencido. É algo que imaginam estar sempre para acontecer, nas precariedades das relações trabalhistas por aplicativo, dos bicos ou freelas, das vendas porta a porta e no discurso do empreendedorismo (isso que a peça nem entra na questão dos jogos de azar pela internet). O mais “realista” nessa relação com o trabalho é o ex-uber, que acaba por voltar ao trabalho CLT, aceitando que é melhor saber o quanto vai ganhar, ainda que não muito, do que arriscar ganhar menos (ou mais) como empreendedor de aplicativo.

Um segundo significado de “Tá pra vencer”, entretanto, é que o que estamos vendo está próximo da data de validade. Aqueles personagens à beira da estafa - física, psicológica e emocional - estão muito próximos do vencimento, de serem vencidos pelas exigências inumanas de um sistema opressor no seu discurso de liberdade. Ou, numa leitura mais otimista, que nos lapsos de consciência que os quatro personagens mostram ao falar de seus dramas laborais-existenciais, o que pode estar próximo do vencimento seja esse sistema - até por uma questão de sobrevivência das pessoas que o fazem funcionar.

“Tá pra vencer”, como as demais peças de Saleberg, é feita de sutilezas e brutalidades ao mesmo tempo. Uma peça necessária para estes tempos - seja para aqueles que vivem na bolha classe média (frequentadora do Sesc), seja para pessoas periféricas que se vêem plenamente representados naquelas situações. E difícil é não sairmos todos com ao menos uma mesma certeza comum: como está, não dá para continuar.


20 de novembro de 2024

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