quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Pássaros eletroacústicos, músicas esvoaçantes

Aconteceu neste domingo, 29 de julho, no Parque Água Branca, em São Paulo, mais um concerto do pessoal de música experimental do Nova Música Eletroacústica (NME). Foram dois concertos, um de improvisação, feito ao ar livre – com direito a crítica no jornal O Estado de São Paulo [j.mp/OFZDqG] –, outro com sete peças, na sala do Tattersal. Assisti apenas ao segundo. Antes de comentar o concerto (atenção! é comentário e não crítica, como a do João Marcos Coelho), falo um pouco do NME e da minha relação com ele.

O NME é capitaneado pelo músico Tiago de Mello e foi formado em agosto de 2011. Segundo a página do projeto [www.nmelindo.com], até antes do concerto de domingo, haviam sido "realizados 18 concertos entre as cidades de São Paulo e Campinas, e um concerto especial em Rio Claro. Nesses concertos, foram apresentadas 51 obras, de 34 artistas diferentes, entre músicos, videoastas, artistas plásticos e bailarinos. Músicas acusmáticas de diferentes formatos, bem como acompanhadas de vídeo, e até vídeo sem acompanhamento de música: a variabilidade técnica proposto pelo NME é também parte de uma variabilidade estética, onde não se procura privilegiar 'escolas', abrindo espaço para que compositores jovens ou experientes possam trocar".

Conheci o projeto no final de 2011, quando fui a uma apresentação na Unicamp, para prestigiar uma amiga, Julia Telles. Até então, além de alguma coisa de Stockhausen, sabia de música eletroacústica apenas de ouvir falar – pela própria Julia. Para quem gosta de Sonic Youth, Mogwai, Sigur Rós e pós-rock em geral, além da chamada "música contemporânea", não tive nenhum choque que alguém eventualmente limitado ao repertório da Orquestra Sinfônica de Campinas teria, não me perguntei: "isso é música?" Desde então, sempre que posso, vou aos concertos, não mais simplesmente para prestigiar amigos, mas pela música, mesmo.

O concerto de domingo era temático: "NME pássaro – pássaros eletroacústicos, músicas esvoaçantes". Faço meu comentário pensando não em cada obra em particular, mas cada uma das sete em relação ao conjunto – depois, conversando com um dos compositores, Felipe Merker, ele havia comentado que, provavelmente por ser temático, sentira qualquer semelhanças entre peças, talvez um a mais nos agudos. Além disso, me senti avalizado para meu comentário de leigo, quando Felipe também comentou que julga interessante e importante o retorno de quem não é da área – não que os comentários técnicos não sejam importantes, mas vê valor de diálogo nas interpretações mais "poéticas", mais livres das obras. Algo semelhante já me havia dito o ator e diretor Alexandre Caetano, alguns anos atrás.

Uma das coisas que mais chamou a atenção foi que (para mim!), apesar do tema – pássaros –, nenhuma obra caiu no bucolismo, numa apologia da natureza virginal e bela apenas enquanto intacta – um discurso fácil (de produzir e de ser aceito) nestes tempos de ânimos verdejantemente acirrados. O que senti nas obras foi desde uma tentativa de convivência entre cidade e pássaros até o afugentar destes por aquela, chegando a pássaros artificiais em um céu poluído de ondas de eletrostáticas – esse céu poluído para mim bem marcado em “E por isso hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que não o olho mas sinto”, de Adriano Monteiro. Em nenhuma obra, de qualquer forma, vi (ouvi, na verdade) tentativa de propôr uma convivência harmônica: antes, a proposta de uma convivência em tensão – a relação entre homem e natureza como iminentemente política, por mais que pássaros sejam animais desprovidos de capacidade política. Nessa tensão, tecnologia, cidade, natureza, obras de arte “clássicas” se misturam, ora com um aspecto se sobrepondo, ora outro, ora conseguindo alguma sincronia, ora em completo diacronismo: não é por isso que deixam de conviver, que precisam da aniquilação do Outro. Ao fazer esta referência última, penso principalmente nas obras "Do Francisco e do Tiago para Schubert e os passarinhos", de Franciso de Oliveira e Tiago de Mello, e "Chromasia", de Ricardo Lira. Em menor grau – mostrando uma tensão mais violenta entre homem, arte e pássaros, com piano sendo tocado ao fundo, sons de pássaro e de gaiolas sendo fechadas (ou seriam abertas?) com estardalhaço –, "Gamayun", de Henrique Chiurciu.

Em "Pássarosino", de Gabriel Hidalgo, sinos fazem as vezes de pássaros, que sem serem fúnebres, não deixam de passar certa estranheza: onde estão os pássaros diante desses sons tão tipicamente urbanos?

Já "Pequena coleção de esboços", de Felipe Merker Castellani e "Das trevas, sabiá", de Rodolfo Valente, me fizeram lembrar – principalmente o início da primeira obra – algo do futurismo, numa toada mais Sol e aço, de Yukio Mishima, que possui uma verve menos panfletária, explosiva. As gravações de áudio de pássaros, presentes nas obras anteriores, são substituídos por sons eletrônicos que reproduzem o trinar de aves – no início da obra de Merker de maneira que soa bastante positiva, que no meio inverte a curva apologética desses pássaros metálicos, criando uma paisagem mais sinistra, desenvolvida com mais ênfase nessa direção por Rodolfo Valente.

O fato de sair do circuito universitário – algo que vem sendo feito desde o início do ano, ao menos em São Paulo – foi interessante, parece alcançar um público mais diverso, além da questão de passar a tarde num parque e depois assistir a um concerto é mais convidativo que ir a alguma universidade fazer o mesmo – até porque, as universidades brasileiras cada vez mais se reafirmam como grandes colegiões de terceiro grau, reservado só para os VIPs. O tema pássaros para um concerto no Parque também foi muito feliz, e o som externo que adentrava o anfiteatro casava bem com as músicas.

Talvez por estar me mais habituado à música eletroacústica, ou talvez ao estilo de cada compositor, talvez pelo concerto ter tido uma coerência que não teve nos demais, achei ele mais acessível – até mais do que o primeiro a que assisti, em que boa parte das músicas eram acompanhadas de vídeos. Acredito que entre as cerca de cem pessoas que foram à sala do Tattersal, no Parque Água Branca, devia haver aquelas que não conheciam música eletroacústica: tiveram uma ótima iniciação (certamente houve quem se decepcionou, como duas senhoras que entraram achando que seria um show de sertanejo e saíram na segunda música).


São Paulo, 01 de agosto de 2012.

ps: em comemoração ao aniversário do NME, além de concerto temático, o NME pretende também lançar um box com cedê, devedê, textos e outros etecéteras. Se alguém quiser contribuir com o projeto, pode fazê-lo pelo site: catarse.me/pt/projects/838-nmeaniversario.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Uma noite de terça na Augusta


O plano era simples: voltara da musculação morrendo de fome, não estava a fim de preparar e comer um macarrão-gororoba de novo, e decidi comer num fast food japonês, no baixo Augusta. Depois de jantar, se desse vontade (claro que deu) desceria um pouco mais, até aonde houvesse movimento, subiria pela calçada do outro lado, e nem uma hora depois, chegaria em casa devidamente alimentado (ia dizer “bem alimentado”, mas depois de jantar junkie food o máximo que se pode dizer é alimentado). Trocaria de roupa, talvez nem lesse e ficasse como na noite anterior: pensando, ao som de Sigur Rós, o porquê de Yuki ter me atraído mais do que May ou Yumiyoshi, apesar de ser uma garota de treze anos, meio mediúnica e de modos secos – falo de personagens do romance Dance dance dance, do Harumi Murakami. E sem concluir meus pensamentos, dormiria o sono dos justos.

Não foi bem o que aconteceu. No meio do caminho encontrei dois amigos num bar, parei para dar um alô, trocar rapidamente uma idéia – em pé, mesmo – e seguir meu plano original. Começou que esse rapidamente já devia estar durando quase dez minutos, mas eu resistia a sentar – até porque eles estavam na saideira.

Estava em pé conversando, quando uma mulher veio pedir ajuda pra segurar uma outra. Reparamos no bafafá que acontecia do outro lado da porta do bar, nos olhamos – depois um dos meus amigos disse que de início achou que se tratava de um cantada –, enquanto nos olhávamos tentando entender, sinto uma pancada no lado direito, na altura do rim. Na troca de tapas entre duas mulheres, uma delas foi empurrada e me acertou. Não que tenha sido um golpe que me fez contorcer de dor, mas não foi de leve e foi bem colocado. Depois dessa, aceitei sentar um pouco, pra seguir com a conversa, enquanto meus amigos tomavam sua segunda saideira. Para facilitar a crônica, chamemos a um deles de “amigo lindo”, e ao outro de “amigo do Garcia” – razão que ficará clara no correr desta crônica.

Pouco depois desse empurra-empurra, a mulher que me acertara o rim – que devia ser amiga dos donos – entra no bar e volta com um controle remoto que joga no meio da rua: “venga segurar-me”, desafia em portunhol. O amigo lindo ainda mantem o bom humor, pede pro dono: “aumenta o som da tevê, por favor!” Um tempo depois a mulher entra no bar de novo e quebra algo dentro. “O clima não está bom, vamos tomar a saideira e vazar”, sugere o amigo do Garcia. A mulher segue causando, e a dona decide chamar a polícia. Meus amigos decidem tomar uma saideira mais, pra ver como vai acabar a história. Acaba que a polícia chega muito tempo depois: já havia dado tempo pra pedir a quarta saideira e a mulher já havia sumido – e olha que ela ficou um tempo rondando por lá. Enquanto isso conversávamos quase-amenidades: Casuística (claro), Deleuze, estruturalismo, Debord, fim da PM, Safatle... Um morador de rua passa correndo: vacilou, a polícia já tem quem pegar: preto pobre e fugindo: é culpado. Saem atrás dele, e o alcançam uma quadra acima para uma geral.

Uma garota na mesa ao lado, consideravelmente alcoolizada, resolve puxar papo. Primeiro pergunta onde moramos – estranho a pergunta, imagino que talvez quisesse saber de onde viemos, já que ainda carrego restos do meu sotaque leitE quentE. Se irrita que não entendi a pergunta – logo eu que sou inteligente e tal, como ela vai dizer várias vezes na noite. Pergunta se alguém tem um baseado – mesa de quadrados, ninguém. Cisma que somos artistas. Canta uma música que não me é desconhecida, que não consigo reconhecer (nem lembrar agora). Convidamos para sentar na mesma mesa que nós, ela se recusa e pede desculpa por se intrometer. Voltamos a nossas quase-amenidades. Não tarda muito e ela outra vez puxa conversa – sempre com uma música pra ilustrar qualquer coisa, assim como eu costumo ter uma tirinha. Demora até ela aceitar sentar na mesma mesa. A ébria conversa que se segue é papo de doido, sempre pontuada por alguma música: ela faz perguntas bizarras – que evito reproduzir, vai que minha mãe ou algum menor de idade leia –, e quando perguntamos algo de boa – como porque ela achou que éramos artistas –, se sente ofendida. Está bêbada, eu sei, não precisava ela repetir seguidamente. Meus amigos também estão um tanto altos. A conversa segue non-sense, nossa nova amiga começa frases e não termina, o amigo do Garcia ora toca air guitar e air drums para acompanhá-la, ora manda patadas – como, por exemplo, recriminá-la por seu air cavaquinho estar com o braço muito grande –, o amigo lindo decide tentar “ganhar a noite” – eu fico meio de canto, rindo, de vez em quando lembram que eu também estou na mesa. Não sei em que saideira estão, acaba sendo a última porque o bar está fechando – são quase três da manhã –, e resolvo pedir um copo, pra ver se um pouco de álcool me permitiria acompanhar a conversa. Não ajuda muito.

O bar fecha, decidimos descer a Augusta – depois de nossa nova amiga abraçar e beijar os donos do bar. Na indecisão do que fazer – depois de pararmos para que nossa nova amiga abraçasse e desse um beijo na bochecha de um funcionário que mexia na rede de esgoto –, o amigo do Garcia falou que iria consultar seu “guia espiritual”, o tal Garcia. Fomos atrás dele. Garcia é o porteiro de um inferninho. Enquanto o Garcia, a pedido do aqui chamado amigo do Garcia, explica como funciona a casa, eu, o amigo lindo e a nossa nova amiga estamos nos distraindo com outras coisas. Garcia se ofende com nosso desdém, meu amigo se irrita (mais), e seguimos descendo.

Paramos num bar. Nossa nova amiga liga para o pai, que desliga na sua cara – esquecia: é uma moça bonita, aparenta vinte e poucos mas diz ter trinta e cinco. O amigo do Garcia até segue tentando alguma conversa minimamente séria com a nossa nova amiga – como qual sua ocupação antes de estar desempregada –, mas não há espaço pra isso e ele apenas se irrita mais. O papo segue maluco como desde o início, e pontuado com músicas, como desde o início – apenas o amigo do Garcia que a acompanhava, irritado, deixou de fazer o dueto. “Quer saber? Foda-se, estou bêbada”, ela repete outras n vezes. É uma bêbada que oscila entre patadas e beijos. O amigo lindo fica na tentativa de algo com ela. O amigo do Garcia, depois de ganhar dela muitos beijos na bochecha, desiste e parte pra outra. Eu já antevejo ela ficando com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história. Um copo cheio de cerveja cai na minha calça – ao menos não pediram pra eu pagar a cerveja que eu usufruí com minha roupa. Reparo que do lado de fora do bar um careca não pára de me observar, finjo que não é comigo. Um outro maluco alto chega e fica amigo também na nova amiga, que se apresenta como sobrinha do Angeli. Ela exclama que finalmente achou alguém legal na noite – meus amigos ficam com cara de bunda, eu rio, até pareço ser o mais bêbado do grupo, justo eu, o único que lembra o nome de todos (mais: que lembra o nome de alguém). Para comemorar sua chegada, canta a mesma música que cantou logo que puxou papo conosco – e que havia cantado antes quando pediu o cigarro pra um rapaz na frente do inferninho do Garcia, a quem também havia abraçado e dado um beijo na bochecha. Ele se afasta, acho que vai ao banheiro, e nisso o amigo lindo volta a tentar algo – ainda mais depois d'ela ter dito ao cara legal que ele era lindo. O amigo do Garcia consegue um beijo da moça com quem conversava, mas depois me confessa: “putz, me confundi, não era d'ela que eu estava a fim”. Coisas de quem já está consideravelmente alto. Eu só observo e dou risada – já havia dado umas duas ou três vaciladas e resolvo que não preciso acabar com minha auto-estima toda na mesma noite. Também penso nesta crônica (que achava que ficaria bem mais interessante). Na rua, um homem noiado quebra a porta do estacionamento e chama todo mundo pra briga. A polícia aparece meia hora depois. Já de saída, terminando a conversa com a nossa nova amiga – se é que havia alguma conversa pra terminar, se é que havia alguma conversa – um homem um pouco bêbado vem fazer propaganda de um inferninho que há logo acima. O bar começa a fechar. O amigo lindo – que pouco antes tinha ido me perguntar o nome da nossa nova amiga – consegue uns beijos dela, o amigo do Garcia tenta descolar o quarto do Gyorgy – que não estava dormindo em casa – para o casal. Sem cerimônias, corto o barato: “esquece, nem é minha cama”. O cara legal já está em outra roda, tentando agitar gente para acompanhá-lo a outro bar.

Cinco da manhã. Repasso a noite: janta rápida, Delueze, Wander Wildner, PM, cerveja Duff, propaganda de inferninhos, conversas non sense: para um neófito na noite paulistana, até então acostumado com festinhas e barzinhos universitários bundas, é interessante. Concluo que meu plano original falhou totalmente – mas me diverti. A la Murakami – para compensar que não fiquei matutando no livro –, até penso que pode haver alguma ligação entre passar a encontrar outras pessoas mais de uma vez na Augusta e não ter mais encontrado Camila, a moreninha da balada, depois disso. Decido que é hora de voltar pra casa e dormir. Combino com meus amigos uma próxima trombada pela Augusta – sem golpe nos rins, de preferência.


São Paulo, 25 de julho de 2012.