segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A perversidade do discurso da impunidade do menor de idade

Doze de outubro, dia das crianças. A depender de uma parcela considerável da população (considerável não por ser maioria, mas por ser poderosa), em breve estaremos discutindo se as crianças merecem saidão nessa data, ou apenas no natal. Enquanto nossas crianças-soldado morrem sem saber o que é infância e sem a garantia do paraíso por Alá - executados por criminosos com e sem farda -, religiosos, políticos, empresários (quando não os três na mesma figura) lavam uns as mãos dos outros com o dinheiro que toda essa indústria do medo e da punição gera. Na linha de frente, policiais militares apedeutas que executam e repetem o que o governador manda, e criminosos televisivos que durante a tarde e a noite defendem execuções sumárias e destilam discursos de ódio, encampados pelo direito de "liberdade de opinião", que não são opinativos (são criminoso), nem são livres (porque passam longe de ser democráticos). Datena, serviçal de uma das famílias midiáticas brasileiras que rasgam as leis sem pudores, certa feita já nos ensinou que a causa da criminalidade é não acreditar em deus - de onde pode-se deduzir que crianças mortas nas favelas são ateus, enquano Eduardo Cunha não é criminoso. Sargento Fahur, da PM do Paraná, em qualquer país em que o Estado Democrático de Direito é sério, já teria sido afastado de suas funções - ou ao menos de dar entrevistas.
Que não seja para um ano ou dois a redução da minoridade penal, o discurso desses sacripantas televisos, religiosos e políticos é de uma perversidade pouco notada, mas de efeitos reais. Uma professia auto-realizável, dada a força dos setores que a defendem. A justificativa pelo encarceramento de crianças e jovens tem dois argumentos: eles seriam conscientes de seus atos e, conforme a lei atual, eles poderiam praticar crimes impunemente. Quanto ao argumento da consciência, esses senhores ilustrados são de uma desfaçatez vergonhosa; ou então falta eles serem conscientes da realidade social, saber que uma pessoa não se faz sozinha, mas a partir das suas relações - o que não implica em concordar com certa esquerda-Peter-Pan, para quem a condição social é habeas corpus suficiente para crimes. Já no argumento da impunidade eles demonstram sua perversidade.
Ao dizer em rede nacional, em horário nobre, que menor de idade pode cometer o crime que quiser que não é punido, além de ser mentira - por mais que o menor não seja escalado para ingressar o PCC, ele sofre punições, inclusive de privação de liberdade -, esse discurso, repetido diuturnamente faz com que muitas crianças - sem plena consciência de seus atos - acreditem nele e passem a cometer crimes, crentes de que "não serão punidos". Ao repetir o discurso da impunidade, Datena, Cunha, Sgto. Fahur e afins estão, na verdade, chamando jovens e crianças para o crime: "você, jovem que ainda não completou dezoito anos, que sabe que nunca será nada na vida, aproveite agora e tente ganhar dinheiro rápido pra ser alguém. Mas venha logo, antes que você cresça e a polícia te prenda!". Não é difícil jovens de formação muito precária, sem perspectivas, sob o bombardeio da publicidade e do consumismo, se deixarem encantar por esse canto da sereia. Como não são Ulisses atados ao poste, se afogarão.
Ouvi dizer que nas UPPs do Rio de Janeiro, a exemplo do que ocorre nas periferias das grandes cidades brasileiras, o governo distribui balas para crianças - quareta milímetros. "Quem não reagiu está vivo", explica o governador Alckmin.


12 de outubro de 2015.


Bandido bom é bandido morto. Mas só quando o bandido é o Outro.


domingo, 20 de setembro de 2015

O centro de São Paulo não é violento

Em abril deste ano, fomos eu e uma estrangeira que também estagiava no Teatro da Vertigem comer algo depois do estágio. Dado momento conversamos sobre a violência no Brasil, em especial São Paulo. Eu discordava e tentava desmontar a afirmação senso-comum de que o centro de São Paulo é violento e perigoso, ainda mais à noite. Que não seja tranqüilo, ok, mas não é para tanto. Fui elencando meus argumentos, ela ajudou com exemplo vivenciado no dia anterior quando, na Vila Mariana, ao quase ser atropelada ao atravessar a rua ("eu estava na faixa e ele estava virando a esquina", ela argumentava, desconhecedora que diante de uma vaca sagrada só outra vaca sagrada tem poder, nunca o pedestre), seu amigo batera no carro para que ele parasse e acabou apanhando do motorista, que tão valente quanto desceu do carro fugiu a seguir. Ao fim da minha argumentação, me dei conta, estarrecido, do quanto eu tinha razão sobre o fato do centro de São Paulo não ser muito violento, mas para ter essa razão o quanto não naturalizei toda sorte de violências quotidianas - que me chocam e me indignam, mas passam, como as chuvas de verão e as secas de inverno. Diante da violência geral, de cima a baixo na sociedade, a violência do pobre contra o rico ("passa o dinheiro") é só mais uma - e das mais leves: das entradas de serviço à proibição de certas classes de pessoas em locais públicos, da ofensa de classe, cor, orientação sexual, gênero ("pobre favelado", "preto", "viado", "homem de peruca"), à invisibilidade de toda uma classe de sub-pessoas (as "pessoas marrons" tratadas pela Eliane Brum [http://j.mp/1hbvAXT], serviçais da segurança, da faxina, do dia-a-dia que acontece sem que a classe-média ilustrada precise pensar nisso), quando não à aniquilação física ou emocional dos mais fracos (pobres, pretos, periféricos, mulheres, desviantes). Lembrei desse diálogo - que desde então queria transformar em reflexão, e não foi desta vez - por conta de um trecho do livro 1Q84, do japonês Haruki Murakami, que dá um pouco a medida do descaminho da violência destes tristes trópicos:
"- Acho que temos muita coisa em comum, não acha?
- Acho que sim - concordou Aomame. 'Mas você é uma policial e eu mato pessoas. Estamos em lados opostos da lei e isso certamente nos torna muito diferente', pensou". (1Q84, p. 201)
Uma policial e uma assassina: em "lados opostos da lei" porque uma mata pessoas e a outra, não. Pelas nossas leis, esse diálogo poderia ocorrer no Brasil, mas é sabido que soaria totalmente irreal. Sob aplausos de uma classe-média que não pensa e pedidos de "quero mais" e "tem que matar" de apresentadores de tevê tão criminosos quanto os pretensos criminosos assassinados por criminosos fardados de policiais, que agem com o beneplácito do governador Alckmin - PMs que assassinam até com mais frieza que os  pretensos "bandidos".
Deveras: se formos tratar violência como algo extraordinário que irrompe em dado local contra determinadas pessoas, São Paulo não é violenta. Mas se formos tratar por "violência" toda forma de violência, não a encontramos só no centro "degradado", na Cracolândia: São Paulo - a exemplo do Brasil - é violenta nas periferias, nos bairros nobres, nas ruas, nos edifícios privados e nos prédios públicos. É violenta na avenida Paulista tanto quanto na avenida Duque de Caxias. Cidade Tirandentes, Jardim Ângela, Jardim Europa, Pinheiros (e seu fetiche classe-média, Vila Madalena): impossível caminhar dez metros sem se deparar com uma violência - qualquer que seja. Quem enxerga só um lado da violência é porque compactua com o outro. Infelizmente, a maioria parece enxergar só um dos lados.

20 de setembro de 2015.

Favelas são uma violência - tolerada e naturalizada. As favelas auto-inflamáveis durante a gestão Kassab, então. Mas não é isso que torna São Paulo violenta para uma parcela da população.