Manuel Bandeira teve seu porquinho-da-índia como primeira namorada:
começou mal, sua namorada desdenhava de suas "ternurinhas"
e preferia o calor do fogão ao seu. Menos terreno e mais idealista,
Drummond foi achar sua primeira namorada nas estrelas, em Orion:
entre eles luziam quilômetros de silêncio, sem beijo ou toque.
Ainda que um pouco mais tardio que os poetas (pra variar, eu sempre
atrasado, quando não há hora marcada), minha primeira namorada foi
por caminhos parecidos: meu piano – eu tinha meus quatorze anos,
por aí. Não sei se foi questão de sorte ou de esperteza (pensando
bem, foi sorte), porém escolhi uma primeira namorada que não me
fugia, nem se calava – e isso por mais que eu carinhosamente a
maltratasse diariamente (na verdade, acho que os mais maltratados
nesse meu namoro foram (são) meu irmão e meus pais, e olha que eles
foram inteligentes ao não deixarem eu estudar bateria, quando tinha
uns nove, dez anos).
Depois do piano, até consegui arranjar outras namoradas e, admito,
mais interessantes: mulheres, como espera-se que uma namorada seja –
dando início a um período de relacionamentos com intervalos
bissextos entre eles, que eu bem tenho tentado, sem sucesso, encurtar
para bienais, ao menos. Nunca me considerei um bígamo, ou que
estivesse traindo meu piano com esses relacionamentos, ou com as
paixões platônicas que apareceram no interlúdio – uma delas, por
sinal, fazia sempre aula num horário contíguo ao meu.
Mas assim que saí da casa dos meus pais, admito, diante da
impossibilidade de um piano em Ribeirão, flertei com a flauta
transversal – pequena, leve, poderia me acompanhar aonde eu fosse.
Meus pais só aceitariam essa minha nova namorada se me desfizesse de
meu piano. Nada feito! Segui fiel à minha primeira namorada.
Umas férias fui ver se conseguia algo com violão. A experiência
não precisa maiores descrições.
Em meados da década cogitei o pandeiro. Não cheguei às vias de
fato. Se tivesse chegado, contudo, não consideraria uma traição: é
certo que havia um interesse no instrumento, porém havia também a
necessidade de aprender a pegar ritmo – até para conseguir tocar o
piano sem maltratá-lo tanto.
Tempos depois descobri o piano elétrico – o qual, me convenci, não
é bem um piano, é mais um simulacro de, de forma que posso dizer
que, caso um dia tenha um, não troquei minha primeira namorada.
Inclusive, já prometi a mim mesmo, se algum dia eu arranjar um
trabalho assalariado, a primeira coisa que comprarei será o tal do
piano elétrico.
Mas ontem, ouvindo uns tangos e tangos eletrônicos, me lembrei da
espichada de olho que dei ano passado, num congresso de medicina,
para um acordeon, que um dos futuros médicos tocava, acompanhado de
um bigode (pareceu meio sem sentido essa última frase? Tudo bem, o
referido estudante também). Além de mais prático para carregar
(piano é sempre um trambolho, por mais que seja elétrico), um
instrumento mais cinematográfico, de mais presença: não tem como
não lembrar do filme Tango,
de Carlos Saura, e, principalmente, O fabuloso destino
de Amelie Poulain, do
Jean-Pierre Jeunet. Por mais que eu já tenha tocado “La
cumparsita” e ainda consiga tocar (arranhar) a “Comptine D'un
Autre Été: L'après Midi”, do filme da Amelie,
não é a mesma coisa: é a valsa tocada no acordeon que marca a
trilha sonora do filme, assim como um tango sem um instrumento de
palheta livre soa maneta.
Sabia que não era sério essa minha ideia do acordeon. De qualquer
modo, para garantir que ficaria só no platonismo musical, pensei no
trabalho todo que não teria para aprender um novo instrumento.
Recordei da minha tentativa com violão, do mestrado por acabar e da
graduação ainda começando, e reparei que me faltaria ânimo para
encarar um novo desafio desse porte. Mas a gota d'água foi quando me
lembrei que em tango se toca bandoneon e não acordeon. Decidi,
enfim, permanecer fiel ao velho piano, minha primeira namorada –
ao menos no que se refere a instrumentos musicais.
São Paulo, 09 de julho de 2012.
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