Um
das principais conseqüências das chamadas "jornadas de junho",
de 2013, é a assunção da rua como espaço político ordinário.
Num país em que "político" é tido como termo pejorativo
pelos próprios políticos, e no qual rua como espaço público é
duramente questionado pela Grande Imprensa e pelas parcelas
bem-remediadas do país - a ponto de se dizer, por exemplo, que o
centro de São Paulo é área morta e precisa ser "revitalizada"
-, conseguir que a rua assuma positivamente o papel político é algo
a ser comemorado - na história destes Tristes Trópicos, talvez isso
tenha acontecido apenas no interregno democrático entre 1945 e 1964;
os caras-pintadas do Fora Collor, em 1992, não conseguiram deixar
esse legado: tão logo caiu o presidente, tudo tomou seu lugar,
depois que a banda passou.
E
assim seguiu, de 1992 até a "quinta terror", aquela de
repressão a la Pinheirinho contra os manifestantes classe-média que
protestavam contra o reajuste da tarifa de transporte público: toda
manifestação era tida por baderna e perturbação da ordem, um
bando de desocupados que ao invés de trabalhar prefere atrapalhar os
cidadãos de bem. Desde então, como espaço político, fechar uma
faixa da Paulista para meia dúzia protestar contra o que for passou
a ser legítimo. E como a rua ainda resiste em ser pública, cabe
manifestação de esquerda, cabe manifestação de direita, cabe
pobre pedir direitos, cabe rico pedir fim de direitos (dos outros,
claro). Após dois anos das tais jornadas, as diferenças entre
manifestação de esquerda e de direita foram se sedimentando e hoje
são evidentes: na primeira, os policiais militares pronto para
atacar; na segunda, os mesmo soldados fazendo poses para selfies;
numa, diversas cores e classes; na outra, a padronização nas
camisas da seleção em corpos brancos e bem nutridos; uma acontece
durante a semana ou quando for necessário, na Paulista, no Viaduto
do Chá, em Itaquera, na Praça da República, na Sé, no Grajaú, na
Anhanguera, nas marginais; a outra ocorre aos domingos, na avenida
Paulista, no máximo no Largo da Batata, com chamadas na rede Globo.
A
importância da ocupação das ruas é vital se pretendemos construir
uma sociedade democrática: conforme o filósofo francês Paul
Virilio, mesmo em tempos de internet, de petições online, de xingar
muito no tuíter e de páginas de protesto, o real poder está onde
sempre esteve: na rua. Tem o controle da situação quem tem o
controle da rua - daí todo o aparato do urbanismo e dos avanços
técnicos para retirar a massa da rua.
Exemplo
do poder das ruas: foi quando os estudantes - que desde o início
agiam politicamente, diga-se de passagem - que ocupavam as escolas
estaduais passaram a ocupar também as ruas que Alckmin recuou no
fechamento das noventa escolas para 2016, não sem antes ter enviado
para o diálogo - conforme o governador - seu porta-voz principal
para questões sociais, a polícia militar e sua retórica feita de
balas de borracha, bombas de gás e porrada democraticamente
distribuída.
Nesta
semana, a direita foi para a rua domingo, como é do seu feitio,
protestar contra Dilma e a favor do golpe - nem precisa mais ser
militar. Na quarta, a esquerda assumiu o protagonismo, em defesa da
democracia.
A
Grande Imprensa, como era de se esperar, manteve sua narrativa
anti-democrática e golpista. Em tempo: não seria golpista se
tivéssemos pluralidade nos meios de comunicação; contudo, com a
Grande Imprensa agindo em monobloco, distorcendo os fatos de acordo
com seus interesses, sem qualquer contraditório, aplicando os
ensinamentos de Goebbels - sem conseguir atualizá-los para o tempo
de internet -, resulta em pacto com um golpe de Estado. No domingo
dos protestos pró-golpe, o Estadão trazia o protesto na primeira
página; O Globo falava do futuro governo Temer; enquanto a Folha de
São Paulo - versão diária para a Veja - estampava como manchete
que "após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida"
(por mais que todos os indicadores digam o contrário), e imprimia na
sua primeira página nota sobre os protestos. Na segunda, o Globo
sequer os mencionava na sua capa, os jornalecões de São Paulo
falavam do fracasso, ainda que Folha tentasse dar um ar Poliana a
ele. Na quinta, os jornais noticiavam como atos pró-Dilma os
protestos que foram antes de tudo anti-golpe - como dissera em
entrevista à BBC Brasil Guilherme Boulos, boa parte, se não a
maioria, não estava ali para defender o governo, mas a democracia.
Por terem levado mais gente que os protestos de domingo, mereceram
figurar na primeira página dos três jornalecões, não sem antes
explicitar que era movimento de centrais sindicais (seriam
manifestações comunistas?).
O
que mais me chamou a atenção, todavia, foi o tuíter da jornalista
Eliana Cantanhêde, uma das principais porta-vozes dos barões da
mídia - talvez por não ter constrangimento em ser velhaca para
defender o patrão. No dia das manifestações contra o golpe,
quarta-feira, ela disse: “Devia ser proibido fazer manifestação
em dia útil. São Paulo está um caos. Irritante!”. Fosse outra
pessoa, e esse comentário poderia passar em branco. Sendo de quem é,
merece um pouco de reflexão. O irritante para a jornalista (e todo o
pensamento que ela representa) não é manifestação em dia útil, é
manifestação de esquerda. José Serra reclamou da avenida Paulista
interditada para carros, num domingo, por prejudicar o trânsito;
Cantanhêde faria o mesmo tranqüilamente. Nenhum dos dois, contudo,
reclamou da Paulista fechada para protesto contra a Dilma - os
colegas de Serra até foram discursar no dia treze. Ao querer
restringir protesto para domingo, Cantanhêde mostra bem seu apreço
pela democracia sem povo e sem contraditório, uma democracia que não
perturbe a ordem viável (e viária) apenas para as classes abastadas
- porque as classes subalternas sofrem diariamente com trânsito,
transporte público, violência policial, omissão estatal, etc -; e
discretamente afirma que há uma manifestação legítima e outra
não: como apontado acima, manifestação de domingo não diz
respeito apenas ao dia da semana, mas também ao tipo de manifestante
e as bandeiras que defendem.
A
rua como espaço ordinário de política começa a incomodar os
detentores do poder, assim como a rua como espaço público. O
projeto do PSDB e da Grande Mídia - que é sua mentora intelectual -
mostra cada dia mais seu deprezo pela democracia: dois pesos duas
medidas para a corrupção, golpe para vencer eleições, tropa de
choque da polícia militar para dialogar com movimento sociais, rua
para carros, circo (Faustão, Datena, Bonner, Ratinho e afins) para o
povo, para o qual fazem a promessa seguir com seu direito de dar a
última palavra: sim, senhor.
19
de dezembro de 2015
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