quinta-feira, 14 de julho de 2016

Pela desunião sincrônica das esquerdas!

Por conta da eleição para a Câmara dos Deputados, vejo uma série de análises, antes da votação, pedindo uma união das esquerdas, a seguir, criticando sua desunião. Conforme tais análises, a perda da presidência da casa seria apenas o prenúncio do que aguardaria as esquerdas nas eleições de outubro, se não conseguirem se unir - a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro. Mais calma no catastrofismo. São duas eleições absolutamente diferentes, ainda que atendam à mesma democracia farsesca. 
A presidência da câmara era uma eleição indireta em que se sabia que as forças progressistas não tinham chances: somando os votos dos candidatos dos partidos tidos como de esquerda (PSOL, Rede, PCdoB, sem entrar no mérito se são mesmo de esquerda ou progressistas) e a bancada do PT, não conseguiriam chegar ao segundo turno (seriam 102 votos, Rosso teve 106). A eleição da Câmara, portanto, servia para esses partidos marcarem presença para o público externo, de olho nas eleições municipais, enquanto o PT buscava um mínimo de governabilidade, para o caso de voltar ao executivo federal. Um detalhe: desde a ascensão do PT ao executivo federal se fala de uma regra de ouro, um pacto de honra do legislativo brasileiro, de que a maior bancada faz o presidente da casa; romper com essa "tradição" não é de todo insignificante.
Saindo da Terra do Nunca chamada Brasília e indo para as eleições municipais, a união das esquerdas pode ser boa, recomendada, mas não é imperativa, mesmo para a possibilidade de vitória: convém notar que a direita também está dividida. 
A primeira dificuldade para a união de forças progressistas está no fato de que a esquerda deixou de ter um pólo claro e inconteste, o PT - como era desde o assassinato político de Brizola pela Globo, em 1992 -, sem que isso implique em uma força de esquerda que o supere. Como ceder se ainda é o mais forte?, o questionamento petista é justo, ainda que falho. Sem contar que PSOL, apesar dos novos bons ares que tem agitado o partido nesta segunda década, ainda não consegue se apresentar como uma alternativa quanto ao fazer política significativamente diferente da petista - não estar envolvido em casos de corrupção é fácil quando não se está com o poder nas mãos, ainda que a corrente do PSOL que fincou raízes na Unicamp demonstre acreditar, assim como alguns petistas, que há uma corrupção do mal e uma do bem (a deles, claro. http://bit.ly/29RuYZZ) -, nem possui as bases que davam a força ao PT de alguns anos atrás. No caso paulistano, há ainda uma segunda dificuldade: Haddad disputa a reeleição: se alinhar a ele implica não em concordar com teses ou potenciais projetos, mas referendar práticas concretas, muitas das quais plenamente questionáveis pelos padrões progressistas, como a higienização do centro ou a segregação de público nos equipamentos da prefeitura, reforçando a lógica (muito afim às classes média e alta brasileira) que vê a alteridade como negativa.
O que as forças progressistas precisam estar atentas é para não entrarem em brigas fratricidas por votos de modo a reforçar candidatos de direita - imperativo é haver pactos de não-agressão assim como pactos de ataques a inimigos comuns. Certa esquerda terá que abandonar devaneios rousseaunianos de sinceridade pura, e calar críticas muitas vezes necessárias, mas desaconselhadas pelo momento político, de avanço da direita reacionária: por mais pertinente que seja, a crítica feita no primeiro turno pode ser utilizada pelos reacionários no segundo turno. E se já está difícil avançar um passo, arriscar retroceder dois não é uma alternativa sensata (penso no exemplo da GCM: se sob Haddad a guarda está longe de ser uma flor, ao menos ela tem atuado em colaboração com a assistência social; sob Russomano ou Dória ela voltará aos seus velhos tempos de truculência desmedida, atuando em sintonia fina com a milícia estadual do senhor Alckmin, o Milosevic bandeirante).
Em um contexto de golpe de Estado, governo ilegítimo, imposição anti-democrática de políticas de Estado, alienação da casta política das questões da população que os elegeu e ataques reiterados à política, inclusive por parte de políticos (Alckmin, por exemplo), as eleições de 2016 podem ser a chance das esquerdas demonstrarem que a democracia enquanto um valor que, se aprofundado, merece ser defendido. Ao invés de atacarem entre si, mostrarem a convivência saudável de idéias díspares, e usarem a carga para denunciarem pseudo-democratas, esses que defendem que a democracia acaba tão logo se fecham as urnas. Mais importante: as eleições de 2016 devem ser utilizadas para restituir à política seu caráter positivo, que a extrema-direita brasileira, com apoio da imprensa e de togados, tem conseguido com sucesso minar.

14 de julho de 2016.


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Nós a um passo de nossa condenação [Diálogos com o teatro]

Qual a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio. Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador condenado à morte, de Matéi Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não, o grupo não se propôs a fazer nenhuma releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em 1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda - ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos, passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam, muito sutilmente, a fazer a ligação.
O mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas. Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos formais: o juiz proíbe que o promotor chame o suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo. Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o início da peça.
Foto: Patrícia Mattos
São chamadas as testemunhas, para que os ritos sejam seguidos. São nove no total, mas já na segunda a fantasia de todos cai: promotor, escrivão, juiz, defensor, testemunhas - da justiça toda, marcada pelo rasgar literal do fardão do juiz -, todos vociferam contra o criminoso - cuja culpabilidade está gravada na testa, segundo o defensor -, desejando não apenas sua condenação, mas seu aniquilamento - muito afim à lógica totalitária que acalenta de stalinistas a fascistas, incluída nossa Grande Imprensa e seu rebanho paneleiro. O promotor reclama: todos acreditam que o espectador é o culpado, por que só o próprio que não?, enquanto o defensor roga ao criminoso, num cinismo digno de FHC, que confesse tudo em público e que com isso alivie o peso de sua consciência e satisfaça a justiça e a sociedade: todos sabem que é um criminoso, por que não confessar? Trinta anos antes da peça ser escrita, essa confissão seria chamada de "auto-crítica", trinta depois, de "delação premiada", o mecanismo por trás, contudo, segue o mesmo - e nada tem de democrático ou justo.
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder - que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça, que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O espectador condenado à morte é espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à morte.

29 de junho de 2016.

PS1: O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3: Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal, livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo. Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.