domingo, 26 de maio de 2013

A sombria cor-vazio do branco.

Foto de Luis Felipe Labaki [j.mp/10Ykne6]
Subindo as escadas, primeira porta à esquerda, entra-se em um grande salão, circular no extremo oposto. À direita da entrada, uma sala anexa, retangular, sem separação. Em todo ambiente, o chão é de cimento (reparo algumas manchas coloridas, ou ao menos que rompem com o monocórdio cinza), o teto é preto, as paredes, brancas. Não há janelas. As luzes do grande salão estão apagadas – apenas um abajur sobre um mesa, mais ou menos no centro. As da sala contígua estão acesas: luzes brancas em uma sala branca – e vazia. No salão há cadeiras, dispostas aleatoriamente quanto ao lugar e direção – mas tendendo para o centro, para o abajur. Há pessoas nesse salão, muitas – eu chutaria perto de cem. Estão em silêncio, o olhar perdido, sem saber para onde mirar. A maioria está sentada nas cadeiras. Há pessoas sentadas no chão – algumas deitadas. Outras poucas caminham – em geral logo páram e se sentam (ou deitam) novamente. Há músicas que ocupam todo o espaço – feitas para isso. É o concerto NME13, de música eletroacústica, em uma das salas de exposição do Instituto Tomie Ohtake. Um rapaz se levanta, transita pelo salão, adentra a sala adjacente, até então vazia. Ele vai até próximo da parede oposta, se senta defronte a ela, de costas para o salão. De onde o vejo, ele perde a sombra. A sala é branca, a luz é branca, a música que é executada no instante, “Cor”, de Clayton Mamedes, tem um clima sombrio. No salão, na penumbra, a música a transitar pelas caixas, preenchendo de diversas maneiras o espaço, o olhar faz as vezes geralmente reservada aos braços: o que fazer com eles? Não há instrumentista a executar a peça, não há vídeo a ilustrá-la, não há foco – a não ser o estático o abajur ao centro, a iluminar timidamente o computador e a mesa de som. Olhar para baixo, fechar os olhos? (São alguns dos momentos em que vi manchas coloridas). Pode-se flanar o olhar por entre os colegas de público, até se deparar com outra pessoa a fazer o mesmo e baixar os olhos, um pouco constrangido. O rapaz resolveu esse problema: pode olhar para frente, não se deparará com ninguém, com nada além do branco e da música sombria nomeada cor. Mas o que ele vê diante do branco? Lembro de uma tira do André Dahmer: um homem defronte um grande aparelho de tevê, comentando que algo está deixando sua alma pequena. Eu não conseguiria ter esse tipo de reflexão diante de um televisor.
Mas envolto por três paredes brancas, sentiria minha alma de que tamanho? O branco, tão vinculado à idéia de paz, de pureza cristã. O quanto não fujo do branco? Paz que pode ser a ausência de vida – a vida sempre tão conflitiva, não necessariamente uma guerra. Pureza que pode significar a falta de marcas, de sombras, da exata noção da profundidade, o raso. O vazio. Lembro da música do Marilyn Manson: um grande mundo branco, que suga nossas cores. Também poderia ser o inverso: um grande mundo colorido que mancha nossa brancura. Ou então apenas um mundo que não respeita nossas cores. As cores, elas vêm para preencher esse vazio ou disfarçá-lo? De início penso nas cores da publicidade, das cores que vazam brilhantes da tevê, e me parecem enganadoras. Mas e as cores sombrias da obra que escuto aquele momento? Por que só estas seriam as verdadeiras? A pop-art desbotada de Arthur Bispo do Rosário é colorida. A primeira obra do concerto, “Impulso e impacto n° 3”, de Caio Kenji, é colorida – colorida e sinestésica, a ponto de ver traços coloridos a la Malevich sendo desenhados pelo som no espaço escuro. Música para exposição. Cores, e não preto no branco. A publicidade engana e encobre? Até que ponto? E os pontos coloridos que resistem em meio ao cinza? E a flor de Drummond a desabrochar em meio à náusea? Mais tarde, durante a última peça da noite, “Pato Rei I”, de Tiago de Mello, eu andaria sozinho por aquele espaço branco. Algum pensamento sobre minha relação com o Outro brilharia e eu sentiria leve angústia, que me faria retornar logo ao breu. Estar diante do branco, revela ou apaga?

São Paulo, 26 de maio de 2013.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Sopa de feijão

No céu, a bela lua minguante cercada por nuvens que, como um véu, insinuam cobri-la sem terem capacidade para fazê-lo de fato. No meio do meu caminho, um Sesc. Freqüento eventualmente as atividades culturais do circuito Sesc – não que não sejam boas, me desagrada o seu clima excessivamente asséptico: empregados apagados como bons serviçais, ausência de pobres, pouco espaço para inesperados. Mas a comida é boa, mais saudável e mais barata que um qualquer-coisa no bar da esquina – e eu estava com fome. Opto por sopa – feijão com macarrão. Não está frio para sopa; não estou doente para sopa, porém gosto de sopa de feijão. Sento em uma mesa, a sopa demora – não esperava por essa espera toda, e ao invés de seguir com a leitura de Correio do tempo, do Benedetti, fico a observar as pessoas do local, em silêncio, porque não sou do tipo que consegue puxar papo. É um público um pouco diferente daquele que me deparo nas apresentações culturais: há mais idosos e famílias com filhos, menos jovens descolados. Na minha frente estão sentadas duas garotas – bonitinhas –, uma oriental e uma negra. Tento adivinhar suas idades, não consigo: vinte, vinte e cinco, trinta, trinta e pouco? São jovens, porém não adolescentes. Branquelo, creio que tenha me habituado a analisar os sulcos da idade com meu reflexo no espelho, com a imagem de meus pais – daí que orientais e negros acabem sempre me parecendo mais jovens. As duas moças conversam animadas, mas quando uma sai para ir ao banheiro, a outro logo confere o celular, como se estivesse a espera da mensagem salvadora. A oriental tem uma tatuagem no braço, a parte que dá para ver deixa a impressão de ser parecida com os primeiros rabiscos em camisetas que fiz. Uma senhora começa a gritar com um senhor, parece sério de início, logo noto que não é o caso, está indignada por ter chegado depois: “como você já está aqui, se eu saí antes”. Finalmente o sinal chama a minha senha. A sopa é de feijão carioca, para minha surpresa – quando faço, ou minha mãe faz, sempre é de feijão preto. Sem pré-julgar, tomo a primeira colherada. Nessa hora, sinto o gosto da noite na casa de meu avô: a toalha xadrez vermelha, o teto azul, as paredes com azulejos laranjas sustentadas pela folhinha do sagrado coração de jesus e por uma espécie de calendário permanente da Bayer, a caneca marrom para pôr a dentadura depois da sopa – a janta era invariavelmente sopa –, o tic-tac pesado do relógio, tudo isso iluminado por uma fraca luz amarela. Jogo um pedaço de torrada na sopa, ver como fica, e todo esse sabor de passado se quebra. A fila no caixa, o aviso sonoro da senha do pedidos, as pessoas que conversam ao meu redor: volto ao presente. Longe de São Paulo, a casa de meu avô deve estar agora povoada tão-somente de memórias – dentre elas, nossa risada cúmplice e sem maior motivo que uma troca de olhares em silêncio, na hora da sopa.

São Paulo, 15 de maio de 2013.