Ao
ouvir a entrevista do secretário de educação do Estado de São
Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, na rádio CBN, quarta-feira,
o primeiro escritor que me veio à memória foi Millôr Fernandes:
"Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você
manda em mim". As alusões bibliográficas não se encerraram
por aí: o duplipensar orwelliano também era claro na fala do
secretário. Para não falar na máxima de Goebbels, tão em voga
nestes Tristes Trópicos - afinal, se algo é repetido o tempo todo,
só pode ser verdade, não?
Em
quarenta e cinco minutos montados para o secretário "explicar
para a população" as medidas adotadas pelo governo tucano,
Voorwald conseguiu irritar as muito complacentes
entrevistadoras, Fabíola Cidral e Ilona Becskeházy. Para alguém um pouco mais crítico, sua fala foi
temerária do início ao fim, uma boa mostra de desapreço à
democracia por parte dele e do governador para quem trabalha, o senhor
Geraldo Alckmin.
Diz
o secretário que o projeto de reorganização das escolas está em "fase de discussão" e que não é uma medida atabalhoada, antes parte
de um processo que vem desde dois mil e onze - ou seja, desde a
gestão anterior. Duas questões importantes quanto a isso: se é um
processo, como os agentes diretamente envolvidos - professores,
alunos e pais, para não falar nos cidadãos sem ligações diretas
com a escola - não estavam a par? Inadmissível em um governo sob regime democrático um processo que afeta toda a sociedade passar quatro
anos na sombra. Já dizer que o fechamento das escolas está em fase
de discussão é negar a realidade, ao gosto do Grande Irmão, de
1984, ou como bem definiu Millôr Fernandes: desde quando baixar uma
norma determinando o fechamento de escolas é discussão? O
secretário usa como exemplo de "abertura para o debate" do
governo o fato de ter revertido a decisão de fechar duas escolas,
por terem conseguido provar que eram importantes. Isso não é
debate, é ceder a movimentos de resistências: diante de uma norma
ditada de cima, decida em gabinetes com ar-condicionado, sem qualquer discussão com a sociedade, provou-se que os
tecnocratas que a elaboraram durante quatro anos foram incapazes de
perceber a relevância dessas duas escolas - nada surpreendente, já
que a comunidade é um dos atores mais indicados para indicar a
importância e os porquês de dados equipamentos públicos.
Como
todo político no poder, Voorwald tenta desqualificar os movimentos
reivindicatórios e todo e qualquer crítico de sua proposta. Sobre
as críticas dos professores das faculdades de educação da USP e da
Unicamp, disse que não tinham qualquer importância, que os pesquisadores de educação pouco (ou nada) sabem de educação - e completou que
se a crítica partisse da FEA, aí ele daria crédito.
Na
sua fixação em desqualificar as ocupações - que são, afinal de
contas, contestações efetivas e não beletrismo acadêmico em busca de revistas indexadas -,
conseguiu tirar do sério as entrevistadoras. Depois de repetir pela
enésima vez que seria anti-democrático e inadmissível que as
escolas "invadidas" fosse trancadas pelos invasores,
aparelhados por "movimentos políticos". "Secretário,
o senhor já falou quatro vezes isso", retrucou a certa hora a
entrevistadora, diante de um secretário que ignorava a questão
feita para explicar o plano para a população. Pouco a seguir,
depois de Voorwald chorar novamente sua ladainha sobre a falta de
democracia dos alunos aparelhados por "movimentos políticos",
a entrevistadora teve que lembrar o secretário de educação que ele
não podia generalizar, pois a maioria das ocupações não ostentava
bandeiras de partidos ou do MTST.
Estavam
numa empresa do grupo Globo, é claro que passou sem problemas o
discurso proto-fascista do ex-reitor da Unesp: ao usar o argumento de
"movimento político" para desqualificar o protagonismo dos estudantes, como se fosse uma falha óbvia, desmerecedora - e
pior, ilegal e autoritária - discutir política e usar instrumentos
político numa questão política. Os desembargadores do Tribunal de
Justiça de São Paulo deram uma pequena lição de democracia ao
governador Alckmin, ao negar o pedido de reintegração de posse:
"[as ocupações] não envolvem questão possessória, pois o
objetivo dos estudantes é apenas fazer com que o Estado abra
discussão sobre o projeto de reorganização da rede de ensino".
Desta vez a justiça negou a educação feita na base de porrada,
bombas e balas "não-letais" (que eventualmente matam), tão ao gosto dos governadores paulista nos últimos vinte anos. Talvez a proposta tucana seja das mais razoáveis para o momento (não tenho opinião formada e não palpito sobre), e me parece que os alunos não estão negando de antemão essa possibilidade: é certo que duvidam que seja, e questionam, principalmente pela forma como Alckimin está tentando implementá-la. Se o governo apresentar argumentos sensatos, as ocupações perdem força no momento seguinte.
Há
pressões para que o governador abra discussões sérias - dessas que
envolve apresentação e discussão de propostas e não
o-governo-fala-a-população-acata. Entretanto, não é de agora que
o PSDB demonstra apreço nenhum pela democracia: gestões feitas de
cima para baixo, questões sociais resolvidas preferencialmente com
polícia militar e porrada, negação e desqualificação do
contraditório, leis em interesse próprio, complacência com
corrupção e descrédito do processo eleitoral. Para sorte do
partido de Alckmin, a Grande Imprensa brasileira defende o mesmo
modelo de democracia dos cemitérios - e das ditaduras -, em que o
povo acata bestializado o que pequenos ditadores da Casa Grande determinam - "sim, senhor". Desta feita os estudantes da rede estadual de São Paulo decidiram dizer "Não!", ao gosto do operário de Vinícius de Moraes: "E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução/ (...)/ Em vão sofrera o operário/ Sua primeira agressão/ Muitas outras se seguiram/ Muitas outras seguirão./ Porém, por imprescindível/ Ao edifício em construção/ Seu trabalho prosseguia/ E todo o seu sofrimento/ Misturava-se ao cimento/ Da construção que crescia".
ps: não era o foco de meu texto, mas destaco que a pauta dos estudantes da rede estadual, diferentemente das usuais pautas da Apeoesp ou dos universitários (professores e alunos), não é corporativa. Que professores e universitários aprendam algo com toda essa mobilização.
26 de novembro de 2015.
E os estudantes ensinam: a escola é nossa, não do governo. |
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