sábado, 25 de janeiro de 2014

São Paulo, 460: a capital do choque.

Tem-se que os agricultores de antigamente, ou os pescadores, sabiam ler os sinais da natureza e eram capazes de dizer se iria chover ou fazer sol, se viria seca ou enchente, frio ou calor. Me sinto um pouco como esses antigos, mas a natureza que sei ler é a da urbe, a social, a de São Paulo. Feriado na cidade: aniversário de quatrocentos e sessenta anos da principal cidade do país, ano de copa do mundo e eleições, manifestações estavam programadas. Não fui atrás de saber sobre elas, fiquei em casa brigando contra a preguiça causada pelo mormaço. Que só foi superada quando minha amiga chegou, no fim da tarde, e decidimos sair um pouco, aproveitar que a temperatura serenava conforme o sol se escondia para dar um rolê pelo centro e comer uma açaí na avenida São João. Durante a tarde eu ouvira helicópteros: como não partiam dos hospitais ao redor do meu apartamento, desconfiei que havia protestos, mas a 23 de maio seguia seu fluxo normal. Teria eu errado, e aqueles helicópteros significavam outra coisa? Na Sé, grandes grupos de policiais indicavam que eu estava certo. Chegamos no viaduto do Chá no mesmo momento que chegavam os caminhões da tropa de choque da polícia militar. Enquanto eles se posicionavam, um morador de rua dormia na calçada, como se nada estivesse acontecendo. Minha amiga ficou, eu fui ver como estava o protesto, que seguia pela Xavier de Toledo, escoltado pelos militares, e o choque na retaguarda. Duas motos da polícia militar passam em alta velocidade, os manifestantes são obrigados a dar passagem; alguns deles tentam derrubar os policiais - é claramente o que os mantedores da ordem querem, para justificar o avanço da tropa de choque e o início do que datenas e bonners chamarão de baderna -, não conseguem. Volto para encontrar minha amiga e seguirmos nosso plano original - me recordo que na "quinta terror" de junho eu havia saído após o início da pancadaria da polícia para encontrar minha amiga Misson e irmos tomar um mate ao lado da casa de mate que fui hoje. No Theatro Municipal, em algumas horas haverá apresentação do Balé da Cidade de São Paulo. Na São João, a "feirinha do rolo" junta várias pessoas, enquanto em frente a lanchonete rola uma baladinha. A segunda parte do nosso plano era voltar pela Augusta - a qual imaginamos ter algo da continuação dos protestos. A praça da República está cercada por policiais - impressiona. No palco montado para a comemoração do aniversário da cidade, um show de samba-rock, o clima é muito ameno. No caminho, os cinemões da República, vendedores ambulantes, transeuntes passando como se nada excepcional estivesse acontecendo. Pouco antes da Consolação, outra balada - são oito horas da noite. Na entrada do Minhocão, um fusca queimado atrapalha o trânsito. Antes, uma agência bancária quebrada e pixações contra a polícia. O protesto já passou por ali. Na Augusta, alguns poucos rastros dos protestos - que ou foram amadores ou, mais provável, não tiveram muita chance contra o avanço dos militares. A Augusta está interditada pelo choque: parte dos manifestantes, encurralados pelos dois lados, se refugiou dentro de um hotel. Me estico para ver: parece cena de terrorismo, soldados todos paramentados, com capacetes e armas em punho, fazendo revista em um hotel. Fico a imaginar se, durante alguns dos grandes eventos que o Brasil sediará, acontecer algo nessa linha - atentado sério, e não jovens revoltados que usam paus e pedras e vinagre - o tamanho despreparo de nossas forças ditas de segurança. Meus olhos ardem: há restos de bombas de efeito moral no ar. Damos a volta na quadra. Na Frei Caneca, estamos no meio de um grupo que explica que teve que arrebentar a grade de um estacionamento para que as pessoas pudessem fugir da polícia militar, que os encurralava. Várias viaturas passam nessa hora. Não olha, não olha, diz um deles, e então reparo que estamos no meio de um grupo de jovens todos de preto, com mochilas e demais equipamentos necessários para ação direta. Minha amiga fica temerosa, eu acho graça - faltavam achar que meu visual praia poderia ser disfarce black bloc. A Augusta segue interditada, mas a fila para a balada já se forma, ao lado da fila de policiais que desviam o trânsito e, em certo momento, um comboio de "night bikers". A primeira quadra após o bloqueio, direção Paulista, ainda há movimentação de todos em função da presença maciça de policiais, na quadra seguinte, a rua ferve como todo sábado à noite: adolescentes descem, os bares cheios, os maître de inferninho convidando pra tomar cerveja com a mulherada, mendigos catam latinhas, pedem moedas, dormem. A mesma coisa na Paulista, com seus adolescentes, skatistas, artistas de ruas, mendigos, famílias estátuas vivas. Protesto? São Paulo é a cidade do choque.

São Paulo, 25 de janeiro de 2014.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os novos vizinhos

Ao voltar das férias, descubro que tenho vizinhos novos, um casal e seu pimpolho. Ainda não vi o garoto, mas já percebi que é um piá bastante ativo, que gosta de gritar, cantar, correr pelo corredor, batucar no hidrante, tamborilar nos vidros. Se os pais ajudarem, sorte dele ter o Centro Cultural São Paulo e aquele simpático gramado no teto logo em frente de casa - pode não ter parquinho, mas dá para pular bastante. O que estranhei mesmo foi a forma de educar o filho, baseado na conversa, é certo, porém um pouco rude, me pareceu. Eu estava em casa, lendo, o moleque havia entrado há pouco nos trinta e cinco metros quadrados que lhe servem de lar. Algum tempo depois escuto o pai esbravejando: "é pra fazer aqui! Aqui! Ouviu? É pra fazer aqui, e não lá! Precisa que eu repita?", e repetia indignado que era pra fazer aqui e não lá, uma, duas, três vezes, aqui, não lá, ouviu? Pela indignação, imaginei o que o garoto não devia ter feito: algum desenho com ácido úrico na parede da sala, como eu na minha infância fazia no muro de casa - lembro que me divertia bastante com isso, era mais divertido que procurar formas em nuvens, e às vezes saía uns desenhos tão bons, tão parecidos com sombra de pessoas, por exemplo, que eu lamentava que logo viria o sol para apagá-los (na época não havia máquina digital para registrar minha arte efêmera, e meu pai não me emprestaria sua semi-profissional para isso. Quem sabe hoje eu não fosse um Vik Muniz, enfim). O garoto não voltou a correr pelo corredor pelo resto da tarde - imaginei que estivesse de castigo. Hoje encontrei o vizinho no elevador (o pai). Não animado em conversar sobre o tempo (diga-se de passagem, depois de Jaraguá do Sul e Pomerode, o calor de São Paulo é até tranqüilo) e querendo se mostrar um vizinho preocupado em não perturbar os outros, me perguntou se eu passava o dia em casa, se não estava incomodado com eventuais barulhos, e explicou: "a cachorra é novinha, e não sei se ela não fica latindo quando não tem ninguém em casa". Respondi que nunca havia ouvido qualquer barulho que indicasse um quadrúpede no apatamento ao lado. Ele se disse aliviado, e ressaltou que se ela viesse a incomodar, eu podia falar. Um cachorro? Fiquei mais aliviado em saber (desconfiar, na verdade) que aquele método de educação não era pro filho. Mas fiquei sem graça em dizer que o dono, sim, estava incomodando um pouco com seus urros irados de que era pra fazer aqui, aqui, e não lá - e repetir isso trocentas vezes.   

São Paulo, 22 de janeiro de 2014