terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sensibilidades extras

É algo que me admira, e tento entender o que faz com que uma pessoa tenha uma sensibilidade extra, seja capaz de captar como que intuitivamente certas coisas que as demais levam tempo e/ou estudos para formular. Tempos atrás uma amiga fez com que eu recordasse que eu tinha um pouco dessa percepção, quando pré-adolescente (Mafalda já se questionava o porquê dos adultos insistirem em reconhecimento tardio). Meus amigos sempre falavam de carro, de qual iriam ganhar quando fizessem dezoito anos ou entrassem na faculdade. Lembro de um deles, com dez anos, me contando (estávamos sentados no meio-fio, num fim de tarde alaranjado) que ganharia um Kadett quando passasse em medicina. De minha parte, preferia uma moto. Não que preferisse moto a carro, pelo contrário, porém meu raciocínio era: com o dinheiro para comprar um carro popular dá para comprar uma moto mais simples da BMW, ainda assim uma BMW. Muitos anos depois fui entender o que eu dizia ali: carro não era para transporte (eu morava em Pato Branco, quase todo lugar que eu precisava ir, poderia ir "de a pé"), e sim para valorização da minha imagem: assim sendo, uma moto BMW me tornaria alguém melhor do que um Gol, um Uno, um Kadett. Enfim, minha amiga. Tempos atrás me contou que iria comprar um celular de mais de mil reais, porque assim ganharia respeito das demais pessoas. Um raciocínio tosco, sem dúvida, mas não por achar que seu valor como pessoa estaria num celular caro, e sim por dizê-lo abertamente, sem nenhuma desculpa cretina que inventamos para justificar uma compra que só se justifica pelo fato de não nos darmos valor e aceitarmos o discurso publicitário (aquele que diz que não valemos nada se não tivermos e ostentarmos). Não se troca de carro, celular, roupas, computador todo ano por causa de controle do rádio no volante, meio mega pixel a mais de resolução, um giga de memória ram, a gola em v. Troca-se porque aceitamos o discurso de que só existimos e somos alguém na medida em que consumimos, e tanto mais alguém seremos quanto maior o valor do penduricalho inútil que compramos, justificado por justificativas hipócritas e socialmente aceitas. Este caso me fez lembrar de minha primeira namorada, uma das pessoas mais sagazes com quem já tive contato. Sagaz e inteligente, sempre invejei sua percepção - desperdiçada no que eu entendia como um auto-boicote cruel. Certa feita seus pais a puseram para ler três revistas semanais, para ela "se informar" (não falariam em ficar "menos alienada", porque isso é discurso de esquerdista). Ela tinha dezoito anos na época, e quando começou a falar das impressões das reportagens e do que elas tratavam, fiquei embasbacado: sabia que nunca tinha lido Adorno ou qualquer outro teórico da indústria cultural, mas foi capaz de sintetizar muito do que esses figurões diziam com três revistas! Ah se eu tivesse metade da sua capacidade... Parece que esse tipo não se anima com a universidade e a pesquisa, e se cursa um curso superior é só à medida que necessitam para conseguir determinado emprego. E por falar em capacidades e ex-namoradas (faço aqui justiça às demais "RAS" que, apesar do gosto duvidoso, tinham todas inteligências e beleza acima da média, muitas que se auto-boicotavam também), não sei se é só comigo, mas me impressiona como percebo logo no primeiro encontro se o rolo é sério ou não - sempre com acerto (o que pode significar relacionamentos breves, ainda assim profundos). Deve ser algo da tal "postura corporal racional-pré-racional" que digo querer estudar num eventual doutorado. Para concluir este texto, que foi me abrindo recordações e reflexões inesperadas, volto à minha amiga e seu celular de respeito: menos de um mês depois foi assaltada e levaram justo seu celular; foi obrigada a voltar ao velho aparelho e tentar ganhar respeito um pouco por o que é.   

São Paulo, 21 de janeiro de 2014.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Rachel Sheherazade: a nova geração de falsos polemistas.

O título na internet me chamou a atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai. 

A reportagem que li é de Mônica Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos", segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres, quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião, pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões. É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack, Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que provavelmente será seguido por muitos.

Outro ponto do perfil que me chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que aceita desde a identificação de um partido com uma linha política até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances? Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!

A pretensa mudança de lado, na verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias, dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando. 

Sheherazade tem quarenta anos, creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação, nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.

Pato Branco, 12 de janeiro de 2014