sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Frida K. [retratos feitos de memórias]

Quando penso em sons da minha infância, há dois que me marcaram muito. Um deles é o de uma serraria que ficava a uns sessenta metros da minha casa (ao lado dela havia um terreno baldio com pínus, onde eu pegava pinhas para brincar de jogar embaixo dos carros). Aquela serraria, na minha memória, barulhava o dia todo, só dava um intervalo na hora do almoço (assim como os mercados, fechados do meio-dia às duas). O outro som é o de algazarra de crianças no meio da manhã, no recreio da escola que ficava na esquina da minha casa. Frida K. era sua dona. Ela imigrara da Áustria para o Brasil no entreguerras, quando jovem. Migrara para Pato Branco com seu marido quando jovem era a cidade. Mais do que simplesmente uma das pioneiras da cidade, foi organista da igreja matriz, professora de piano e fundadora da segunda escola da cidade, em 1954, que funcionava nos porões da sua casa. Casa na qual entrei poucas vezes, geralmente com minha mãe - numa delas até dedilhei qualquer coisa no piano. Recordo de uma vez ter ido sem minha mãe, se bem lembro, foi também a única vez que fui até a varanda, que dava para os fundos do terreno - o pátio da escola abaixo. Ela havia ido passear em sua terra natal, Viena, e na volta trouxera um presente: uma bola de assoprar, tipo bóia de piscina infantil. Brinquei bastante com ela, mas uma coisa me deixara intrigado: se ela havia ido para a Áustria, por que havia um "Made in China" na bola? (Eu era pequeno e o mundo era outro). Às vezes, de casa, ouvia ela tocar órgão. Mais comum era escutar seus alunos tocando piano quando passava em frente da sua casa. Mais comum ainda era encontrá-la na janela, olhando o movimento da rua. Com o tempo ela foi ficando com a memória recente prejudicada. Encontrei-a uma vez na janela, como de costume. Aquela vez parecia pensativa, olhava para longe, como se tentasse enxergar algo faltante. A cumprimentei, ela encetou conversa. Falou de como Pato Branco havia crescido, brevemente comentou como era antigamente, concluiu com um reticente "é... Pato Branco cresceu...", suspirou, olhou em direção ao centro, aquele olhar distante, e recomeçou a mesma história, exatamente igual. Se repetiu ainda outra vez, antes de eu me despedir e seguir para casa. Ainda não estava assim quando sua escola foi vendida pelo filho e mudou de endereço. Assim estava quando a casa foi vendida a um desses "homens do progresso" da cidade (que encheu as burras com especulação a imobiliária agressiva contra a urbe), no início deste século, que no lugar construiu um prédio - batizado de Residencial Dona Frida, veja que homenagem! Pato Branco deixou de existir para mim nesse momento - e Frida K. ainda viveria quase dez anos mais, se aproximando do centenário. Hoje sonhei que carregava tábuas da madereira da serraria para a casa dos meus pais - era para construir uma estante pros meus livros, e eu era o eu de hoje. Ao atravessar a rua que dava na casa da dona Frida, vi que ela estava numa janela da lateral da casa - que, na vida real, ela pouco freqüentava, por ser alta e numa rua de menos movimento de pedestres -, o olhar melancólico em direção ao centro da cidade (melancólico é um termo que não lembro de poder empregar para ela). A casa já estava pintada de verde, os novos moradores terminavam de arrumar sua mudança, já não havia nada da dona Frida lá, a não ser a própria, esquecida, contemplando uma última vez a cidade do seu canto, como fizera por cinqüenta anos. Ao acordar, lembrei da cena de Frida K., presa ao passado pelo Alzheimer, a repetir "é... Pato Branco cresceu..."


São Paulo, 01 de agosto de 2014.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

São Paulo não esconde sua violência

Quatro e meia da tarde, estou no intervalo da minha aula. Em frente a praça Roosevelt, do outro lado da rua da Consolação, dois mendigos estão apoiados na "mureta" que evita que os pedestres se aproximem da rua que passa abaixo - o fim do Minhocão. Um deles aparenta embriaguez, o outro parece alheio. Passam por eles três jovens, na casa dos vinte anos, trajam roupas de marca. Um deles pára, olha para trás, tira seu iPhone, entrega a um amigo: "tira uma foto", e se põe entre os dois mendigos. "Uma foto cozamigo", ainda ouço ele dizer. Quando a miséria, a dor ou o sofrimento do Outro não merecem nada mais que escárnio, qual o limite para a desumanidade? Não sei, e tenho medo de descobrir. Mais medo ainda porque já me parece muito o pouco que sei. Adiante, novas pistas de que nada sei. Garotas passam pintadas e com as roupas rasgadas. Garotos passam pintados, cabelos estragados e bêbados. Uma bonita demonstração da divisão sexual do trote: às mulheres, perder a roupa, aos homens, o juízo. Comento com meu amigo o quanto, desde a Unicamp, me alegra presenciar esses simulacros de celebração da juventude hitlerista. O fato dos fascistóides na nossa frente serem da Universidade Presbiteriana Mackenzie (ah, como o cristianismo ajuda a construir um mundo mais digno!), em nada altera: um pouco mais ou um pouco menos, são a fina flor do país, a nata intelectual e financeira - junto com os acadêmicos da PUC, USP, Unicamp, UFAbc ou algumas outras. Até a UNIP tem seu simulacro fascista, expondo a pobreza de todos - veteranos e calouros - de maneira absurda: porque ali não há berço esplêndido para ocultar a pobreza do ato. De volta à escola de teatro, um exemplo que me ainda choca, e não acredito que algum dia deixe de me chocar: comento com a secretária - sempre leve, bem disposta, bonita - que não consegui ver o vídeo em que ela é entrevista pela BBC, apenas lera o breve resumo do seu relato. Ela me conta ao vivo, então, o que pode ser resumido como: teve a sorte de "só" perder um rim após levar um chute - e desta vez não estou sendo irônico. Nove pessoas - homens e mulheres -, entre dezesseis e vinte e dois anos atacaram-na quando passava pela praça da República, em direção a uma lanchonete. Ela perdeu um rim, o amigo que tentou protegê-la, "só" sofreu escoriações e acabou com o nervo ciático grudado no fêmur - três meses de fisioterapia para começar a voltar a ter os movimentos da perna. Seu crime: ser uma transexual. E eu que ingenuamente achava que esse tipo de violência seria excesso de testosterona, e não premeditação pela qual esteve presente a razão. Dava tudo isso por suficiente para o dia, queria chegar em casa, escrever esta crônica, seguida de uma mais leve, mas o dia me ofertava mais um belo exemplo do neofascismo das classes paulistanas favorecidas. Estou entrando no Centro Cultural São Paulo, um homem fecha sua mochila enquanto reclama: "é claro que eu vou ficar assustado, saio do banheiro e três seguranças me cercam e me intimidam", o segurança fala algo que não ouço, ele responde: "então vamos entrar e conferir", ele e dois seguranças entram no banheiro, um terceiro fica na porta. O homem está bem vestido (bem melhor do que eu), demonstra bom domínio do português. Seu crime: ser negro. O CCSP segue aprofundando seu processo de limpeza social para se tornar um Sesc público. Talvez seja isso uma das coisas que me faz gostar de São Paulo, em especial de seu centro: ela não é uma cidade hipócrita, não esconde suas mazelas, não disfarça seu racismo, não doura seu preconceito, não finge nenhuma democracia racial ou social. Não que eu goste de presenciar isso tudo, mas esconder o rosto para não ver toda essa violência simbólica diária e ostensiva não a torna menos violenta ou menos quotidiana. O centro de São Paulo nos cospe na cara nossa precariedade como sociedade e como humanos.



São Paulo, 30 de julho de 2014.