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sábado, 30 de abril de 2016

Bolsonaro, o nome da vez - mas poderia ser qualquer outro

Jair Messias Bolsonaro (PSC), por muitos chamado de "Bolsomito", que eu acho mais coerente chamá-lo de "Bolsomico", é o nome da vez de uma certa direita ultra-conservadora brasileira, com destaque no campo dos costumes. Esse grupo busca um nome que o represente desde que ficou clara a derrota da aliança liberal-conservadora encabeçada pelo príncipe dos sociólogos - que trouxe junto a decadência de Bornhausen, Magalhães, Maluf e coronéis old-fashion afins -, junto com a ascensão política evangélica. O candidato da situação em 2002 se dizia nacional-desenvolvimentista e tinha histórico de esquerda (alguns incautos e ingênuos até acreditaram nessas pendências à esquerda, este escriba entre eles, o que não quer dizer qualquer apoio ao nefasto político), o que desagradou esse eleitorado. Nessa mesma eleição, Garotinho era o principal nome do grupo (lembro do professor Marcos Nobre, em palestra na Unicamp, dizendo que ele era o nome mais perigoso da disputa presidencial), e o sobrinho do chefe, bispo Marcelo Crivella, despontava como nome para o futuro (Veja comemorava a vitória do bispo da Igreja Universal sobre seu arqui-inimigo Leonel Brizola).
Uma breve pausa na voracidade política evangélica veio com o chamado Mensalão do PT e a candidatura do bom homem de Deus e das execuções extra-judiciais legitimadas, Geraldo Alckmin (PSDB-SP). Derrotado o "Santo", a força desse conservadorismo - que está próximo do movimento evangélico, mas de forma alguma se restringe a ele - cresceu sem parar, se organizando de modo cada vez mais autônomo dos partidos políticos centrais, até ser levado ao protagonismo, em 2010, por José Serra, que trouxe a pauta dos costumes e os pastores evangélicos mais obscurantistas para o centro do debate presidencial, ofuscando a representante oficial do grupo, Marina Silva (então no PV, hoje na Rede).
Desde 2010, revezam-se no congresso, nas emissoras de tevê e nas redes sociais nomes que tentam capitanear essa espécie de tea party tupiniquim. O senado, curiosamente, não consegue dar a mesma visibilidade que a câmara a esse tipo de político, enquanto Marina Silva tem o pecado original de ter sido do PT (o mesmo pecado de Marta Suplicy, a ser testado em outubro). O que sucedeu foi Garotinho e sua "pepita de 20 milhões" contra o kit anti-homofobia, Marco Feliciano, o homem da chapinha nos direitos humanos; Eduardo "Capone" Cunha e agora, finalmente, Jair Messias "Bolsomico".
Em sondagens para a presidência da nossa Republiqueta Bananeira do Brasil, Bolsomico desponta com cerca de 10% das intenções de voto. Jean Wyllys acredita que o carioca pode chegar a 15% quando mais conhecido (por sinal, o que é aquele deputado júnior por São Paulo votando em nome do "povo naxx ruaxx com o exxpirito doxx revolucionárioxx de trinta e doixx?"). Seu principal trunfo é atender aos anseios evangélicos - está até no partido mais ligado a eles - sendo católico. Também agrada às viúvas da ditadura, e a parcela mais ignara da classe-média, média-alta (na qual se inclui muitos mestres e doutores).
Seu discurso anti-minorias, contudo, faz com que tenha teto baixo. Uma coisa é falar mal de minorias na França ou nos Estados, onde gauleses e WASP são numericamente superiores e historicamente reivindicam supremacia sobre a emergência do Estado-Nação. Outra é essa fala num país periférico, tributário da colonização, pornograficamente desigual, e que tem conhecido um empoderamento das minorias - não condizente com a mesma asensão social das classes marginalizadas, infelizmente.
Não ter chances de ganhar a eleição não o faz um mero candidato folclórico, como Enéias, em alguma medida foi: além de poder puxar o debate ainda mais para a direita, seu discurso claramente estimula o ódio, a violência e a intolerância contra minorias, e contra todos que não compartilhem das idéias do fascio - Alckmin e Aécio que o digam, expulsos pelos milicianos do Paulo Skaf da própria manifestação. O neofascimo é uma ideologia anti-política que ganha adeptos em todo o mundo, mas tem suas peculiaridades nestes Tristes Trópicos. Por mais que não seja apenas o nome da vez, não há tanto a Temer Bolsomico: há figuras piores despontando no cenário nacional.


30 de abril de 2016.

E o pior é que um bigodinho orna.

domingo, 13 de março de 2016

Querem que o Brasil se torne uma grande favela

Há um certo ethos corrente nestes Tristes Trópicos que tento entender, sem muito sucesso. É uma forma de pensar e se posicionar com relação ao mundo, em especial diante do Outro, que me soa absurda - por mais corriqueira que seja. O "complexo de vira-latas", enunciado por Nelson Rodrigues ajuda, mas não dá conta de tudo, pois parece se aplicar melhor à relação com o estrangeiro, em que nos vemos inferiores em tudo - menos no futebol, único momento da nação cantar que é brasileira, "com muito orgulho, com muito amor", apesar que depois daquele lindo 7 a 1... O que me intriga é a forma como essa auto-imagem caquética é reorganizada nas relações entre as classes sociais, no interior do território.
Parece que precisamos o tempo todo de comprovação do Outro de nosso valor, e essa comprovação se dá pela negativa do Outro - que beira a negação, almeja a negação do Outro, mas não sobrevive se negá-lo -, com o regozijo do fracasso alheio (acho que isso se destaca tanto pra mim por meu pai sempre ter combatido essa forma de apreender o mundo, recordo a vez que tentei justificar minha nota baixa comparado à de colegas). Me vem como um exemplo o professor de ética que tive na graduação em filosofia: não perdia uma oportunidade de tentar diminuir seus colegas ou sua desafeta-mor, Marilena Chauí - em compensação, raríssimas vezes foi que demonstrou ter algum conteúdo além de ressentimento e ego. Outro exemplo eu já trouxera em crônica antiga, em que questionava a satisfação desditosa de pessoas abusarem de pequenos poderes, quando tem a oportunidade (como ficar no lado esquerdo da escada rolante propositadamente), que nada acrescentam à sua vida pífia [http://j.mp/cG161009]. Um terceiro exemplo: os tais "privilégios" que muitos se indignam e querem ver abolidos (como os marajás colloridos), na maioria das vezes não passam de direitos legítimos e que deveriam ser extendidos a toda a população - dois meses de férias, trabalho remoto, trinta horas, se tanto, de expediente por semana, salário na casa dos cinco dígitos: isso deveria ser uma possibilidade factível à maioria da população, e não apenas a meia dúzia de togados.
Somos movidos a ressentimentos e, incapazes de nos atribuir uma valoração positiva, sustentamos nossa auto-imagem na derrota do nosso próximo, que nos faz esquecer temporariamente o fracasso que também somos.
Vejo Donald Trump "caosando" nas prévias republicanas. Penso nas tais "pessoas de sucesso" (sem entrar no mérito de que sucesso é esse) daquelas terras, que estufam o peito para contar sua história de vida, que se tornam modelos para seus conterrâneos. Aqui, no Brasil, não teriam vez: seriam vistos não apenas sem admiração, mas com inveja, dessas sangue nos olhos, das pessoas que trazem o olhar sempre atento, sempre esperançoso de uma queda triunfal no próximo passo - "aqui se faz, aqui se paga", justificam. Exceção feita à nossa commodity for export, jogador de futebol, e ao Sílvio Santos. Talvez porque saibamos, ainda que não queiramos admitir, que a mobilidade social no Brasil é para inglês ver e nunca ascenderemos à casta dos senhores da Casa Grande, que nos incomoda os poucos exemplos que confirmam a regra.
Lula, principalmente após a vitória nas eleições de 2002, assumiu com ênfase esse discurso positivo sobre si, sobre seu passado, sua história - ao invés de se fazer sobre o negativo do Outro, como fez FHC. Foi o que recordou no seu discurso após os eventos bananeiros de 4 de março, ao comentar, por exemplo, o quanto cobra por palestra. Um migrante sem nível superior negar o complexo de vira-latas para o mundo? Uma afronta dupla para a classe-média, média-alta brasileira. Para piorar: pressionado, cresceu ainda mais na auto-afirmação de si.
A prisão, seqüestro, condução coercitiva ou que nome se queira dar ao ocorrido com Lula dia 4, além do pedido cafajeste dos promotes do Ministério Público de São Paulo, dia 10, trouxe a uma significativa parcela da população esse prazer pusilânime de ver o Outro se dar mal - mais, de mostrar a esse nordestino petulante seu devido lugar. O que esses brasileiros não se deram conta - porque a Grande Imprensa não entregou mastigado, e seu funcionários são covardes e atiram no próprio pé na esperança de ganhar um bônus no fim do ano - é que aplaudir o ato ilegal contra Lula e o pedido de prisão contra o ex-presidente (independente de a suspeita de corrupção vir a ser confirmada no futuro ou não), é aceitar que a polícia, a justiça e quem mais for aja fora da lei, conforme a conveniência de momento a si e aos seus interesses - banditismo, para usar o termo que Datenas da vida tanto gostam de aplicar aos pretos pobres periféricos. Diante de pessoas acima da lei, corrupção e desvio de dinheiro se tornam problemas menores diante da violação dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Esses brasileiros, que hoje ocuparam as ruas de várias cidades do país e tem a fé cega de que estão do lado certo, do lado "do bem", podem, mesmo sem mudar de posição, serem vistos como "do mal" pelas mesmas pessoas que agora apóiam, e serem perseguidas, presas, torturadas, mortas - vide Nelson Rodrigues, entusiasta do golpe de 64, até prenderem seu filho.
Mas essas pessoas - classe-média, média-alta, branca, nível superior, moradora de bairros abastados - que vibram com as agruras injustas contra Lula não deixam de ser coerentes: o fazem também quando polícia mata "bandido", quando prendem preto pobre periférico em poste, quando chacinam craqueiros, quando prendem e espancam sem-terra e sem-teto. Sua ignorância crassa (apesar do diploma da USP) não permite que entendam que a igualdade é boa quando estão todos sob o abrigo da lei, e que quanto mais direitos todos tiverem, melhor. Só enxergam sua realidade mais estreita, por isso acham sublime a igualdade que rebaixa todos ao seu nível, que põe seus iguais junto a eles, como moradores da senzala. Seu ressentimento não permite que percebam sua verdadeira condição: acham que por serem escravos domésticos e servirem diretamente a mesa do senhor, não são escravos. Se achavam ruim Lula ter transformado aeroporto em rodoviária, mal esperam a vez de Globo e Moro transformarem o Brasil todo numa favela - terra sem lei, em que o Estado é tão criminoso quanto o dito "bandido", onde ninguém tem direito a nada, onde todos são suspeitos e não há para onde correr.


13 de março de 2016

sábado, 19 de dezembro de 2015

As ruas começam a incomodar a Grande Imprensa

Um das principais conseqüências das chamadas "jornadas de junho", de 2013, é a assunção da rua como espaço político ordinário. Num país em que "político" é tido como termo pejorativo pelos próprios políticos, e no qual rua como espaço público é duramente questionado pela Grande Imprensa e pelas parcelas bem-remediadas do país - a ponto de se dizer, por exemplo, que o centro de São Paulo é área morta e precisa ser "revitalizada" -, conseguir que a rua assuma positivamente o papel político é algo a ser comemorado - na história destes Tristes Trópicos, talvez isso tenha acontecido apenas no interregno democrático entre 1945 e 1964; os caras-pintadas do Fora Collor, em 1992, não conseguiram deixar esse legado: tão logo caiu o presidente, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou.
E assim seguiu, de 1992 até a "quinta terror", aquela de repressão a la Pinheirinho contra os manifestantes classe-média que protestavam contra o reajuste da tarifa de transporte público: toda manifestação era tida por baderna e perturbação da ordem, um bando de desocupados que ao invés de trabalhar prefere atrapalhar os cidadãos de bem. Desde então, como espaço político, fechar uma faixa da Paulista para meia dúzia protestar contra o que for passou a ser legítimo. E como a rua ainda resiste em ser pública, cabe manifestação de esquerda, cabe manifestação de direita, cabe pobre pedir direitos, cabe rico pedir fim de direitos (dos outros, claro). Após dois anos das tais jornadas, as diferenças entre manifestação de esquerda e de direita foram se sedimentando e hoje são evidentes: na primeira, os policiais militares pronto para atacar; na segunda, os mesmo soldados fazendo poses para selfies; numa, diversas cores e classes; na outra, a padronização nas camisas da seleção em corpos brancos e bem nutridos; uma acontece durante a semana ou quando for necessário, na Paulista, no Viaduto do Chá, em Itaquera, na Praça da República, na Sé, no Grajaú, na Anhanguera, nas marginais; a outra ocorre aos domingos, na avenida Paulista, no máximo no Largo da Batata, com chamadas na rede Globo.
A importância da ocupação das ruas é vital se pretendemos construir uma sociedade democrática: conforme o filósofo francês Paul Virilio, mesmo em tempos de internet, de petições online, de xingar muito no tuíter e de páginas de protesto, o real poder está onde sempre esteve: na rua. Tem o controle da situação quem tem o controle da rua - daí todo o aparato do urbanismo e dos avanços técnicos para retirar a massa da rua.
Exemplo do poder das ruas: foi quando os estudantes - que desde o início agiam politicamente, diga-se de passagem - que ocupavam as escolas estaduais passaram a ocupar também as ruas que Alckmin recuou no fechamento das noventa escolas para 2016, não sem antes ter enviado para o diálogo - conforme o governador - seu porta-voz principal para questões sociais, a polícia militar e sua retórica feita de balas de borracha, bombas de gás e porrada democraticamente distribuída.
Nesta semana, a direita foi para a rua domingo, como é do seu feitio, protestar contra Dilma e a favor do golpe - nem precisa mais ser militar. Na quarta, a esquerda assumiu o protagonismo, em defesa da democracia.
A Grande Imprensa, como era de se esperar, manteve sua narrativa anti-democrática e golpista. Em tempo: não seria golpista se tivéssemos pluralidade nos meios de comunicação; contudo, com a Grande Imprensa agindo em monobloco, distorcendo os fatos de acordo com seus interesses, sem qualquer contraditório, aplicando os ensinamentos de Goebbels - sem conseguir atualizá-los para o tempo de internet -, resulta em pacto com um golpe de Estado. No domingo dos protestos pró-golpe, o Estadão trazia o protesto na primeira página; O Globo falava do futuro governo Temer; enquanto a Folha de São Paulo - versão diária para a Veja - estampava como manchete que "após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida" (por mais que todos os indicadores digam o contrário), e imprimia na sua primeira página nota sobre os protestos. Na segunda, o Globo sequer os mencionava na sua capa, os jornalecões de São Paulo falavam do fracasso, ainda que Folha tentasse dar um ar Poliana a ele. Na quinta, os jornais noticiavam como atos pró-Dilma os protestos que foram antes de tudo anti-golpe - como dissera em entrevista à BBC Brasil Guilherme Boulos, boa parte, se não a maioria, não estava ali para defender o governo, mas a democracia. Por terem levado mais gente que os protestos de domingo, mereceram figurar na primeira página dos três jornalecões, não sem antes explicitar que era movimento de centrais sindicais (seriam manifestações comunistas?).
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi o tuíter da jornalista Eliana Cantanhêde, uma das principais porta-vozes dos barões da mídia - talvez por não ter constrangimento em ser velhaca para defender o patrão. No dia das manifestações contra o golpe, quarta-feira, ela disse: “Devia ser proibido fazer manifestação em dia útil. São Paulo está um caos. Irritante!”. Fosse outra pessoa, e esse comentário poderia passar em branco. Sendo de quem é, merece um pouco de reflexão. O irritante para a jornalista (e todo o pensamento que ela representa) não é manifestação em dia útil, é manifestação de esquerda. José Serra reclamou da avenida Paulista interditada para carros, num domingo, por prejudicar o trânsito; Cantanhêde faria o mesmo tranqüilamente. Nenhum dos dois, contudo, reclamou da Paulista fechada para protesto contra a Dilma - os colegas de Serra até foram discursar no dia treze. Ao querer restringir protesto para domingo, Cantanhêde mostra bem seu apreço pela democracia sem povo e sem contraditório, uma democracia que não perturbe a ordem viável (e viária) apenas para as classes abastadas - porque as classes subalternas sofrem diariamente com trânsito, transporte público, violência policial, omissão estatal, etc -; e discretamente afirma que há uma manifestação legítima e outra não: como apontado acima, manifestação de domingo não diz respeito apenas ao dia da semana, mas também ao tipo de manifestante e as bandeiras que defendem.
A rua como espaço ordinário de política começa a incomodar os detentores do poder, assim como a rua como espaço público. O projeto do PSDB e da Grande Mídia - que é sua mentora intelectual - mostra cada dia mais seu deprezo pela democracia: dois pesos duas medidas para a corrupção, golpe para vencer eleições, tropa de choque da polícia militar para dialogar com movimento sociais, rua para carros, circo (Faustão, Datena, Bonner, Ratinho e afins) para o povo, para o qual fazem a promessa seguir com seu direito de dar a última palavra: sim, senhor.


19 de dezembro de 2015

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Aula de democracia dos estudantes de São Paulo

Ao ouvir a entrevista do secretário de educação do Estado de São Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, na rádio CBN, quarta-feira, o primeiro escritor que me veio à memória foi Millôr Fernandes: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim". As alusões bibliográficas não se encerraram por aí: o duplipensar orwelliano também era claro na fala do secretário. Para não falar na máxima de Goebbels, tão em voga nestes Tristes Trópicos - afinal, se algo é repetido o tempo todo, só pode ser verdade, não?
Em quarenta e cinco minutos montados para o secretário "explicar para a população" as medidas adotadas pelo governo tucano, Voorwald conseguiu irritar as muito complacentes entrevistadoras, Fabíola Cidral e Ilona Becskeházy. Para alguém um pouco mais crítico, sua fala foi temerária do início ao fim, uma boa mostra de desapreço à democracia por parte dele e do governador para quem trabalha, o senhor Geraldo Alckmin.
Diz o secretário que o projeto de reorganização das escolas está em "fase de discussão" e que não é uma medida atabalhoada, antes parte de um processo que vem desde dois mil e onze - ou seja, desde a gestão anterior. Duas questões importantes quanto a isso: se é um processo, como os agentes diretamente envolvidos - professores, alunos e pais, para não falar nos cidadãos sem ligações diretas com a escola - não estavam a par? Inadmissível em um governo sob regime democrático um processo que afeta toda a sociedade passar quatro anos na sombra. Já dizer que o fechamento das escolas está em fase de discussão é negar a realidade, ao gosto do Grande Irmão, de 1984, ou como bem definiu Millôr Fernandes: desde quando baixar uma norma determinando o fechamento de escolas é discussão? O secretário usa como exemplo de "abertura para o debate" do governo o fato de ter revertido a decisão de fechar duas escolas, por terem conseguido provar que eram importantes. Isso não é debate, é ceder a movimentos de resistências: diante de uma norma ditada de cima, decida em gabinetes com ar-condicionado, sem qualquer discussão com a sociedade, provou-se que os tecnocratas que a elaboraram durante quatro anos foram incapazes de perceber a relevância dessas duas escolas - nada surpreendente, já que a comunidade é um dos atores mais indicados para indicar a importância e os porquês de dados equipamentos públicos.
Como todo político no poder, Voorwald tenta desqualificar os movimentos reivindicatórios e todo e qualquer crítico de sua proposta. Sobre as críticas dos professores das faculdades de educação da USP e da Unicamp, disse que não tinham qualquer importância, que os pesquisadores de educação pouco (ou nada) sabem de educação - e completou que se a crítica partisse da FEA, aí ele daria crédito. 
Na sua fixação em desqualificar as ocupações - que são, afinal de contas, contestações efetivas e não beletrismo acadêmico em busca de revistas indexadas -, conseguiu tirar do sério as entrevistadoras. Depois de repetir pela enésima vez que seria anti-democrático e inadmissível que as escolas "invadidas" fosse trancadas pelos invasores, aparelhados por "movimentos políticos". "Secretário, o senhor já falou quatro vezes isso", retrucou a certa hora a entrevistadora, diante de um secretário que ignorava a questão feita para explicar o plano para a população. Pouco a seguir, depois de Voorwald chorar novamente sua ladainha sobre a falta de democracia dos alunos aparelhados por "movimentos políticos", a entrevistadora teve que lembrar o secretário de educação que ele não podia generalizar, pois a maioria das ocupações não ostentava bandeiras de partidos ou do MTST.
Estavam numa empresa do grupo Globo, é claro que passou sem problemas o discurso proto-fascista do ex-reitor da Unesp: ao usar o argumento de "movimento político" para desqualificar o protagonismo dos estudantes, como se fosse uma falha óbvia, desmerecedora - e pior, ilegal e autoritária - discutir política e usar instrumentos político numa questão política. Os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo deram uma pequena lição de democracia ao governador Alckmin, ao negar o pedido de reintegração de posse: "[as ocupações] não envolvem questão possessória, pois o objetivo dos estudantes é apenas fazer com que o Estado abra discussão sobre o projeto de reorganização da rede de ensino". Desta vez a justiça negou a educação feita na base de porrada, bombas e balas "não-letais" (que eventualmente matam), tão ao gosto dos governadores paulista nos últimos vinte anos. Talvez a proposta tucana seja das mais razoáveis para o momento (não tenho opinião formada e não palpito sobre), e me parece que os alunos não estão negando de antemão essa possibilidade: é certo que duvidam que seja, e questionam, principalmente pela forma como Alckimin está tentando implementá-la. Se o governo apresentar argumentos sensatos, as ocupações perdem força no momento seguinte.
Há pressões para que o governador abra discussões sérias - dessas que envolve apresentação e discussão de propostas e não o-governo-fala-a-população-acata. Entretanto, não é de agora que o PSDB demonstra apreço nenhum pela democracia: gestões feitas de cima para baixo, questões sociais resolvidas preferencialmente com polícia militar e porrada, negação e desqualificação do contraditório, leis em interesse próprio, complacência com corrupção e descrédito do processo eleitoral. Para sorte do partido de Alckmin, a Grande Imprensa brasileira defende o mesmo modelo de democracia dos cemitérios - e das ditaduras -, em que o povo acata bestializado o que pequenos ditadores da Casa Grande determinam - "sim, senhor". Desta feita os estudantes da rede estadual de São Paulo decidiram dizer "Não!", ao gosto do operário de Vinícius de Moraes: "E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução/ (...)/ Em vão sofrera o operárioSua primeira agressãoMuitas outras se seguiramMuitas outras seguirão.Porém, por imprescindível/ Ao edifício em construção/ Seu trabalho prosseguiaE todo o seu sofrimento/ Misturava-se ao cimentoDa construção que crescia".

ps: não era o foco de meu texto, mas destaco que a pauta dos estudantes da rede estadual, diferentemente das usuais pautas da Apeoesp ou dos universitários (professores e alunos), não é corporativa. Que professores e universitários aprendam algo com toda essa mobilização.

26 de novembro de 2015.

E os estudantes ensinam: a escola é nossa, não do governo.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Certa crise na esquerda: reflexo da precariedade da direita

Quando eu era ainda aluno de graduação da Unicamp, costumava ter idéias tidas por fracas, perigosas ou mesmo conservadoras por meus amigos de então - os quais se afirmavam convictos esquerdistas revolucionários. Não sei como estão hoje esses amigos, se já chegaram no "estágio evolutivo natural" de achar que ser de esquerda é coisa para jovens, ou se ainda se consideram revolucionários - desde que não mexam no seu status quo -, mas tenho a impressão de que algumas de minhas idéias de antanho não apenas não eram perigosas como eram necessárias; e se não eram revolucionárias, tampouco eram conservadoras, dado o estado da arte política no Brasil. Fui bastante execrado quando levantei a questão da necessidade de uma direita inteligente e bem embasada na realidade para a própria garantia de uma esquerda também inteligente e bem embasada. Para a maioria dos acadêmicos de esquerda do IFCH-Unicamp (e não estou falando somente dos então alunos) desejar qualquer coisa que não a aniquilação da direita era coisa de conservador, e assim fui taxado.
Vinda mais de uma leitura heterodoxa do Groucho-Marxismo do Bob Black que de algo mais embasado, como Hegel, eu defendia (ainda defendo) que dentro da arena da democracia liberal burguesa, os rumos da esquerda e da direita são dados antes pelo próprio embate entre essas forças adversas - mas não antagônicas -, que por um desenvolvimento interno dentro de cada campo, independente desse diálogo - ainda que o desenvolvimento interno seja importante. O que tínhamos então era uma esquerda teoricamente robusta, mas não raro carente de um pé na realidade - vejo a adesão petista à Realpolitik como conseqüência dessa precariedade de "princípio de realidade", mal que o PSOL me parece sofrer também -, e uma direita reacionária, com um pé na realidade e o outro no pior do nosso passado, papagaiando teorias alienígenas para justificar posições injustificáveis mesmo diante de um olhar de direita. Se uma década atrás, pouco mais, na esquerda tínhamos intelectuais do porte de Marilena Chauí e jornalistas do naipe de Maria Inês Nassif e Jânio de Freitas problematizando o debate, na direita, Vinícius Torres Freire e José Alexandre Scheikman eram espécimes raros de uma direita pensante com voz na Grande Imprensa. Nesse ínterim, a esquerda, a duras penas, tenta manter certo nicho e nível nessa imprensa, enquanto a direita mantém e amplia: na sua maioria, ela era e continuou sendo representada por "formadores de opinião" torpes e limitados. Paulo Francis e José Guilherme Merquior foram substituídos por Leitões, Ronsenfields, Jabores, Mervais e Cantanhêdes da vida, que acabaram abrindo espaço para figuras lastimáveis do porte de Marco Antonio Villa, Nelson Ascher, Luiz Felipe Pondé e Demétrio Magnoli - grandes intelectuais não-pensantes -, os quais trouxeram à vida Olavo de Carvalho e toda essa trupe de apedeutas microcéfalos que são indignos de terem os nomes citados aqui - peço desculpas pelos termos, sou contra predicados agressivos no debate político, mas as referidas figuras de direita não promovem qualquer debate, muito menos político.
A esquerda, se ainda vinha conseguindo manter o nível - descontado sectários extremistas -, não conseguia chamar a direita inteligente ao debate - ou ela não tinha o mesmo acesso à Grande Imprensa que seu colegas submissos (aos patrões) e agressivos (com os diferentes). Ao fim de anos nessa situação, e com o advento das redes sociais, que "exigem" respostas imediatas (seria a internet a versão pós-moderna da Caixa de Skinner?), a esquerda começou a sucumbir à burrice que lentamente mas incessantemente tomava a Grande Imprensa. Chauí se retirou do debate, tamanha a vileza da imprensa corporativa - Folha com especial destaque - sobre o que ela dizia; Paulo Henrique Amorim se tornou um caricato paranóico, meio de esquerda, meio petista, que vê o golpe em marcha em cada esquina; o site Brasil247 (com o qual não perdi muito tempo) surgiu como versão da "esquerda" alinhada ao PT para a Folha - ou seja, uma pré-Veja, com muito viés para pouca informação. 
Outro site de esquerda que vai pouco a pouco aderindo ao conceito de "reflexão zero" é o Diário do Centro do Mundo, do jornalista Paulo Nogueira. Acompanho há tempos o DCM e não há como não perceber a ladeira que Nogueira se mete. Ainda assim, apesar das reiteradas e cada vez mais comuns derrapadas, ele próprio tem ficado acima do debate proposto pela direita brasileira. Seu site, em compensação, na ânsia de ser crítico apenas reforça aquilo que gostaria de combater, e vai aos poucos minando sua credibilidade. A ênfase dada pelo DCM para figuras medíocre e dispensáveis - a não ser quando realmente falam alguma atrocidade - é espantosa: não teria nada importante pra informar, nenhum assunto ignorado pela Grande Imprensa que mereça atenção (violência policial, violência do crime organizado não-estatal, exclusão social, especulação imobiliária, corrupção fora da esfera federal, etc), para tanto repisar em sub-notícias sobre o ex-músico João Luiz, o "humorista" Danilo e o economista (é esse o nível da academia tupiniquim?) Rodrigo?

João Luiz, admito, é um caso que me deprime: fui fã dele, e ainda acho a seqüência de
discos em fins do século passado, início deste, excelente - até se afundar num acústico pasteurizado de quinta categoria, junto com o qual mudou seu discurso. Note a diferença entre países: enquanto na Austrália, Malcolm Young, ex-guitarrista do AC/DC, uma vez diagnosticado com demência é colocado sob os cuidados recomendados, no Brasil, João Luiz ganha coluna na Veja e passa a se anunciar como salvador da pátria e uma das únicas consciências lúcidas do país. Que interesse, que contribuição ao debate traz saber que ele teve cinqüenta espectadores num show ou que falou mal da Dilma em outro? Serve para inflar o ego em frangalhos do caquético senhor ao promover estardalhaço com subnotícia de subcelebridade subpensante de direita fascistóide - um fantoche que repete o que lhe sopram no ouvido e é insignificante para essa direita que ele hoje defende. DCM dá mais importância a ele que a própria Veja: é isso o jornalismo de esquerda?
Danilo, esse sempre foi deprimente. Seu ponto alto da carreira, pelo visto, foi seu primeiro quadro, "repórter inexperiente", no CQC do Tas (não confundir o este inescrupuloso reacionário em tempo integral com a Zona Autônoma Temporária, por favor!), creio que o que de melhor vi no programa (tinha amiga que insistia em me mostrar porcarias), que dá pra falar que é "ok" (CQC sempre me soou, nos seus melhores momentos, humor de segunda categoria, e para além do humor nem isso [http://j.mp/cG2010421]). Danilo ainda exige uma atenção maior, reconheço, visto que preconceito e incitação ao ódio são duas características marcantes do seu "humor", e não convém deixar que esse tipo de pensamento seja alardeado como natural e até mesmo benéfico - há quem diga "inteligente". Daí para noticiar que ele fez piada falando que ganhava um salário de dezesseis milhões de reais é dizer que o tempo dos leitores do site não tem valor algum e qualquer porcaria deve ser jogado na sua linha do tempo do Fakebook. É isso a esquerda crítica?
Rodrigo, sobre esse não me alongo - seria alguém completamente irrelevante em um país sério. Parece que seu momento de glória foi a resposta recebida da Miriam Leitão - até ela conseguiu não ter paciência com suas patifarias. O que vi de mais inteligente da sua parte foi uma foto abraçado com o Pateta, na Disney. Qualquer vírgula que não seja extremamente necessária dada a esse sujeito é desvalorizar a si próprio. E por que DCM gosta tanto de dar audiência a alguém assim?
Por fim, a cereja do bolo do DCM, que me deixou indignado e me motivou a escrever estas longas, enfadonhas e contraditórias linhas sobre a necessidade de não se escrever sobre o que, no fim, estou escrevendo. O Diário do Centro do Mundo não é um site que se propõe ao contraditório dentro dele: ali se apresentam versões alternativas à Grande Mídia, ao discurso conservador, mas evita-se estimular qualquer debate dentro do seu domínio, nem entre esquerdas, muito menos entre esquerda e direita. É uma escolha do site, explícita, legítima. Na minha opinião, o site perde, mas não é por isso que se torna ruim - inclusive, em dadas situações pode ser necessário esse radicalismo, visto o poder desmesurado do outro lado da Ágora política contemporânea (ou do que restou dela com a internet). Dada essa característica, não penso ser desonesto de minha parte imaginar que o que se publica ali é referendado por Paulo Nogueira.
Dia 8 de agosto, eis outra subnotícia - no caso, uma subanálise - sobre o ex-músico João Luiz. A autoria é de Moisés Mendes, do diário Zero Hora, de Porto Alegre. Informa ele que um show do ex-músico foi cancelado - ele se recusara a cantar para cinqüenta pessoas - e analisa sua postura política e artística atual. Pelas tantas, solta o analista: "Outra coisa que Lobão não sabe é que não há arte de direita [...]. Artistas que se dedicam a espinafrar governos são, de fato, os que produzem o melhor humor. Mas isso não significa 'arte' de direita, que raramente funciona, no humor ou na música. A transgressão nunca será produto de reacionários. Não há no mundo um caso de humor direitoso de qualidade como o pretendido por Lobão e sua viola. Quem discordar deve apresentar provas" [http://j.mp/1EJ42z5]. Repito o que destaquei: NÃO HÁ ARTE DE DIREITA. O senhor Mendes - assim como os editores do DCM - demonstram com isso um repertório assustadoramente limitado! Em parte concordo: não há arte de direita, assim como não há arte de esquerda: o que há é arte! Porém, como o texto quer conciliar arte e política, impossível não discordar que não haja arte de direita. A pedidos do próprio, apresento algumas provas que me vieram rapidamente - é discutível se são geniais ou apenas bons, mas são artistas maiores, sem dúvida. Salvador Dali. Jorge Luís Borges - que no seu conservadorismo mais reacionário faz a gente pensar e repensar nossa postura diante do mundo. Mario Vargas Llosa e seu A guerra do fim do mundo. Ou, para ficarmos no Brasil, chega a ser covarde comparar a qualidade literária e a capacidade de perturbar nosso comodismo por parte de Nelson Rodrigues com a literatura fraca e previsível de um Fausto Wolff (certa feita encarei seu À Mão esquerda, após ler que era um dos principais romances da esquerda do Brasil. É melhor que CQC, sem dúvida, mas mais proveitoso é ir passear no centro de São Paulo e no Ibirapuera).
Esse tipo de generalização é um golpe a mais na política, tentativa de assassinato, e a ascensão da burrice e de totalitarismos. Corriqueiro na direita que domina as comunicações do Brasil, vai tomando também a esquerda, para além dos extremistas sectários. Esfaquear, bater, matar, aniquilar passa a ser a única possibilidade de diálogo a quem nega qualquer qualidade e qualquer capacidade ao campo oposto - afinal, se não há arte de direita, nada mais lógico que queimar quadros, livros, discos e, por que não, pessoas de direita. É um pensamento posto em prática pela direita no mundo, durante o século passado, e tem sido revivido neste últimos tempos (não só no Brasil, assustadoramente), sem dizer realmente seu nome, para não mostrar o que realmente querem - esse pensamento prima pela desonestidade e ameaça.
Encerro esta longa crônica para dizer que há, sim, resistência à burrice galopante, ao menos na esquerda, campo que me identifico e que acompanho com mais afinco. DCM caminha a passos largos para o lixo, mas ainda não está condenado a ser outro peão acéfalo nessa disputa de fígados que é nosso debate político. Vladimir Safatle tem assumido com consistência a voz que tenta fazer a ponte entre a torre de marfim tupiniquim e o mundo real em que nem criminoso nem polícia são ontologicamente "do bem" - ainda que às vezes derrape em falta de contato com o chão. Azenha com o Vi o Mundo [http://j.mp/1JxSllW], Nassif com seu blog [http://j.mp/1KAKLSh], o recente site Brasil em 5 [http://j.mp/1hyk1ek] - que conta com a participação do cada vez mais imprescindível Guilherme Boulous, alguém que realiza na práxis a intersecção entre teoria e prática - e, principalmente, o hebdomadário Carta Capital [http://j.mp/1NAInQB] ainda se negam a adentrarem a latrina geral que tem tomado conta do cenário político atual.
Resta ainda a lacuna na esquerda de refletir efetivamente - em ato -, sem achar que possui uma resposta teórica capaz de dar conta da "infinitude do real", e sem capitular à mediocridade geral, simplesmente porque só sabe trabalhar na chave do tudo ou nada. Boulos, como disse, é um nome importante nessa frente. Faltam outros. Falta o Outro com quem debater.

21 de agosto de 2015

quarta-feira, 15 de julho de 2015

1964 e 2015: algumas comparações

É evidente e explícito que parte do Establishment tupiniquim se organiza com vistas ao poder. Há um golpe em curso - que ora parece almejar a destituição da presidenta da República, ora parece se conformar em agir como a Rede Globo, Veja, Fiesp e congêneres, agiram na eleição de 1989, com manipulação, mentiras, terrorismo e tudo aquilo que é de conhecimento público (a quem tem interesse por conhecer algo da história recente do país). Porém, entre desejar e organizar um golpe (e mesmo aplicar um golpe midiático) e achar que a tomada do poder está em marcha, como parte da esquerda vê desde o fim do ano passado, vai uma certa distância. Contudo, mesmo deixando de lado casos folclóricos (como Paulo Henrique Amorim, que vê golpe em cada esquina, parecendo a versão à esquerda de Dennis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia que no início dos governos petistas via comunista em cada poste e ganhava amplo espaço na Grande Mídia, quando a direita ainda buscava um ideólogo com algum estofo intelectual), tanto se fala em golpe que soa conveniente traçar alguns paralelos entre a situação atual e a que antecedeu o golpe civil-militar de 1964 - não por achar que a história se repita, mas porque parte das forças sociais atuantes continuam as mesmas, e seguem agindo de modo semelhante à de cinqüenta anos atrás.
Conforme Caio Navarro de Toledo, em "A democracia populista golpeada", as características principais do país no momento anterior ao golpe de 64 são: "uma intensa e prolongada crise econômico-financeira (recessão e uma inflação com taxas jamais conhecidas); constantes crises político-institucionais; ampla mobilização política das classes populares (as classes médias, a partir de meados de 1963, também entram em cena); fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo; crise do sistema partidário e um inédito acirramento da luta ideológica de classes". Enquanto isso, no sub-continente americano vários governos popularmente eleitos foram, estavam ou seriam desestabilizados e derrubados por golpes de Estado: Colômbia, 1957; Venezuela, 1958; Cuba, 1959 (vale lembrar que Fidel e companhia foram inicialmente saudados pelos EUA, que patrocinou tentativa de golpe contra o regime em 1961); Argentina, 1962 e 1966; Peru, 1962; Guatemala, Equador, República Dominicana e Honduras, 1963; Bolívia e Brasil, 1964 - para ficarmos só em uma década. Atualmente, acompanhamos tensões políticas na Argentina, Venezuela, Chile, Peru, Colômbia, Honduras e México - além da crise no Brasil.
Para além do que foi levantado acima, Dilma, assim como Jango, é herdeira política de um estadista com apuradíssimo faro político, está diante de um congresso conservador e sua base de sustentação nele é limitada. Recentemente, os movimentos sociais - cujos ânimos arrefeceram após a ascenção de Lula - retomaram parte da pauta da sociedade, via Movimento Passe Livre e Movimento de Trabalhadores Sem Teto; enquanto os panelaço anti-PT, assim como a Marcha da família com Deus pela liberdade, são marcadamente manifestações de uma elite (branca) e aspirantes a. Na economia, observa-se uma guinada à direita na economia - então com o Plano Trienal, adesão à ortodoxia proposta pelos EUA para ajuda externa, agora via (Anti-)Plano Levy. A semelhança mais importante a se levantar talvez seja o conluio feito pelas elites locais com apoio do capital internacional, capitaneada por uma direita pouco comprometida com a democracia e seus valores e defendida, justificada e estimulada pela Grande Imprensa - essa descaradamente anti-democrática.
Há, contudo, diferenças, e muitas soam bastante fortes para inibir um golpe de fato - restando a alternativa de golpe via mídia para influenciar as urnas. A primeira e mais visível é que os militares - no Brasil e nas vizinhanças - não têm intervindo diretamente na dinâmica política. Diante das manifestações de março, por exemplo, eu apostaria antes no exército atuando conforme ordens da presidenta Dilma a debandar para o lado golpista - poderiam, com isso, cobrar o fim de investigações sobre a ditadura. Outra diferença: conforme Toledo, no governo Jango, a partir do segundo semestre de 1963, "uma pergunta passou a dominar a cena política: Quem dará o golpe?". Atualmente, amplo espectro da esquerda defende a democracia - inclusive prega seu aprofundamento -, e tanto o governo Dilma quanto o PT já deram reiteradas mostras de respeitarem as regras do jogo democrático, diferentemente do PSDB, que aprovou a ementa da reeleição em benefício próprio e agora fala em destituir a presidenta sem qualquer base legal (não apareceu qualquer escuta em que o principal ministro do chefe do executivo combinava com um subordinado, "no limite da irresponsabilidade", quem seriam os vencedores das privatizações da telefonia, por exemplo). Por fim, outra diferença marcante é que, enquanto o prógono de Goulart havia dado um tiro no peito uma década antes, o de Dilma segue vivo, ativo e forte - mesmo com a campanha cerrada da Grande Imprensa contra Lula há mais de uma década. Inclusive, seu nome é reiteradamente ventilado, tanto pela direita quanto pela esquerda, como candidato a ser batido em 2018 - e seria parte do golpe midiático mudar esse panorama até lá.
Não vejo, portanto, condições para um golpe de Estado neste momento, como apregoam muitos analistas de esquerda - e apologistas de direita. O que não quer dizer que esteja tudo tranqüilo: há um intenso movimento para enfraquecer a presidenta e tirar o PT do comando do executivo federal, se aproveitando do poder desproporcional que a direita possui, graças ao oligopólio da mídia - com o qual tenta reviver a questão de 1964, sobre quem dará o golpe -, e aos aliados na presidência das casas legislativas federais, dois personagens sem qualquer pudor nem respeito pela democracia. Com esse panorama, o PSDB, o Cunhistão e os barões da mídia não deixariam passar a oportunidade de um golpe "dentro das regras democráticas", como foi feito para a aprovação da reforma política ou da maioridade penal. Esperar a tentativa de golpe para então reagir é um modus operandi típico de nossa esquerda super-intelectual. A esquerda está numa situação bastante delicada: precisa defender a democracia sem defender as atuais regras de eleição, que geram esse parlamento abjeto, e sem defender o atual governo - ao menos enquanto enquanto Dilma não decidir dar uma guinada à esquerda e se aproximar dos movimentos sociais, como defende Boulos. É preciso nos anteciparmos: cerrar fileiras pela democracia e pelo seu aprofundamento, defender políticas sociais e principalmente, neste momento, combater a direita dentro do seu próprio campo.


15 de julho de 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

15 de março de 2015: o fracasso da nossa democracia [Qual gigante acordou?]

Trinta anos após a redemocratização, assistimos em horário nobre ao fracasso de nossa incipiente democracia. Esta conclusão pode soar contraditória quando a Grande Imprensa anuncia um milhão e meio de pessoas nas manifestações em todo país (metade disso, a se acreditar nos institutos estatísticos dessa mesma imprensa), neste quinze de março. Sem dúvida, se centrando apenas no fato, sem analisar o contexto, tivemos uma prova de política de massa e convivência democrática. Ao remontar as diversas causas que levaram essas pessoas à rua neste quinze de março, o que se vislumbra é uma farsa que se aproveita da democracia. A começar que uma manifestação democrática brada contra adversários, nunca inimigos - inimigos devem ser aniquilados. E o discurso das pessoas que foram para a rua - não digo todas, não sei nem se se pode falar da maioria, mas isso é mais assustador do que se fossem todas - era um discurso de guerra, de ódio, contra um inimigo, o PT, tratado como início e fim da corrupção no país, a besta do mal.
Mas o que tanto incomoda uma parcela da população para guardar tanto ódio frente um governo que não lhe tirou nada? Pois, vale lembrar, a grande mágica do lulo-petismo, desde 2005, foi fazer o bolo crescer já fazendo sua divisão - negando a receita de um dos grande chef da desigualdade tupiniquim, Delfim Netto. Se aproveitando do bom momento do comércio externo, primeiramente, e do bafo de dinamismo no mercado interno, depois da crise do capitalismo especulativo de 2008, os governos petistas promoveram a melhora das condições de vida dos mais pobres sem precisar com isso mexer com as classes média e alta, as quais não engoliram bem ficar com o pedaço maior do bolo, e não com ele todo, como soía acontecer até 2004. O ódio pelo PT se mostra, portanto, um mal-disfarçado ódio pelo pobre, a velha luta de classes, e ele nada tem de novo a não ser sua forma - explícita, incisiva, nada cordial.
Vale lembrar a grita contra Leonel Brizola à frente do estado do Rio de Janeiro, quando ele proibiu a Polícia Militar de agir fora da lei nas favelas, ou quando melhorou o acesso da população marginalizada ao centro da capital. O que Brizola fez então foi apenas uma versão condensada e evidente dos governos petistas na esfera federal: deu à população historicamente excluída uma primeira oportunidade de ser vista como cidadã e alterou a geografia dos "lugares naturais" sociais.
No caso petista, tento um breve resumo de como se deu essa alteração da geografia social a partir da ampliação da cidadania aos excluídos, um dos motores do ódio manifesto no quinze de março de 2015.
A redemocratização e constituinte de 1987-1988, com suas manifestações públicas e efervescência política, inverteu a curva de despolitização que a ditadura civil-militar havia imposto, à base de educação técnica, porrada, afogamento e pau-de-arara. Essa politização não conseguiu ter vida muito longa: ao desgaste habitual que ação política gera no cidadãos, acrescenta-se a educação formal que a negava, a avalanche midiática, principalmente via Rede Globo, que a deturpava, e a própria dinâmica institucional, que a desestimulava. O grande golpe para a subjugação da política foi o ideário neoliberal, trazido pela imprensa, pela academia, pela política, de substituição do politikon zoon pelo homo oeconomicus, com o mercado, e não mais a política, como paradigmática da sociabilidade contemporânea.
O governo FHC foi quem deu o golpe mais destruidor nessa disputa entre política e mercado. Curiosamente, para fazê-lo precisou de muita articulação política - outra prova de que, diferente do que prega, o mercado não é apolítico. Podemos dizer que foi uma mudança estrutural. 
E por ser estrutural, mudanças radicais tornam-se mais difíceis e mais complexas. Talvez por isso Lula e o PT se mantiveram nessa senda e desistiram de alterarem-na: o bordão "é só você querer, que amanhã assim será, bote fé e diga Lula" apresenta a política ao cidadão como se fosse algo não muito diferente da escolha de um sabonete, quando não fruto de alguma mágica sobrenatural, do qual o chefe do executivo tem o poder de transformar tudo em realidade - basta ter fé. Durante o governo, no seu início, a política seguiu abafada, ao menos para a população: vários analistas ressaltam o complexo arranjo de Lula na montagem de seu ministério, que teria trazido disputas que aconteceriam na sociedade para a esplanada dos ministérios. Foi somente quando acuado pelo chamado mensalão que a política foi trazida novamente à tona por Lula. A tática de se defender ameaçando partir para o ataque, pela reemergência da política, parece ter servido para que a mídia recuasse, ficasse dentro dos limites conquistados - o bordão da corrupção seria esse limite.
Ao mesmo tempo, o governo petista promovia a inclusão de uma massa até então à margem das benesses da civilização capitalista - o que trazia também benefícios aos detentores do capital. A classe operária ia ao paraíso das compras: carro, casa, televisão, shopping, faculdade, plano de saúde, tênis, fast food, computador, internet, celular, marcas, marcas, marcas. Os antigos habitantes do condomínio não gostaram de ver sua exclusividade invadida pela turba - em que sustentariam sua superioridade? Apesar do carro cinco vezes mais caro, ficam parados como qualquer um no trânsito; as roupas que compram em Miami agora são vendidas na 25 de março, diploma na parede e anel de bacharel são tão comuns quanto comprar picanha pro churrasco, e a conta personalité não garante a necessária visibilidade das diferenças. "Hipócrita consumidor, meu igual, meu irmão" - a nova classe média só não fez paráfrase de Baudelaire porque nem a nova nem a antiga sabe que raios é Baudelaire.
Essa inclusão fez emergir a política justo no local onde ela, teoricamente, estaria ausente: no mercado. Jacques Rancière comenta sobre a política:
"Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política - ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos - que faz os pobres existirem enquanto entidade (...). A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela".
Os sem-parcela, até a vitória do PT, silenciosos e cientes do seu lugar na distribuição econômica, laboral, geográfica e arquitetônica social, petulantemente passam a buscar novos espaços, fazer reivindicações, querer compartilhar das mesmas maravilhas até então destinadas exclusivamente à Casa Grande - como comentou a professora universitária do Rio de Janeiro, foi-se o glamur de viajar apertado em bancos que não deitam comendo gororobas semi-prontas, agora qualquer mulato de regatas e chinelos tem dinheiro para uma passagem dessas. Inversamente à tese de Rancière, a instituição dos sem-parcela foi instituída por uma certa elite, acuada em seus míseros privilégios (os realmente grandes, esses não batem panelas nem viajam em classe turista). Ou seja, na primeira vez que a corja teve respingos de visibilidade social para além da polícia, um mínimo de cidadania, de direitos, de existência para a sociedade (como consumidores), caiu o velho mito do brasileiro cordial: a cordialidade perdurou apenas enquanto o negro, o nordestino, o pobre aceitavam que seu lugar era na cozinha ou na favela, não no asfalto, na praia, no avião (no avião, deus meu, no avião!), no avião, nas concessionárias, comprando carros que vão poluir o mundo, no facebook, emporcalhando a rede social com seu uso animalesco - como haviam feito com o orkut.
Com o governo Dilma, o arranjo político lulista caiu. "O Brasil precisa de um gerente, Dilma presidente" - o bordão só não foi usado na campanha porque o PSDB o utilizara quatro anos antes. Sem os medos de não ter sequer para as necessidades básicas, o populacho foi aos shoppings - "a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte" -, e as elites se horrorizaram, passaram a xingar muito no tuíter. Sem as disputas sociais canalizadas nos ministérios, a política vazava para a sociedade. Inicialmente nas redes sociais e veículos da Grande Imprensa. Faltava ocupar as ruas - Virilio há muito diz que quem tem o poder real é quem detem o poder da rua. Estas surgiram na cena política nacional com as nomeadas "jornadas de junho de 2013", um movimento originalmente espontâneo, de contestação (por isso a reação agressiva da Polícia Militar), sem ser massa de manobra de parte da oligarquia (como no Fora Collor). Como disse: originalmente.
A manifestação por mais direitos e de contestação da ordem estabelecidade - social e geográfica -, a Grande Imprensa deturpou em território seu: da exigência de mais cidadania para a revolta contra a corrupção. Desemprego, saúde, violência, educação, mobilidade urbana, moradia popular, tudo isso passou secundário diante da corrupção. E corrupção, é sabido desde 2005, é culpa do PT. Saliento aos leitores binários: não sou a favor da corrupção, nem acho que deva ser relativizada, porém corrupção, mais que causa, é conseqüência: conseqüência de uma educação que não ensina para a cidadania, de um lugar onde direitos - inclusive os direitos humanos - são desrespeitados, em que saúde, violência, violência policial, desemprego são preocupações permanentes, onde a desigualdade social é absurda e ainda assim defendida.
15 de março foi isso: atiçados pela Grande Imprensa, por formadores de opinião absolutamente desqualificados pro debate público, pelas redes sociais que espalham o ódio e a boçalidade a um ritmo impensável, um milhão de pessoas foram às ruas do país bramir contra Judas, por mais que não houvesse Cristo.
E como conseguiram juntar um milhão de pessoas (a maioria devia se dizer cristão, ainda por cima) para uma passeata de ode ao ódio? Porque a estrutura do estado de excessão montada pelos militares não foi alterada: da propriedade dos meios de produção e seus oligopólios, em especial o oligopólio da mídia - a rede Globo é o veículo oficial da ditadura e dos interesses que ela representou -, à estrutura educacional, que não apenas não ensina a pensar como desestimula o pensamento e o raciocínio - e estou falando das escolas particulares, fascistóides como colégio Bandeirantes, Fundação Bradesco ou as franquias para vestibular. Foram trinta anos que passamos brigando por direitos fundamentais e acabamos por não conseguir mexer nas estruturas da nossa sociedade desigual, corrupta, injusta, inepta: torturas militares continuam, execuções extra-judiciais são rotina ("você também pode dar um presunto legal"), a intolerância recrudesce, o ódio aumenta, os donos do poder permanecem os mesmo - os faxineiros também -, a democracia consiste em votar a cada dois anos (na ditadura também tinha eleição), o raciocínio louvado pelos donos da voz e da grana ainda é o da lei de Gérson. 
A principal mudança, mudança radical nesses trinta anos, parece ser que os mitos vão caindo, e o Brasil vai mostrando suas verdadeiras faces. Algumas delas me orgulham, outras me enojam. Sete a um foi é pouco.

17 de março de 2015.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Marta Suplicy: o José Serra do PT

O PT fará bem se aprender com os erros do seu maior adversário político, o PSDB, e não ceder às chantagens da senadora Marta Suplicy, do PT de São Paulo. Em 2014 Marta deu mostras contundentes de que não difere muito de seu futuro colega de senado, o tucano José Serra.
Serra sempre se vangloriou de ter sido voz dissonante no partido durante os anos FHC, ao discordar da política econômica, ainda que não o fizesse com excessiva ênfase. Até a disputa da presidência, em 2002, Serra parecia um político sério, independente de se concordar ou não com suas propostas. A partir dessa data passou a ficar mais evidente que seu grande projeto político era si próprio - o Brasil é apenas um acidente. Para além do festival de se elege-renuncia, escárnio que a população paulista e paulistana aceita de bom grado, boicotou o próprio partido nas eleições de 2006 e 2008, se ressentiu pela falta de apoio à imposição de seu nome em 2010 e, pior, jogou no lixo os resquícios de esquerda do PSDB, teoricamente ainda progressista nos costumes (apesar de reiteradas práticas contrárias aos direitos humanos, como a chancela às execuções extra-judiciais dada por Alckmin aos seus subordinados), dando ao Partido da Social-Democracia Brasileira o verniz do mais tacanho reacionarismo, desse que merece o apoio sem constrangimento de Malafaias e afins. Em algum momento, após as eleições - não recordo se 2002, 2004 ou 2006 -, aventou-se a hipótese de Serra estar organizando um novo partido, de linha nacional-desenvolvimentista. Outra hora, falavam da sua saída para algum outro partido - PMDB ou PSD. Nada disso aconteceu, e ele ganhou legenda para disputar prefeitura, presidência, senado, e sabe-se lá para qual cargo em 2018: mostra de que sua chantagem funcionou. Resultado para o PSDB de ter dado guarida ao projeto de poder de Serra: não se reciclou, não criou nomes para disputas posteriores, se enfraqueceu: a derrota de Aécio pode ser posta na conta serrista, e a disputa pela prefeitura paulistana, daqui dois anos, será a primeira chance, desde Alckmin, de surgir alguém, um poste tucano, com vistas a eleições posteriores. O único nome novo que despontou desse período Serra-Alckmin foi o ministro das cidades do governo petista, Gilberto Kassab, ou seja, um nome bem errado aos interesses do partido.
A título de comparação: o PT de São Paulo, desde 1998, teve apenas os Suplicy (Marta em 1998, 2000, 2004 (reeleição), 2008, 2010; Eduardo em 2006 e 2014, ambas tentando a reeleição ao senado) e Mercadante (2002, 2006, 2010) como nomes recorrentes em eleições majoritárias - os outros foram Genoíno (2002), Haddad (2012) e Padilha (2014). Enquanto isso, o PSDB teve Covas em 1998, Alckmin (2000, 2002, 2008, 2010, 2014), Serra (2004, 2006, 2012, 2014), José Aníbal (2002) e Aloysio Nunes (2010). Se levarmos em conta que Serra disputou duas vezes a presidência e Alckmin, uma, percebe-se a situação precária dos tucanos paulistas para o futuro breve - suas maiores esperanças sustentam-se no eleitorado raivoso anti-PT, ou na troca de cargos entre Serra e Alckmin.
Marta Suplicy tem deixado explícito que seu projeto de poder é pessoal, pouco se importando com o partido - diferentemente de Lula, que impôs novatos e permitiu que o partido seguisse arejado de nomes e de idéias, como é visível no caso de Haddad. Um primeiro caso de semelhança com Serra, de que Marta não vê limites para buscar o poder, foi a insinuação sobre a sexualidade de Kassab, na disputa pela prefeitura, em 2008. Recentemente, o primeiro aviso de que o partido pouco valia foi sua carta de demissão do Ministério da Cultura, em que ela deu mais munição para a Grande Imprensa e os especuladores pressionarem por nomes do seu agrado, ao criticar o então ministro da economia - fogo amigo é ainda melhor para fustigar um governo já escaldado. O segundo ato foi seu comentário sobre seu substituto no MinC, Juca Ferreira, ou melhor, suas acusações levianas, tão ao gosto da imprensa anti-petista, de que "a população brasileira não faz ideia dos desmandos que este senhor promoveu à frente da Cultura brasileira", e que segue sem fazer idéia, depois de seu aviso que nada diz. Por ironia, todos as pessoas ligadas à cultura que tenho em meu Fakebook e que se manifestaram sobre o novo ministro saudaram a escolha - conforme Marta, esse povo saberia o que ele representa.
Pela nota sobre Ferreira, Marta parece ter percebido que, apesar da sua base de apoio na capital, não conseguiria impôr seu projeto egocêntrico. Digo isso por ela também ter criticado em sua nota Padilha, candidato petista derrotado na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes, ano passado. Uma primeira questão se põe: a força de Marta e seu grupo na cidade é realmente dela ou é do PT? Saberemos se o PT não capitular às chantagens.
Há quem veja nesse ato de Marta o "pedido" para ser expulsa do partido e assumir o papel de mártir. Motivos ela dá de sobra. Vejo também a tentativa de construir um discurso mais afinado com o consevadorismo dos bairros centrais de São Paulo, no caso de ela disputar a prefeitura por outra legenda: a defesa da estabilidade, a acusação de desmandos e a insinuação de aparelhamento do Estado compõem muito do discurso ouvido e repetido por esse estrato, sempre macetado pela Grande Imprensa corporativa. Com isso, numa candidatura por outro partido, em 2016, ela poderia disputar com o PT o voto das periferias e com o nome anti-PT o eleitor moderado dos bairros abastados. Para os primeiros, se apresentaria como petista histórica, para os segundos, ela tem até uma capa da Veja a seu favor. Falta, claro, combinar com os russos.



05 de janeiro de 2014

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pense antes de criticar (sobre o ministério da Dilma e certas críticas de esquerda nas redes sociais)

Acompanho a repercussão do anúncio dos ministros para o segundo mandato da presidenta Dilma na linha do tempo do meu Fakebook. Entre meus amigos virtuais, via de regra inclinados à esquerda, a tônica geral dos que se expressam é de indignação, pelo menos decepção - sentimento mais que compreensível. É como me sinto também - decepcionado, beirando o indignado. Porém há algo nesses comentários breves que me incomodam. Não sei exatamente o porquê, por algum motivo as críticas me parecem tortas. Passada uma semana, começo a entender um pouco meu mal-estar: um bom tanto porque são críticas superficiais, feita no calor da divulgação dos novos ministros, que pouco acrescentam. Ok, é o que se deve esperar numa rede social, porém há um adendo: são feitas por cientistas sociais, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, filósofos - alguns de renome na academia tupiniquim -, pessoas que foram ou meus colegas, ou meus professores, ou que têm trabalhos teóricos que admiro. O que esperava eu deles, então? Um tratado sobre o porvir do segundo governo Dilma? Uma tese revolucionária? Não, nada disso. Talvez o que tenha me incomodado seja a sujeição ao meio - e ver sua indignação ter a potência de um traque de criança...
O jornalista Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo, seguidamente fala do fim da mídia como a conhecemos: da perda de leitores dos diários e hebdomadários à perda de audiência de JN e novelas, que tem culminado com a dispensa de antigos pesos pesados da Grande Imprensa corporativa, como Cantanhêde e Xuxa. A internet e as redes sociais têm papel fundamental nesse rumo da comunicação - não me parece haver o que discutir quanto a isso, no máximo quanto à força e forma do impacto. Nessa senda, algumas perguntas que faço são: os donos do poder - no Brasil e no mundo - precisam seguir pagando para serem defendidos? Precisam distrair o distinto público para manter sua fatia de poder? A decadência da mídia tradicional fará realmente falta, ou o que vem no lugar supre satisfatoriamente os interesses do sistema e de sua minoria hiper-privilegiada? Por fim, um meta-questionamento a este texto: posso fazer a crítica e problematizar o pensamento de pensadores brasileiros a partir de postagens no Fakebook, ou estaria sendo desleal ao tratar como público algo que possui seu caráter privado (guardadas as nuances acerca do público e privado nestes tempos de capitalismo avançado)?

Debord e a crítica espetacular ao espetáculo: o imediatismo
Não tenho como não deixar de apelar ao autor que estudei, Guy Debord, e sua teoria da sociedade do espetáculo. Seu clássico de 1967 permanece atual, com nada a retificar quando ele fala que o sistema cria seus defensores mesmo entre os que o atacam - no máximo podemos acrescentar novas formas. A internet, em especial o Fakebook, tem assumido esse papel de neutralizador de críticas - ao mesmo tempo em que explodem disputas irracionais sobre pontos secundários. Se a forma de organização empresarial da mídia tradicional capenga, seu linguajar e seu modus operandi são mimetizados mesmo por pessoas que se pretendem críticas ao sistema.
Uma primeira característica copiada é a pressa, a emergência em emitir uma opinião, de estar up to date do último factóide, de se expressar just in time. O deadline do tema da moda costuma ser breve, não durar sequer vinte e quatro horas, logo atropelado por algum novo fato bombástico. Conseguir construir uma crítica consistente, baseada na razão e não na emoção, em um curto espaço de tempo é algo difícil de ser feito - grandes sacadas são possíveis em meio minuto, porém, via de regra, boas análises necessitam um pouco de ruminação prévia. Penso que quando se trata de um assunto realmente importante, faz bem ser retomado quando perdeu o impacto do primeiro momento e não deixá-lo submergir no oceano de notícias que nos afogam a cada segundo. Respeitar o deadline da sucessão alucinada de notícias é compactuar com essa velocidade que nos faz engolir notícias em doses cavalares, sem tempo para digeri-las, para meditar um pouco sobre o que foi divulgado - espectadores hipoativos, eventualmente reativos, que quando reagem o fazem com base principalmente na emoção e num impulso estilo comportamento estímulo-resposta. Virilio já comentava do fato da velocidade e da movimentação constantes serem atributos necessários à sobrevivência do sistema de guerra no qual nossa sociedade se baseia. Parar, esperar, respirar seria já metade da crítica.
Nem toda pressa, contudo, significa coadunar com o espetáculo. Entendo a necessidade de comentar, de falar da decepção, da indignação com algo que recém ficamos sabendo. Encaro essa necessidade como típica do homem moderno, cuja ontologia penso estar calcada no reconhecimento da identidade pelo Outro. Há uma diferença de meio, entretanto, que faz com que esse comentário ganhe outro significado, se comparado ao antigo hábito, do conversar à mesa de jantar, do bar, entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. Nestes casos estamos em um pequeno grupo e há condições propícias para refletir: em diálogo vivo, com a palavra proferida e necessariamente escutada pelo Outro, esse primeiro sentimento pode ser repensado (para não falar pensado), burilado - ou na discussão com esse Outro, ou na tentativa de justificação, ou simplesmente pelo impacto que dizer isso, de desafogar o que se sente. O efeito na linha do tempo do Fakebook ou do Twitter é diverso: não estamos nesse diálogo vivo - o diálogo, quando há, vem truncado, por questão de meio e de etiqueta -; os Outros alcançados pela mensagem muitas vezes são pessoas distantes, números de curtidas e não afetos que mobilizam. Conforme Dominique Wolton, "expressão e interação, por mais necessárias e úteis que sejam, não são sinônimos de comunicação", e o que menos fazemos nas redes sociais é nos comunicar.
O caso se agrava porque estou falando de comentários de especialistas - colegas desses que a mídia adora chamar para justificar seus preconceitos (quando não são eles os chamados, a depender da linha da publicação) -, são de "autoridades" na nossa sociedade hierarquizada, potenciais (quando não efetivos) formadores opiniões. A pressa em publicar tais "opiniões emocionais" impede uma auto (e hetero) reflexão que poderia ser muito útil para um enriquecimento da nossa precária discussão política - se o nível do nosso debate está baixo, não estamos trabalhando para revertê-lo, antes aprovando-o subrepticiamente.
Conseqüência do que recém-expus, ganha forma meu incômodo com os comentários sobre o novo ministério da Dilma. Pode ser preconceito meu, mas tive a impressão de que algumas pessoas da minha linha do tempo comemoravam a escolha de Kassab, Abreu e afins - algo como um grito de "eu já sabia". Pessoas do tal voto crítico na Dilma, que parece que deixaram a crítica junto com o voto.

Comentário raso é sempre raso, não importa a titulação
Qual a importância de comentários óbvios e rasos feito por pessoas tidas por especialistas na área, com formação acadêmica na área de ciências sociais e filosofia, que se põem (enquanto auto-imagem) à esquerda? Nessa hora sempre lembro de uma frase da minha mãe: "quem muito prega, pouco crê". Seria dúvida quanto à sua posição política, por isso a necessidade de reafirmar sempre, aos seus alunos, aos seus amigos, aos seus colegas, aos seus companheiros de partido, que são de esquerda, continuam sendo de esquerda, ainda não deixaram de ser de esquerda?
O pior, contudo, não é isso: as críticas parecem partir de dois pressupostos bastante preguiçosos (e hollywoodianos): de que o bem e o mal são facilmente identificáveis, e de que a escolha de ministros é um ato de pura vontade do governante - tal qual seria sua escolha do modelo de tênis na loja.
Falta um mínimo de análise de contexto: diante de uma vitória apertada, do cerco da Grande Imprensa e de um congresso conservador (que não se deixe de assinalar que Dilma e o PT têm sua bela dose de responsabilidade nesse quadro), a presidenta teria poder político para bater na mesa e dizer: "vai ser assim, ponto"? Não creio. No primeiro mandato Dilma pôs em prática o slogan de Alckmin de 2006, assumiu a presidência com a missão de ser uma gerente, se pôs acima das negociatas políticas. O modelo tecnocrático da presidente fazia sucesso, tanto que ela tinha aprovação superior à de Lula. Caiu com as chamadas "jornadas de junho de 2013", o demi-golpe dado por uma direita silenciosa e muito bem organizada (enquanto Jabores e Datenas se desdiziam tentando entender o momento, havia quem pensasse e se organizasse para aproveitá-lo).
Se houve um aprendizado de Dilma com as tais jornadas foi a de que a política segue indispensável na política institucional - é redundante, eu sei, mas não é tão óbvio. A guinada à esquerda durante a eleição e agora, com os novos ministros, mostram isso: aquele foi um aceno aos movimentos sociais, um pedido de mobilização política, este, o pedido de auxílio a nomes de peso político, algo que não houve no primeiro mandato, tão-logo ela se livrou dos restos do governo Lula (os políticos mais relevantes no seu primeiro ministério, tirando os remanescentes governo do Lula, eram Mercadante, Pimentel, Lobão e Alves). Fazer política, goste-se ou não, é negociar e tomar posição. Poderia ter tomado outra posição, com outros nomes? Poderia. Conseguiria governar com ministros técnicos competentes e pouco expressivos politicamente, eis a questão. Para quem vê de fora, é fácil fazer críticas baseadas nas purezas dos ideais - o próprio PT fazia isso antes de ser governo. Intelectuais não participarem dessa política pequena é uma coisa, recusarem a aceitar que ela funciona assim, é precariedade de raciocínio ou de formação. E o que fazer quando se assume o poder sem ter feito uma crítica consistente, que englobe as armadilhas desse aspecto nada nobre da política? Governar com os melhores, como verbalizou Marina Silva (e como pressupõe partidos de extrema-esquerda)? O que fazer quando os funcionários da burocracia estatal simplesmente se recusam a acatar os projetos do ministro ou secretário de turno, de modo que nada acontece - salvo a queda do secretário? Essa foi uma das questões que presenciei e não consegui responder nos breves três meses de experiência na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Campinas.
Não quero com isto dizer que política é assim e deve-se aceitar, e sim que formadores de opinião e pessoas pertecentes a partidos políticos e que se creem não-alienadas precisam ter os pés no chão para fazer suas críticas, precisam esquilibrar ideais - que devem ser buscados -, com percalços que precisam ser encarados sem idealismos. Slogans e críticas rápidas podem piorar o que já não está nada bom.

Brasil 2014 - Weimar 1930?
Cabe também contextualizar a crítica para entender que disparar contra o PT, sem nuançar, é fazer o jogo dessa direita mais retrógrada. Sim, esse é um argumento que petistas têm usado para calar críticas, como se qualquer uma fosse desestabilizadora do governo, como se o arranjo feito pelo PT fosse não apenas o melhor, como o único possível, e por isso devesse ser engolido com feijão. Uma direita organizada e que já se mostrou disposta a encabeçar um novo golpe não pode ser desprezada. Tampouco pode ser motivo para que se aceite o que o PT faz, com base no discurso do medo.
No Le Monde Diplomatique Brasil de dezembro de 2014, Tarso Genro (petista de quem tenho grande aversão) levanta um ponto que vem me incomodando desde antes das eleições, e que tem me feito estudar mais sobre o período, na ânsia de entender minimamente que movimento de direita é esse que presenciamos no Brasil atual, e se podemos fazer analogia com o fascismo ou o nazismo do início do século XX. Genro afirma que sim, e seu argumento não pode ser desprezado:
"O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país. A diluição da esfera da política com sua identificação absoluta com a corrupção, pela propagação de uma visão pervertida dos partidos, inclusive os conservadores e de oposição – embora estes queiram majoritariamente terceirizar suas funções –, e o esforço pela comprovação da impotência da democracia como processo para abater privilégios e reduzir desigualdades sociais são os esforços centrais dessa estratégia. Quando alguém, aparentemente fora da política, monopoliza a capacidade de produzir a agenda política de um país, a democracia, neste país, está em perigo.
É importante advertir, porém, que essa agenda é verdadeira (...). O que predomina, pelo menos na conjuntura atual – como ocorreu fartamente na Ação Penal 470 –, é uma suja tentativa de estabelecer uma identidade partidária para a corrupção, e não uma identidade com as pessoas que cometeram crimes ou se aproveitaram de brechas legais (como as causadas pelo financiamento empresarial das campanhas) para obter recursos para seus partidos ou para proveito próprio."
A crítica rápida parece servir, antes de tudo, para ajudar no desgaste à legimitidade da presidenta eleita - como se a vitória por margem estreita não fosse vitória. Há incautos muitos que movidos pelos slogans de junho de 2013, ainda tentam pôr em prática a mudança pedida, crendo que qualquer mudança é válida - são incapazes de pesar que há mudanças que são um passo atrás e pouco interessam à maioria da população do país.

Um ministério decepcionante
Antes de se indignar e lamentar boa parte dos nomes escolhidos por Dilma, convém se perguntar: foi ela a estelionatária eleitoral, ou há um processo mais subterrâneo, capaz de neutralizar os desejos expressos pelas urnas? Reconheço que "desejo expressos pelas urnas" é um termo também digno de questionamento, visto que teremos um legislativo dos mais conservadores - será que nosso sistema representativo representa os reais anseios da população? Por falta de medida outra, não arrisco nenhum palpite. De volta ao executivo: decepção igual tive (tivemos?) com o ministério de Lula I, no qual o discurso de mudança foi preenchido por um quadro conservador do PSDB. Agora em 2014, novamente, diante dos difusos pedidos de mudança das ruas, replicados nas eleições presidenciais, o primeiro passo da presidente no seu novo mandato foi retroceder. Que sistema político é esse que atropela projetos de governantes em nome não de governabilidade - porque Meirelles e Levy não foram imposições do congresso nem pedido das ruas -, antes de permanência no poder? Em algum Guia do Mochileiro da Galáxia talvez uma pista da resposta: presidentes não detêm o poder, eles apenas desviam a atenção do poder (os Estados Unidos já levaram ao paroxismo esse princípio, ao eleger um ator para a Casa Branca).
Quanto aos novos ministros, a esperança que sobra é que com a sua escolha, Dilma tenha certa margem de manobra no legislativo, consiga evitar arroubos golpistas e, principalmente, consiga avançar com pautas progressistas e urgentes em outras áreas - telecomunicações seria uma delas, a principal (e isso Lula sabia desde 1992, ao menos). Claro, é preciso também torcer para que esses nomes não façam o país regredir em áreas muito sensíveis - preservação de florestas, melhoria do aspecto humano das cidades, os avanços modestos na ciência e na tecnologia. Ao distinto público, outra vez posto em segundo plano por sabe-se lá quais conchavos, não nos cabe acatar passivamente, nem negar por completo o governo: mais inteligente é trabalhar a partir do que há - e não dos que poderiam ou deveriam ser -, e se organizar para pressioná-los de modo efetivo para que atendam uma agenda progressista. A direita sabe disso e já deve ter suas táticas prontas.


30 de dezembro de 2014.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Eleições legislativas, tinha isso? [Eleições 2014]

Se um estrangeiro tivesse acompanhado as eleições no Brasil apenas pelos grandes veículos de imprensa, teria uma grande surpresa ao abrir os jornais desta semana e descobrir, passado o pleito, que havia também eleições legislativas. Fora brevíssimos intervalos - a semana pós-eleitoral e o intervalo entre a troca de faixa no executivo, em janeiro, e a troca de legisladores, em março -, Câmara e Senado costumam só ganhar destaque quando há casos de corrupção, alguma CPI que interesse à Grande Imprensa para fustigar o PT, e uma que outra "grande votação".
Por conta dessa cobertura - ou ausência de, seria melhor dizer -, a imagem senso comum do congresso e senado é a de que se trata de um bando de parasitas, que pouco fazem, e melhor que seja assim, pois, como costumam dizer vários colunistas nos jornalecões Folha e Estadão, toda vez que um deputado age algo ruim acontece. Se alguém se dispor a escutar a segunda meia-hora da Voz do Brasil ou se informar pelos sites das casas legislativas, vai ver que a história é um tanto diferente: não é só de pastores e ruralistas, de projetos insignificantes e negociatas escusas que é feita a atividade legislativa no Brasil. Sim, é feito dessa baixa política também, mas há projetos outros, que influenciam positivamente a vida de milhões de brasileiros (como a proposta para transexuais poderem alterar o nome sem grandes burocracias, por exemplo), e debates qualificados - ou quando de baixo nível, servem como panorama da situação periclitante das nossas elites, no que se refere a capacidade intelectual.
Porém, mais importante que a Grande Imprensa para esse caráter subalterno do legislativo é o próprio desenho político: não apenas por causa do executivo com poderes desproporcionais, como pela coincidência entre calendários eleitorais, que faz com que o legislativo fique obliterado pela relevância dos cargos majoritários - para o executivo, mas também para o senado. Quando Tiririca faz piada dizendo que contará qual o papel do deputado, mais do que humor raso para incautos, ele faz troça de 95% da população brasileira, que não sabe para que serve um deputado, não acompanha os trabalhos das casas legislativas (lembro de estudantes de ciência política da Unicamp só descobrirem o básico sobre o legislativo tupiniquim no segundo ano de faculdade).
Uma possível reforma política é assunto desde as manifestações de junho de 2013 - encampada, inclusive, pela presidência da república -, contudo não vi até agora discussão séria sobre o papel do legislativo e das eleições para a escolha dos representantes. A discussão gira sempre em torno do executivo - reeleição ou mandato de cinco anos -, financiamento de campanha - em que usam argumentos das campanhas para o executivo -, ou concomitância da eleição para todos os cargos - a política de alta intensidade de Marina Silva, um passo para esvaziamento ainda maior do nosso já precário debate político. Vista como subalterna pelos donos do poder, seus empregados e por quem vê política só de longe, nossos legisladores parecem assumir esse papel - estariam confortáveis com essa disfunção de nosso sistema? A separação entre as eleições para os cargos executivos e os legislativos - a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, para ficar no caso mais famoso - é um primeiro passo para um debate político sério e consistente, para um maior equilíbrio entre os poderes e para que os representantes do povo possam, de fato, representá-los. Até lá, Tiriricas podem ser vistos como pontos positivos num congresso dominado por ruralistas, evangélicos e defensores de direitos humanos para humanos direitos.

São Paulo, 09 de outubro de 2014.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O espetáculo envelheceu? O louvor de Ivana Bentes ao espetáculo.

Acompanho o Facebook da professora de comunicação da UFRJ Ivana Bentes há um bom tempo. Não se trata de alguém que eu admire, nem que eu concorde. Acompanho porque acho interessante alguém de dentro do establishment espetacular apoiar tentativas de criar formas heterodoxas de questionamento da ordem, coisa que professores marxistas que acompanho pela rede do senhor Zukenberg reprovam (para falar o mínimo). Estamos, em tese, no mesmo espectro político, o que não impede que eu tenha muitas críticas às suas colocações. Até hoje evitei explicitá-las para além do círculo de amigos por uma questão hierárquica: afinal, ela é uma doutora, pesquisadora e professora universitária, enquanto eu sou um reles mestre em filosofia, estudante de iluminação cênica e metido a escrever. Se hoje me atrevo a redigir algumas de minhas críticas e publicá-las, é porque ela resolveu se meter numa área para a qual estou qualificado para discutir, dentro da chancela acadêmica a partir da qual fala: Guy Debord e a sociedade do espetáculo. []Não falarei aqui da sua produção acadêmica, que desconheço, e sim do que chega ao grande público leigo, o que não deve ser desprezado nem visto como secundário, a se acreditar no que ela fala a esse público - o que lhe garante o rótulo de ativista. Facebook, entrevistas, mesas-redondas, penso eu que, dentro da sua concepção, são momentos de um mesmo pensamento que se pretende prático e, portanto, se recusa a se engessar em artigos acadêmicos herméticos. Antes de chegar na postagem recente no Facebook, trago minha visão sobre outros dois momentos da professora Ivana. 

 1. II Congresso de Jornalismo Cultural - Ivana x Veja 
A primeira vez que tive contato com Bentes foi no segundo Forum de Jornalismo Cultural, promovido pela revista Cult, no TUCA, em 2009. Ela participava de uma mesa-redonda com Carlos Graieb, editor-executivo da revista Veja. Foi talvez a mesa mais constrangedora a que já assisti. Graieb falou primeiro, calmamente defendeu posições grosseiramente conservadoras, principalmente a hierarquização dentro da mídia: segundo ele, o editor daria credibilidade àquilo que é publicado, e evitaria que os leitores fiquem perdidos em meio a uma miríade de informações contraditórias e contestáveis. Terminou sua fala provocando: "acho que a professora Ivana deve ter algo a dizer". E tinha. Apesar de não ter deixado de tuitar enquanto o editor de Veja falava, prestou atenção e criticou de maneira enfática a hierarquização defendida por ele, toda a midia tradicional - não hesitou em nomear e adjetivar a revista Veja -, defendeu a pesquisa na internet, louvou o fim da mediação que o Google dava com toda a sua liberdade. O público aplaudiu a professora-ativista: ela tinha detonado os precários argumento de Graieb. Abriu-se para debate, e este precisou de menos de um minuto para derrubar toda a fala de Ivana, sem possibilidade de revide: "você acha mesmo que o Google faz isso pelo bem da humanidade? Ela é uma empresa, igualzinho a Veja, quer lucro, vende os primeiros resultados pra quem pagar mais. O que há de horizontal nisso?" E ainda completou: os blogueiros mais lidos seriam os que fizeram seu nome da imprensa tradicional. Silêncio na platéia. "Inocente, pura e besta", segundo a própria Bentes, em entrevista à revista Cult 188, foi como ela chegou ao Rio. Parece que ainda guarda um bom tanto das suas raízes. 

2. Respeitosamente vândala 
Bentes foi capa da edição 188 da revista Cult, de março de 2014. Como sói acontecer com entrevistas destinadas à apresentação ao grande público de um intelectual ou afim, não se aprofunda muito. Me pareceu antes delimitar o campo de onde ela fala do que exatamente esmiuçar suas críticas. Mesmo assim, não deixa de haver contradições incômodas. Um exemplo: ela termina dizendo que "temos que lutar contra a financeirização da vida", sendo que no início havia dito que "as favelas e periferias são o maior capital nas bolsas de valores simbólicas do país". Se precisamos lutar contra a financeirização da vida, por que sujeitar a análise dessa luta à gramática financeira hegemônica? Ao falar em "capital" e "bolsas de valores" para questões sociais, Bentes me soou uma versão radical-cult do Dimenstein, sem extrapolar o campo conservador que o colunista da Folha e da Globo se situa com seu entusiasmo pelo "capital humano" tupiniquim. Outro: ao mesmo tempo que ela defende a necessidade de sair do papel de intelectual do tédio, que do alto faz o julgamento da situação, regurgita um calhamaço de termos técnicos filosóficos - muitas vezes sem necessidade -, capazes de deixar qualquer um menos afeito à linguagem pós-estruturalista se sentindo um parvo carente de Luz. Mas o que mais chamou a atenção na entrevista à Cult, principalmente nas redes sociais, não foi algum trecho da entrevista, suas idéias, nada disso: foi a capa da edição, em que Bentes apresenta seu dedo médio ao distinto público. A capa me fez lembrar de um amigo que invadiu a reitoria da Unicamp, em 2004, baixou as calças e mostrou a bunda ao fotógrafo da Folha. Virou capa do caderno quotidiano. Contudo, meu amigo conseguiu uma polêmica mais rica do que a professora. De qualquer modo, polêmica pela polêmica me soa sempre muito pobre. 

 3. Guy Debord envelhecido 
Dia 29 de junho a professora publicou em sua conta no Facebook: 
"Guy Debord envelheceu: Nós somos o espetáculo! Um dia o mundo será uma imensa Copacabana! O sábado do jogo sufoco do Brasil contra o Chile consegui fazer o mais incrivel sintese e reedição de um tropicalismo tardio (remixofagia) da nossa 'geléia geral brasiliera' na Av. Atlântica. O Ato que juntou o Copa da Rua com a Carnavandalirização misturou manifestante torcedor e torcedor manifestante e evoluiu em clima politico delirante. Porque fazer politica é uma das formas do delirio. Dessa vez a policia formou literalmente uma 'ala' ao final do cortejo, disciplinadamente, fechando e 'cortejando' a parada civico-contestatória. E estavam lá todas as pautas, das micropoliticas do desejo até as remoções nas favelas e a desmilitarizaçao da policia. Como diria Jean Luc Godard turistas e torcedores se encantavam e fotografavam, manifestantes protestavam, a comunidade LGBT e os pink bloc mostravam os corpos purpurinados e a policia policiava. E as centenas de jornalistas acompanhavam tentando decifrar o cortejo-obra da politica em linguagem pós realismo mágico. Sociedade do espetáculo? Guy Debord envelheceu: Nós somos o espetáculo! Seja para perturbar e criar tensões e confrontos, seja para sermos domesticados e neutralizados! Como decide? Não vai ser nos penaltis. O ato continuou pelas areias do Leme, parou para ver o jogo decisivo e continuou noite adentro. https://ninja.oximity.com/article/Futebol-sem-roupa-e-tropa-rosa-shock-n-1 
P.S. Debord continua inspirador, mesmo não acompanhando todas as consequências do seu discurso, muitas vezes usado de forma imobilizante." 
N'A sociedade do espetáculo, Debord põe os Conselhos Operários como uma demonstração, um embrião do que seria a sociedade pós-capitalista. Em tais conselhos, os produtores teriam controle sobre o que produzem, e haveria um clima de liberdade e festa permanentes, graças a essa condição de controle da própria história. Ivana parece aludir a essa festa dos Conselhos quando fala do manifestante torcedor unido ao torcedor manifestante em um delírio político. Atores sociais conscientes, assumindo a história como produtos de suas ações e comemorando em comum essa liberdade. Será? O que há é um carnaval que não perturba a ordem, apenas comemora a ampliação da política. Um ganho, sim, mas muito longe de ser uma vitória, e muito, mas muito longe de desqualificar as teses de Debord. 
Uma primeira falta é perceptível nessa descrição de Ivana: a Política. Talvez essa manifestação de torcedores manifestantes fosse político em junho de 2013, não o é mais um ano depois. Em junho de 2013 manifestações populares, ainda mais as manifestações parando as ruas das cidades eram uma excrescência que deveria ser combatida pelas forças da ordem, para manter o tráfego e a paz social. O MPL São Paulo conseguiu ampliar o estretíssimo campo político brasileiro, recolocando as ruas como parte da Ágora. Pouco depois, os defensores das táticas black blocs conseguiram impedir que a tomada das ruas perdesse seu caráter contestatório e político - em que inocentes cartazes atrapalhavam o trânsito em uma faixa e se tornavam rotina protegida pelos militares. Garis do Rio e metroviários de São Paulo, já em 2014, foram dois exemplos de aprofundamento dessa disputa política que, como caracteriza Rancière, consiste no processo de desestabilização da ordem imposta pelo poder - que distribuiu e legitima corpos e funções dentro de uma ordem hierárquica - em favor de uma lógica mais igualitária (os movimentos dos trabalhadores sem teto entram nesta mesma lógica, porém sua luta vem desde antes das revoltas de junho de 2013, por isso não cito como exemplo pontual). 
Na descrição do delírio político de Ivana o máximo que se vê é a afirmação dos ganhos políticos do último ano: não há embate, não questionamentos à ordem, não há disputa para ampliação da pauta do que é considerado como sendo legitimamente político, não há, enfim, política. Há uma festa, só. A política como delírio de intelectuais. (Reforço meu ponto de partida: a descrição da professora). Prova maior é a sua descrição da polícia militar: cortejava disciplinadamente essa festa, estava incluída nela. Nesse caso, ou temos uma revolução, ou temos uma contestação autorizada, porque não viola pactos e limites postos pelo espetáculo (governo, mercado e mídia) para seus súditos. E os críticos espetaculares do espetáculo louvam o poder quando imaginam questioná-lo. 
A leitura que Bentes indica ter feito de Debord, centrada no seu aspecto mais visível e mais sujeito à ideologização, reforça o desvio do seu pensamento que o próprio pensador já previa. No capítulo VIII d'A sociedade do espetáculo, "A negação e o consumo da cultura", Debord alertava tanto para "a crítica espetacular do espetáculo" (§196) quanto para o uso do conceito de espetáculo como "fórmula vazia da retória sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular" (§203). Nos Comentários de 1988, ele retoma: "A discussão vazia sobre o espetáculo - isto é, sobre o que fazem os donos do mundo - é organizada pelo próprio espetáculo: destacam-se os grandes recursos do espetáculo, a fim de não dizer nada sobre seu uso. Em vez de espetáculo, preferem chamá-los de domínio da mídia" (item III). Negar a teoria debordiana porque em um carnaval fora de época em que se gritavam palavras de ordem e a polícia militar acompanhava sem incomodar é uma leitura muito rasa - é um assujeitamento muito descarado para quem diz se revoltar contra essa política nos corpos -, e um uso ideológico que corrobora ainda mais a atualidade de Debord. 
Quando Bentes exclama "nós somos a mídia!", "nós somos o espetáculo!", a professora não mente, em certo sentido: sim, estamos submetidos à mesma lógica de especialização e alienação do trabalho que sustenta o espetáculo. Somos nós que o sustentamos e o aplaudimos. Sempre fomos, isso está dito por Debord desde a década de 1960. Estamos sujeitos à sua gramática, à sua linguagem, por isso a Mídia Ninja pode disputar de igual para igual com a mídia tradicional: porque fala àqueles que entendem a língua espetacular. É uma visão diferente, pode ser mesmo questionadora de certo status quo, mas não é subversiva. Assim como o Fora do Eixo, tão elogiado pela professora na sua entrevista à Cult: ou ela acha que formar uma empresa de promoção cultural paralela às grandes indústrias culturais é romper com a lógica de valorização do capital e com o trabalho alienado? Nos shows do Fora do Eixo no Studio SP, eu pagava pra entrar, os funcionários recebiam para trabalhar por tantas horas, tudo seguia o fluxo normal do capitalismo. Onde está o revolucionário? Até uma questão de impossibilidade objetiva, as experiências heterodoxas de questionamento da ordem que Ivana aplaude entusiasticamente não são anti-capitalista - e assumir isso não é um fracasso, mas uma potência para repensar novos atos. A afirmação efusiva de que somos os espetáculo, como se isso fosse uma novidade ou algo positivo, chega a ser preocupante a alguém que se pretende crítico e engajado. 
Lembro uma coisa que o professor Marcos Nobre disse em uma aula, ainda na minha graduação: "se você achou um erro num grande autor, releia, porque o mais provável é que você não entendeu". Bentes, ao cravar que Debord envelheceu, fala o contrário do que diz, mostra que não entendeu o cerne da crítica do francês, e reforça o poder do espetáculo. 

São Paulo, 02 de julho de 2014