São Paulo é uma cidade que autoriza uma descoberta nova a cada dia,
que seja dos seus personagens urbanos, que seja dos seus bares e
restaurantes.
Mês passado um amigo veio me visitar. De meio-dia fomos a um
restaurante árabe na cracolândia, bom e barato (não só para os
parâmetros de São Paulo), levados por uma amiga de “alma gorda e
bolso magro”. À noite, eu e esse amigo fomos dar o rolê básico
na Augusta. Quase na Roosevelt encontramos três amigos (dois deles
que já figuraram em crônica aqui [j.mp/cGe25712]) num bar. Paramos
para conversar. Ficamos um tempo ali, enquanto não decidíamos para
onde ir, discutindo quase-amenidades como política, eleições,
alternativas de esquerda, próximas cartadas do Lula, isso em meio a
prostitutas que passavam (estávamos mais perto dos inferninhos do
que dos teatros). Decidido que era hora de ir para outro lugar, um
dos amigos propôs a Augusta, os demais preferimos algo fora do nosso
habitual. O mesmo amigo partidário da Augusta não aceitou os
inferninhos decadentes da Santa Cecília, sugerido pelo amigo lindo
(para usar a expressão da crônica de antanho), que nos propôs,
então, outro bar, “muito legal”. E lá fomos, o amigo do Garcia,
que antes reclamava do preço da cerveja, agora reclamava não
iríamos a inferninho algum e, andado cinqüenta metros, passou a
reclamar também que teríamos que caminhar. O amigo lindo dizia que
era um lugar cheio de mulheres lindas e descompromissadas, loiras,
morenas, e uma ruiva no balcão. Pela primeira vez vou à “rive
droite” (para dar um ar mais parisienne à crônica) do
Viaduto Nove de Julho à noite – nunca tinha me aventurado para
além do Estadão. A região é um tanto vazia, moradores de rua
dormem sob as marquises, o amigo do Garcia segue reclamando. No
Bixiga entramos numa rua completamente deserta. O amigo lindo avisa,
é logo ali na frente. Chegamos a um sobrado de esquina. Parece haver
pessoas no andar de cima, mal iluminado. A porta está fechada. O
amigo lindo assobia, chama por alguém. Desce um homem, abre as
portas (além da de ferro, para a rua, havia uma grade antes das
escadas). O amigo lindo sobe, ver se podemos entrar. E eu que
imaginava que os inferninhos da Santa Cecília que seriam barra
pesada. Que lugar é esse que ele está nos trazendo, alguém
pergunta. A gente pode subir, avisa o amigo lindo. Eu imagino que
logo à entrada vai estar um segurança com uma pistola
semi-automática exposta na cintura, que pessoas mal encaradas jogam
pôquer em uma mesa – ou fazem uma reunião do “partido” –, e
as muitas mulheres lindas já quase não têm mais nariz. Subimos,
cumprimentamos os donos à entrada. Bem-vindos. As poucas pessoas que
estão no bar nos observam – salvo um casal bêbado que brigava em
uma mesa em separado –, cumprimentamos de longe e vamos para uma
mesa no fundo. Não há segurança com pistolas, nem membros do
partido, nem mulheres sem nariz (praticamente nem mulheres). Em
compensação, há bandeiras do MST, do Corinthians, da Palestina,
pôsters do Che e outros contestadores, nos guardanapeiros, adesivos
de greve; no som, Gilberto Gil. É o Espaço de Cultura
Latino-Americana. Um lugar de esquerda com preços de direita – que
o amigo revolucionário do grupo compreendeu como necessário para
manter as atividades e contribuir para a revolução. De
revolucionário que se percebe num primeiro olhar, creio que o fato
de não respeitarem a lei anti-fumo. Da minha parte, questiono a
validade dessa tese da esquerda dos anos sessenta para os dias de
hoje: da festa como local de contestação, mas enfim. Está miado
hoje, já é tarde, mas é um lugar legal, se desculpa o amigo lindo.
O amigo do Garcia reclama (do preço, da falta de mulheres, de ter
caminhado, de ter subido escadas, da música que está tocando).
Talvez pelo nosso espírito altamente contestador, exaltado ainda
mais pelo lugar, a conversa que era de política e filosofia (os
cinco da mesa com formação em filosofia e tendências esquerdistas, apesar do meu amigo revolucionário me achar um tucano direitista por não endossar o sistema representativo democrático liberal, e o amigo de Campinas ter pertencido a um grupo taxado de fascista no IFCH, por se contrapôr numa eleição ao Centro Acadêmico ao PSTU e ao PSOL)
quando estávamos próximo aos puteiros, passa a ser de mulheres, em
um tom que prefiro não prefiro reproduzir aqui – com um breve
intervalo para discussão de ordens arquitetônicas e “ordens
arquitetônicas meu cu”, como definiu o amigo do Garcia o
neo-clássico brasileiro, mesmo o de antigamente. Ainda que sem
emoções fortes, malucas, nóias e coisas do gênero, uma noitada
bizarra.
Mais recentemente uma amiga veio me visitar. Fomos à liberdade no
domingo, perto das duas da tarde. O passo apressado para escapar da
chuva que se prometia forte, e que até então se resumia a esparsos
pingos grossos. É aqui, ela anunciou, e adentramos uma portinha que
parecia ser de outra das galerias da Liberdade, com o diferencial de
ser em uma rua secundária, perpendicular à avenida Liberdade e à
rua Galvão Bueno. Na entrada, à esquerda, uma loja de camisetas (a
do Godzilla, por exemplo, estava trinta e oito reais). Logo depois,
três máquinas de vender bolinhas – dessas que tanto me animavam
quando criança e que eram raras e caras (ao menos era o que dizia
meus pais). A seguir, um velhinho japonês rabiscava um papel com
violência, enquanto explicava – no tom ríspido que o idioma soa
àqueles que, como eu, não o compreendem – ao seu cliente o que
havia lido em sua mão. Minha amiga – uma “magra de alma gorda”,
como ela mesma (com razão) se define – já havia me avisado: é
uma portinha, e no fundo abre um salão. Ao atravessarmos esse
corredor, finalmente chegávamos ao restaurante. Não deixei de me
surpreender, apesar de avisado: não era um salão, antes um enorme
galpão, com um baita ar de bandejão da Unicamp: luz fria, mesas
coletivas, muito ruído (logo piorado pelo som da chuva forte), um
grande buffet, com a cozinha exposta ao lado. No fundo, um japonês,
na casa dos quarenta anos, camisa e calça social, dando uma grande
impressão de seriedade – de que recém havia saído de algum culto
religioso –, tocava blues (estadunidense). Ao menos não havia a
coordenadora chata do bandejão pedindo palmas – o público, digo,
os clientes eventualmente até aplaudiam. No buffet, várias saladas,
sushis adentrando a decadência rococó-pós-moderna do sincretismo
geral brasileiro que já se abatera sobre as pizzas, ou seja, sushis
com recheios vários e bizarros (nenhum de mortadela, como na cantina
do DCE-Unicamp, se bem percebi), peixes grelhados, tempurá,
yakissoba e outros pratos quentes, inclusive churrasco. Na mesa ao
lado, numa família de negros que parecia saída de uma sitcom
americana, a filha mexia os ombros suingadamente ao som da música;
na mesa da frente, dois casais – um deles com uma filha na casa dos
dez anos –, muito tatuados, braços pescoços peitos, tiravam fotos
e mais fotos e mais fotos e mais, da comida do lugar deles, com
óculos, sem óculos, fazendo cara de mal, fazendo beicinho, rindo,
fazendo vezinho; atrás de mim, minha amiga me sugeriu dar uma
olhada, duas senhoras orientais pareciam brincar de estátua, tão
pouco e tão lentamente se mexiam – dava quase agonia –; na nossa
mesa, um homem oriental muito duro nos gestos, no se sentar, no
aplaudir, no comer. Comentei que se a série de pequenos quadros na
parede oposta à cozinha fosse substituída pela via crucis,
aumentaria o inusitado, mas não soaria tão deslocado assim. E olha
que você nem viu a mulher que, não sei se é a dona ou o que, está
sempre aqui, uma senhora japonesa de cabelo vermelho. Imaginei uma
versão japonesa para Peggy Bundy, do seriado Married with
Children. A luz pisca, por causa
da chuva, os funcionários (que não são orientais) puxam uma vaia,
para aumentar ainda mais o ar de bandejão – não fosse pelo preço,
pela comida, pelo público, pelos hashis, pela ausência de pombos.
Na comanda, o valor anotado com caneta rosa. Ao contrário da comida
japonesa, o churrasco não é muito bom. À noite levei essa
amiga e outros dois a um restaurante chinês, que além de ter uma
tesoura para cortar o macarrão, oferece ao vivo o show da arte do
macarrão.
São Paulo oferece as mais inusitadas artes.
São Paulo, 12 de fevereiro de 2013.