O plano era simples: voltara da musculação morrendo de fome, não
estava a fim de preparar e comer um macarrão-gororoba de novo, e
decidi comer num fast food japonês, no baixo Augusta. Depois
de jantar, se desse vontade (claro que deu) desceria um pouco mais,
até aonde houvesse movimento, subiria pela calçada do outro lado, e
nem uma hora depois, chegaria em casa devidamente alimentado (ia
dizer “bem alimentado”, mas depois de jantar junkie food o
máximo que se pode dizer é alimentado). Trocaria de roupa, talvez
nem lesse e ficasse como na noite anterior: pensando, ao som de Sigur
Rós, o porquê de Yuki ter me atraído mais do que May ou Yumiyoshi,
apesar de ser uma garota de treze anos, meio mediúnica e de modos
secos – falo de personagens do romance Dance dance dance,
do Harumi Murakami. E sem concluir meus pensamentos, dormiria o sono
dos justos.
Não foi bem o que aconteceu. No meio do caminho encontrei dois
amigos num bar, parei para dar um alô, trocar rapidamente uma idéia
– em pé, mesmo – e seguir meu plano original. Começou que esse
rapidamente já devia estar durando quase dez minutos, mas eu
resistia a sentar – até porque eles estavam na saideira.
Estava em pé conversando, quando uma mulher veio pedir ajuda pra
segurar uma outra. Reparamos no bafafá que acontecia do outro lado
da porta do bar, nos olhamos – depois um dos meus amigos disse que
de início achou que se tratava de um cantada –, enquanto nos
olhávamos tentando entender, sinto uma pancada no lado direito, na
altura do rim. Na troca de tapas entre duas mulheres, uma delas foi
empurrada e me acertou. Não que tenha sido um golpe que me fez
contorcer de dor, mas não foi de leve e foi bem colocado. Depois
dessa, aceitei sentar um pouco, pra seguir com a conversa, enquanto
meus amigos tomavam sua segunda saideira. Para facilitar a crônica,
chamemos a um deles de “amigo lindo”, e ao outro de “amigo do
Garcia” – razão que ficará clara no correr desta crônica.
Pouco depois desse empurra-empurra, a mulher que me acertara o rim –
que devia ser amiga dos donos – entra no bar e volta com um
controle remoto que joga no meio da rua: “venga segurar-me”,
desafia em portunhol. O amigo lindo ainda mantem o bom humor, pede
pro dono: “aumenta o som da tevê, por favor!” Um tempo depois a
mulher entra no bar de novo e quebra algo dentro. “O clima não
está bom, vamos tomar a saideira e vazar”, sugere o amigo do
Garcia. A mulher segue causando, e a dona decide chamar a polícia.
Meus amigos decidem tomar uma saideira mais, pra ver como vai acabar
a história. Acaba que a polícia chega muito tempo depois: já havia
dado tempo pra pedir a quarta saideira e a mulher já havia sumido –
e olha que ela ficou um tempo rondando por lá. Enquanto isso
conversávamos quase-amenidades: Casuística (claro), Deleuze,
estruturalismo, Debord, fim da PM, Safatle... Um morador de rua passa
correndo: vacilou, a polícia já tem quem pegar: preto pobre e
fugindo: é culpado. Saem atrás dele, e o alcançam uma quadra acima
para uma geral.
Uma garota na mesa ao lado, consideravelmente alcoolizada, resolve
puxar papo. Primeiro pergunta onde moramos – estranho a pergunta,
imagino que talvez quisesse saber de onde viemos, já que ainda
carrego restos do meu sotaque leitE quentE. Se irrita que não
entendi a pergunta – logo eu que sou inteligente e tal, como ela
vai dizer várias vezes na noite. Pergunta se alguém tem um baseado – mesa de
quadrados, ninguém. Cisma que somos artistas. Canta uma música que
não me é desconhecida, que não consigo reconhecer (nem lembrar
agora). Convidamos para sentar na mesma mesa que nós, ela se recusa
e pede desculpa por se intrometer. Voltamos a nossas
quase-amenidades. Não tarda muito e ela outra vez puxa conversa – sempre com uma
música pra ilustrar qualquer coisa, assim como eu costumo ter uma
tirinha. Demora até ela aceitar sentar na mesma mesa. A ébria
conversa que se segue é papo de doido, sempre pontuada por alguma
música: ela faz perguntas bizarras – que evito reproduzir, vai que
minha mãe ou algum menor de idade leia –, e quando perguntamos
algo de boa – como porque ela achou que éramos artistas –, se
sente ofendida. Está bêbada, eu sei, não precisava ela repetir
seguidamente. Meus amigos também estão um tanto altos. A conversa
segue non-sense, nossa nova amiga começa frases e não termina, o
amigo do Garcia ora toca air guitar e
air drums para
acompanhá-la, ora manda patadas – como, por exemplo,
recriminá-la por seu air cavaquinho
estar com o braço muito grande –, o amigo lindo decide
tentar “ganhar a noite” – eu fico meio de canto, rindo, de vez
em quando lembram que eu também estou na mesa. Não sei em que
saideira estão, acaba sendo a última porque o bar está fechando –
são quase três da manhã –, e resolvo pedir um copo, pra ver se
um pouco de álcool me permitiria acompanhar a conversa. Não ajuda
muito.
O bar fecha, decidimos descer a Augusta – depois de nossa nova
amiga abraçar e beijar os donos do bar. Na indecisão do que fazer –
depois de pararmos para que nossa nova amiga abraçasse e desse um
beijo na bochecha de um funcionário que mexia na rede de esgoto –,
o amigo do Garcia falou que iria consultar seu “guia espiritual”,
o tal Garcia. Fomos atrás dele. Garcia é o porteiro de um
inferninho. Enquanto o Garcia, a pedido do aqui chamado amigo do
Garcia, explica como funciona a casa, eu, o amigo lindo e a nossa
nova amiga estamos nos distraindo com outras coisas. Garcia se ofende
com nosso desdém, meu amigo se irrita (mais), e seguimos descendo.
Paramos num bar. Nossa nova amiga liga para o pai, que desliga na sua
cara – esquecia: é uma moça bonita, aparenta vinte e poucos mas diz ter trinta e
cinco. O amigo do Garcia até segue tentando alguma conversa
minimamente séria com a nossa nova amiga – como qual sua ocupação
antes de estar desempregada –, mas não há espaço pra isso e ele
apenas se irrita mais. O papo segue maluco como desde o início, e
pontuado com músicas, como desde o início – apenas o amigo do
Garcia que a acompanhava, irritado, deixou de fazer o dueto. “Quer
saber? Foda-se, estou bêbada”, ela repete outras n vezes. É uma
bêbada que oscila entre patadas e beijos. O amigo lindo fica na
tentativa de algo com ela. O amigo do Garcia, depois de ganhar dela muitos
beijos na bochecha, desiste e parte pra outra. Eu já antevejo ela ficando com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história. Um copo cheio de
cerveja cai na minha calça – ao menos não pediram pra eu pagar a
cerveja que eu usufruí com minha roupa. Reparo que do lado de fora
do bar um careca não pára de me observar, finjo que não é comigo.
Um outro maluco alto chega e fica amigo também na nova amiga, que se
apresenta como sobrinha do Angeli. Ela exclama que finalmente achou
alguém legal na noite – meus amigos ficam com cara de bunda, eu
rio, até pareço ser o mais bêbado do grupo, justo eu, o único que
lembra o nome de todos (mais: que lembra o nome de alguém). Para comemorar sua chegada, canta a mesma
música que cantou logo que puxou papo conosco – e que havia
cantado antes quando pediu o cigarro pra um rapaz na frente do
inferninho do Garcia, a quem também havia abraçado e dado um beijo
na bochecha. Ele se afasta, acho que vai ao banheiro, e nisso o amigo
lindo volta a tentar algo – ainda mais depois d'ela ter dito ao cara
legal que ele era lindo. O amigo do Garcia consegue um beijo da moça
com quem conversava, mas depois me confessa: “putz, me confundi,
não era d'ela que eu estava a fim”. Coisas de quem já está
consideravelmente alto. Eu só observo e dou risada – já havia
dado umas duas ou três vaciladas e resolvo que não preciso acabar
com minha auto-estima toda na mesma noite. Também penso nesta
crônica (que achava que ficaria bem mais interessante). Na rua, um
homem noiado quebra a porta do estacionamento e chama todo mundo pra
briga. A polícia aparece meia hora depois. Já de saída, terminando
a conversa com a nossa nova amiga – se é que havia alguma conversa
pra terminar, se é que havia alguma conversa – um homem um pouco
bêbado vem fazer propaganda de um inferninho que há logo acima. O
bar começa a fechar. O amigo lindo – que pouco antes tinha ido me perguntar o nome da nossa nova amiga – consegue uns beijos dela, o amigo do Garcia tenta descolar o quarto do Gyorgy – que
não estava dormindo em casa – para o casal. Sem cerimônias, corto
o barato: “esquece, nem é minha cama”. O cara legal já está em
outra roda, tentando agitar gente para acompanhá-lo a outro bar.
Cinco da manhã. Repasso a noite: janta rápida, Delueze,
Wander Wildner, PM, cerveja Duff, propaganda de inferninhos, conversas non sense: para um neófito na
noite paulistana, até então acostumado com festinhas e barzinhos
universitários bundas, é interessante. Concluo que meu plano
original falhou totalmente – mas me diverti. A la Murakami – para compensar que não fiquei matutando no livro –, até penso que pode haver alguma ligação entre passar a encontrar outras pessoas mais de uma vez na Augusta e não ter mais encontrado Camila, a moreninha da balada, depois disso. Decido que é hora de
voltar pra casa e dormir. Combino com meus amigos uma próxima
trombada pela Augusta – sem golpe nos rins, de preferência.
São Paulo, 25 de julho de 2012.
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