segunda-feira, 9 de julho de 2012

Minha primeira namorada

Manuel Bandeira teve seu porquinho-da-índia como primeira namorada: começou mal, sua namorada desdenhava de suas "ternurinhas" e preferia o calor do fogão ao seu. Menos terreno e mais idealista, Drummond foi achar sua primeira namorada nas estrelas, em Orion: entre eles luziam quilômetros de silêncio, sem beijo ou toque.

Ainda que um pouco mais tardio que os poetas (pra variar, eu sempre atrasado, quando não há hora marcada), minha primeira namorada foi por caminhos parecidos: meu piano – eu tinha meus quatorze anos, por aí. Não sei se foi questão de sorte ou de esperteza (pensando bem, foi sorte), porém escolhi uma primeira namorada que não me fugia, nem se calava – e isso por mais que eu carinhosamente a maltratasse diariamente (na verdade, acho que os mais maltratados nesse meu namoro foram (são) meu irmão e meus pais, e olha que eles foram inteligentes ao não deixarem eu estudar bateria, quando tinha uns nove, dez anos).

Depois do piano, até consegui arranjar outras namoradas e, admito, mais interessantes: mulheres, como espera-se que uma namorada seja – dando início a um período de relacionamentos com intervalos bissextos entre eles, que eu bem tenho tentado, sem sucesso, encurtar para bienais, ao menos. Nunca me considerei um bígamo, ou que estivesse traindo meu piano com esses relacionamentos, ou com as paixões platônicas que apareceram no interlúdio – uma delas, por sinal, fazia sempre aula num horário contíguo ao meu.

Mas assim que saí da casa dos meus pais, admito, diante da impossibilidade de um piano em Ribeirão, flertei com a flauta transversal – pequena, leve, poderia me acompanhar aonde eu fosse. Meus pais só aceitariam essa minha nova namorada se me desfizesse de meu piano. Nada feito! Segui fiel à minha primeira namorada.

Umas férias fui ver se conseguia algo com violão. A experiência não precisa maiores descrições.

Em meados da década cogitei o pandeiro. Não cheguei às vias de fato. Se tivesse chegado, contudo, não consideraria uma traição: é certo que havia um interesse no instrumento, porém havia também a necessidade de aprender a pegar ritmo – até para conseguir tocar o piano sem maltratá-lo tanto.

Tempos depois descobri o piano elétrico – o qual, me convenci, não é bem um piano, é mais um simulacro de, de forma que posso dizer que, caso um dia tenha um, não troquei minha primeira namorada. Inclusive, já prometi a mim mesmo, se algum dia eu arranjar um trabalho assalariado, a primeira coisa que comprarei será o tal do piano elétrico.

Mas ontem, ouvindo uns tangos e tangos eletrônicos, me lembrei da espichada de olho que dei ano passado, num congresso de medicina, para um acordeon, que um dos futuros médicos tocava, acompanhado de um bigode (pareceu meio sem sentido essa última frase? Tudo bem, o referido estudante também). Além de mais prático para carregar (piano é sempre um trambolho, por mais que seja elétrico), um instrumento mais cinematográfico, de mais presença: não tem como não lembrar do filme Tango, de Carlos Saura, e, principalmente, O fabuloso destino de Amelie Poulain, do Jean-Pierre Jeunet. Por mais que eu já tenha tocado “La cumparsita” e ainda consiga tocar (arranhar) a “Comptine D'un Autre Été: L'après Midi”, do filme da Amelie, não é a mesma coisa: é a valsa tocada no acordeon que marca a trilha sonora do filme, assim como um tango sem um instrumento de palheta livre soa maneta.

Sabia que não era sério essa minha ideia do acordeon. De qualquer modo, para garantir que ficaria só no platonismo musical, pensei no trabalho todo que não teria para aprender um novo instrumento. Recordei da minha tentativa com violão, do mestrado por acabar e da graduação ainda começando, e reparei que me faltaria ânimo para encarar um novo desafio desse porte. Mas a gota d'água foi quando me lembrei que em tango se toca bandoneon e não acordeon. Decidi, enfim, permanecer fiel ao velho piano, minha primeira namorada – ao menos no que se refere a instrumentos musicais.


São Paulo, 09 de julho de 2012.

domingo, 8 de julho de 2012

Danças [Im]Puras

Um corpo tensionado não é necessariamente um corpo em tensão.

Imagino que tensionar um corpo a ponto de representá-lo em tensão não seja tarefa fácil – se é que é possível esse tensionamento não se tornar em tensão mesma. "Danças [Im]Puras", espetáculo de Maura Baiocchi e Taanteatro Companhia, arremessa o espectador nesse aspecto tenso – não se pode falar em clima, propriamente, pois a coreografia não dá tempo para a criação de um. De modo que me impressionou o fato de essa tensão – física – representada no corpo de um dançarino, apresentada de chofre, ser tão pulsante a ponto de reverberar no meu: era possível compartilhar da tensão – assim como certa angústia, determinadas horas –, isso apenas passando pelo corpo e a criação da situação – sem apelar para uma narrativa que se constrói no tempo e nele se distende. Pode ser proposta da criação, mas a um leigo (não totalmente ignorante, preciso admitir) em dança, a impressão de algumas falhas de técnica (que podem ser impressão errada do escriba leigo, também preciso admitir) ajudaram ainda mais nessa tensão.

Com influências do surrealismo, bem calcado em Lautréamont – como na mistura de objetos, elementos díspares, fora do seu uso usual (o encontro de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de operação) –, partindo de um contexto mais ligado à natureza (tudo começa, ainda fora da sala de espetáculos, com um vídeo rodado no Parque Água Branca, na região oeste de São Paulo), “Danças [Im]Puras” constrói uma atmosfera onírica, mas atualizada para um tempo em que se desaprendeu a sonhar: não é pesadelo, mas tampouco é a realização de desejo: é claustrofobia – por mais que haja saídas, que haja o céu no horizonte.

Sob um céu tempestuoso, paredes com aspecto de gasto e galhos secos, os bailarinos bailam com girassóis ressecados e brilhantes, luvas de boxe feitas de esparadrapos se desfazendo em sanguinolências (ou seriam se fazendo, e o sangue seria da própria luva?), bonecas de um olho que arrancam a própria cabeça, um grande pássaro, uma coisa branca amorfa; tudo – sempre – em grande tensão, ora positiva – como na “Cópula Tatarana + Pombadapaz & Macacoshivapatodoparaíso” –, ora negativa – “Objeto fel” –, ora ambígua – “Tartarugaluvadebox & porco”. E tudo – coreografia, música, cenário, iluminação, figurino – muito coeso (e bem feito!), o que ajuda a prender ainda mais a atenção naquele universo de estranhas narrativas e expressivos significados.

Se, como disse no início, “Danças [Im]puras” começa por arremessar o público na tensão; no fim, ela termina por distendê-la, em “Partida: viver juntos'bar”, abandonando a platéia num estranhamento geral. Difícil é seguir a sugestão e encarar tranqüilamente um bar depois: como toda boa obra-de-arte, "Danças [Im]Puras" exige digestão lenta.


São Paulo 08 de julho de 2012.