Tem-se que os agricultores de
antigamente, ou os pescadores, sabiam ler os sinais da natureza e
eram capazes de dizer se iria chover ou fazer sol, se viria seca ou
enchente, frio ou calor. Me sinto um pouco como esses antigos, mas a
natureza que sei ler é a da urbe, a social, a de São Paulo. Feriado
na cidade: aniversário de quatrocentos e sessenta anos da principal
cidade do país, ano de copa do mundo e eleições, manifestações
estavam programadas. Não fui atrás de saber sobre elas, fiquei em
casa brigando contra a preguiça causada pelo mormaço. Que só foi
superada quando minha amiga chegou, no fim da tarde, e decidimos sair
um pouco, aproveitar que a temperatura serenava conforme o sol se
escondia para dar um rolê pelo centro e comer uma açaí na avenida
São João. Durante a tarde eu ouvira helicópteros: como não
partiam dos hospitais ao redor do meu apartamento, desconfiei que
havia protestos, mas a 23 de maio seguia seu fluxo normal. Teria eu
errado, e aqueles helicópteros significavam outra coisa? Na Sé,
grandes grupos de policiais indicavam que eu estava certo. Chegamos
no viaduto do Chá no mesmo momento que chegavam os caminhões da
tropa de choque da polícia militar. Enquanto eles se posicionavam,
um morador de rua dormia na calçada, como se nada estivesse
acontecendo. Minha amiga ficou, eu fui ver como estava o protesto,
que seguia pela Xavier de Toledo, escoltado pelos militares, e o
choque na retaguarda. Duas motos da polícia militar passam em alta
velocidade, os manifestantes são obrigados a dar passagem; alguns
deles tentam derrubar os policiais - é claramente o que os
mantedores da ordem querem, para justificar o avanço da tropa de
choque e o início do que datenas e bonners chamarão de baderna -,
não conseguem. Volto para encontrar minha amiga e seguirmos nosso
plano original - me recordo que na "quinta terror" de junho
eu havia saído após o início da pancadaria da polícia para
encontrar minha amiga Misson e irmos tomar um mate ao lado da casa de
mate que fui hoje. No Theatro Municipal, em algumas horas haverá
apresentação do Balé da Cidade de São Paulo. Na São João, a
"feirinha do rolo" junta várias pessoas, enquanto em
frente a lanchonete rola uma baladinha. A segunda parte do nosso
plano era voltar pela Augusta - a qual imaginamos ter algo da
continuação dos protestos. A praça da República está cercada por
policiais - impressiona. No palco montado para a comemoração do
aniversário da cidade, um show de samba-rock, o clima é muito
ameno. No caminho, os cinemões da República, vendedores ambulantes,
transeuntes passando como se nada excepcional estivesse acontecendo.
Pouco antes da Consolação, outra balada - são oito horas da noite.
Na entrada do Minhocão, um fusca queimado atrapalha o trânsito.
Antes, uma agência bancária quebrada e pixações contra a polícia.
O protesto já passou por ali. Na Augusta, alguns poucos rastros dos
protestos - que ou foram amadores ou, mais provável, não tiveram
muita chance contra o avanço dos militares. A Augusta está
interditada pelo choque: parte dos manifestantes, encurralados pelos
dois lados, se refugiou dentro de um hotel. Me estico para ver:
parece cena de terrorismo, soldados todos paramentados, com capacetes
e armas em punho, fazendo revista em um hotel. Fico a imaginar se,
durante alguns dos grandes eventos que o Brasil sediará, acontecer
algo nessa linha - atentado sério, e não jovens revoltados que usam
paus e pedras e vinagre - o tamanho despreparo de nossas forças
ditas de segurança. Meus olhos ardem: há restos de bombas de efeito
moral no ar. Damos a volta na quadra. Na Frei Caneca, estamos no meio
de um grupo que explica que teve que arrebentar a grade de um
estacionamento para que as pessoas pudessem fugir da polícia
militar, que os encurralava. Várias viaturas passam nessa hora. Não
olha, não olha, diz um deles, e então reparo que estamos no meio de
um grupo de jovens todos de preto, com mochilas e demais equipamentos
necessários para ação direta. Minha amiga fica temerosa, eu acho
graça - faltavam achar que meu visual praia poderia ser disfarce
black bloc. A Augusta segue interditada, mas a fila para a balada já
se forma, ao lado da fila de policiais que desviam o trânsito e, em
certo momento, um comboio de "night bikers". A primeira
quadra após o bloqueio, direção Paulista, ainda há movimentação
de todos em função da presença maciça de policiais, na quadra
seguinte, a rua ferve como todo sábado à noite: adolescentes
descem, os bares cheios, os maître de inferninho convidando pra
tomar cerveja com a mulherada, mendigos catam latinhas, pedem moedas,
dormem. A mesma coisa na Paulista, com seus adolescentes, skatistas,
artistas de ruas, mendigos, famílias estátuas vivas. Protesto? São
Paulo é a cidade do choque.
São Paulo, 25 de janeiro de
2014.
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