terça-feira, 3 de setembro de 2019

Barbárie venezuelana: onde a civilização ocidental pratica tortura em larga escala

O texto de Mario Vargas Llosa sobre a Venezuela, "De volta à barbárie", no El País, me traz à lembrança o "Por qué no te callas" do rei Juan Carlos a Hugo Chávez, em 2007. Talvez tenha sido o grito da velha civilização contra a nova barbárie: de um lado o rei de um império decaído, que construiu seu breve esplendor com sangue e sofrimento, à base do saque, do assassinato, da pilhagem e da destruição, e que no século XX, restrito às próprias fronteiras, passou a fazer do próprio país um inferno/terra arrasada que antes fizera além-mar; do outro, um criollo rebelde que passado duzentos anos ainda acreditava na independência, na autonomia e era capaz de reivindicar a autodeterminação dos povos, na crença ingênua que uma terra de índios, mestiços e negros possa um dia ter algo digno de ser chamado de povo pelas elites civilizadas da Europa e Estados Unidos. Quem sabe essa tenha sido a senha para que a barbárie imperasse, deixando claro que a civilização ocidental nada mais é que um discurso sem fundo de verdade, a hipocrisia mais calhorda para satisfação narcísica de gente incapaz de autorreflexão.
Lembro da comemoração eufórica com a grosseria real por parte da mídia (brasileira e internacional) e dos opositores do governante de turno da Venezuela. Fosse dito por um outro país latino americano e a interpelação poderia entrar em discussão, com base em disputas seculares e atuais entre estados irmãos; vindo de quem veio, nada era aceitável que não a condenação veemente desse restolho de imperialismo e colonialismo, mancha vergonhosa do passado espanhol e cicatriz indelével nas terras americanas. Mas virou um mantra para as elites “cosmopolitas” (Jill Lepore permite uma outra interpretação sobre o que seria o cosmopolita) e seus asseclas, um troféu dos ressentidos com a ascensão dos miseráveis à condição de pobres e aspirantes a direitos, a lembrar que todos são humanos e tem direito à dignidade - basicamente aquilo que um certo senhor considerado bastião da cultura ocidental dizia há dois milênios.
O artigo de Vargas Llosa mesmo é desprezível, sua tese beira que o projeto bolivariano era de regresso à barbárie para lucro de uma pequena elite no poder, consequência natural do socialismo ou qualquer coisa que agrida a ordem natural do mundo do capital. Como a Espanha do veículo em que foi publicado, Vargas Llosa se sustenta por um título pretérito que nada garante do futuro - o país, pelo menos, graças a seu povo, busca se reinventar e está aberto a devires. No fundo, o peruano deve lamentar que o confronto entre Juan Carlos e Chávez tenha parado numa frase e não na invasão das esquadras espanholas, ou melhor, marines estadunidenses, e ignora que as guerras hoje possuem métodos muito mais sofisticados que os de Francisco Pizarro. Anos numa guerra não aberta - mas de efeitos concretos - jogaram a Venezuela em uma enorme crise, com mais de 30% de desemprego (vale lembrar que no Brasil que evitou a barbárie, graças a Temer e Bolsonaro, segundo Vargas Llosa, 40% da população está desempregada ou subempregada) após queda econômica de 56% em oito anos - um país que no seu apogeu, em 2008, ainda não havia conseguido livrar 10% da população da miséria. Mas a memória de Vargas Llosa afirma peremptoriamente que bons eram os tempos antigos, onde peruanos iam fazer negócios no país - quais peruanos e às custas de quantos venezuelanos, ele não explica.
A retórica feita de "fatos etéreos", de afirmações imprecisas, ocultando números e salientando adjetivos, atestam que o escritor usa do peso de seu Nobel para espalhar desinformação. Isso me lembra da minha velha máxima sobre a cobertura da situação venezuelana, desde que Chávez assumiu: sei que um lado oculta, mente e distorce deliberadamente, desavergonhadamente. Do governo, tenta combater a essa guerra híbrida como pode, e é obrigado, seguidamente, a usar das mesmas armas, o que faz com que provavelmente acabe incorrendo em omissões graves, no mínimo (se assumisse que dado aspecto noticiado por El País e outras mídias globais é verdadeiro poderia dar a deixa para uma campanha de que tudo o que está ali é verdadeiro, o que definitivamente não é, vide as coberturas do golpe de 2002 ou do atentado em 2018). Não que a situação venezuelana não seja dramática, ou não teríamos tantas pessoas deixando sua pátria em tão pouco tempo. A questão é que se os números dão alguma noção, mas não são capazes de descrever o comensal do dia a dia das pessoas comuns, a mídia internacional só verá tragédia e caos, e o governo tenta, como pode, evitar que a profecia do fim da experiência bolivariana se auto realize.
Sei que apenas uma semana em terras venezuelanas, em missão da Igreja Católica - vou pelo Serviço Pastoral dos Migrantes, onde milito há anos -, provavelmente passando por regiões das mais precárias do país em frangalhos, não me dará grande panorama do país - minha esperança é que ao menos eu tenha alguma referência para perceber o que é verdade no meio de tantas mentiras de todos os lados sobre a vida na Venezuela.

03 de setembro

sábado, 31 de agosto de 2019

Talvez a vitória de Bolsonaro em 2018 tenha sido a melhor opção

Apesar de todas as críticas à psicologia do ego de Erich Fromm, admiro sua apresentação da ideia de liberdade, em O coração do homem: foi um marco na forma como passei a refletir sobre problemas que surgem. Grosso modo, diz ele que o último passo na tomada de um ato pouco tem de livre: há uma série de engajamentos prévios que tornam a desistência do ato, o passo derradeiro, de um custo tão elevado a ponto de ser difícil ao sujeito mudar de rota, uma vez que seria negar tudo o que foi feito até então e que levou até àquele ponto - contudo, o mais comum é nos atermos a esse último instante e acreditar que ali se tomou toda a decisão, que ali ainda havia plena liberdade de fazer ou não.
Fromm me veio à mente com o tal "dia do fogo", organizado e posto em prática por criminosos disfarçados de fazendeiros e ruralistas, apoiadores de Bolsonaro na Amazônia, com as reações grotescas do mandatário da nação, e com os alertas de "eu avisei" dos que mantiveram um mínimo de bom senso ano passado - o que exclui pretensos isentões do segundo turno.
O que ficou evidente para mim neste mês de agosto foi que, diante do que tínhamos em setembro de 2018, a vitória de Bolsonaro pode ter sido a melhor alternativa - claro, isso vai depender de como as esquerdas e as forças progressistas estão se organizando e vão se organizar. O ponto principal é que o clima de ódio provocado pelo consórcio mídia-PSDB-judiciário-ministério público e o estado de anomia no qual o país foi atirado pelo farsesco impeachment de Dilma foram instrumentalizados pelo ex-capitão e seus sicários, de modo que ganharam demasiado poder. Poder para além das urnas - e é o poder do estado que tem nas mãos que pode fazer com que desidratem.
Uma vitória de Haddad no segundo turno, além da hostilidade do congresso, teria que lidar ainda com oposição cerrada da mídia e constantes testes de autoridade por vários setores da sociedade, de organizadores do dia do fogo e milicianos a juízes e procuradores. Isso potencializado por crise econômica interna, boicote do empresariado, lawfare e crise comercial internacional. Dificilmente um candidato progressista - estou a incluir Ciro aqui, mesmo sendo de centro-direita - conseguiria encaminhar uma solução a todas essas crises: mais provável que o governo fosse uma tentativa de diminuir o caos estimulado por atores sociais importantes, com a mídia, o STF, Bolsonaro, sua família e suas milícias aumentando cada vez mais o tom do discurso e dos atos.
O "dia do fogo", arrisco dizer, aconteceria sim ou sim, fosse Bolsonaro ou Haddad o presidente. Se com o carioca aconteceu com beneplácito do líder, com Haddad as chances eram de que acontecesse para afrontar o presidente - eventuais prisões que impedissem o que foi feito na Amazônia seriam automaticamente vendidos pela mídia como "venezuelização" e arroubos autoritários, custariam muito de um sofrido apoio interno que ele pudesse ter.
A #VazaJato não teria a mesma repercussão e seria mais facilmente apresentada como "tentativa dos políticos corruptos do PT de impedir os arautos dos cidadãos de bens combaterem a corrupção dos políticos (do PT)". Qualquer sinalização de desmantelar a quadrilha que atua desde a República de Curitiba iria na mesma linha - e às favas o direito, a constituição, a humanidade. Seguiria o lawfare contra qualquer pessoa que pensasse diferente de Moro, Dallagnol e seus serviçais.
Esse clima de caos e desgoverno - ou de difícil governo - permitiria ao fascismo tupiniquim crescer sem oposição - talvez alguma amarra nos governos estaduais, uma vez que poderiam ser cobrados, mas governo estadual dificilmente tem o mesmo poder de ser teto de vidro que o federal. Bolsonaro pai poderia cometer seus festival de disparates sem nenhuma cobrança pela liturgia do cargo, já que não teria cargo oficial nenhum, nem nenhum confronto com a realidade, já que não possuiria poder efetivo nenhum. Seu poder seria paralelo, apoiado e estimulado por parte da mídia e do judiciário (sabemos agora, pela Lava Jato como um todo), no intuito de enfraquecer o PT e ainda crente de que conseguiriam domá-lo depois - uma espécie de Guaidó com mais respaldo. Isso permitiria um maior enraizamento das bravatas e do ideário fascista - com a complacência dos donos do poder -, e tenderia a dar uma enorme força e resiliência a esse espectro político em 2022.
Claro, o fato de Bolsonaro queimar parte do capital político da extrema-direita não anula todo o espectro. A vitória precoce do atual presidente incorreu no mesmo problema da extrema-direita europeia, onde tem sido um retumbante fracasso quando assume o poder, ainda mais sem o devido respaldo popular. É prepotência e incompetência. O Brexit talvez seja o melhor exemplo: é o putsch da cervejaria de Munique que deu certo e os bêubos tiveram que assumir sem ter a mínima ideia do que fazer ou de como o estado se organiza e funciona, daí tentarem recrudescer o golpe. O grande ponto: não tiveram tempo de se enraizar para além dos predispostos a abraçar o "movimento".
Não estou desculpando quem votou no capitão, ano passado, aceitando que era a melhor opção - não era. Estou aqui propondo que façamos nossas análises a partir de um pouco mais recuado, entender que o passo no abismo não foi dado na urna, em 2018, mas vem de antes, de uma série de fatores que foram negligenciados e/ou minimizados, que levaram ao ponto onde estamos. Seguir com essa de "eu avisei" é insistir no erro e achar que eleição é 45 dias de campanha mais a urna, e deixar a avenida aberta para o fascismo repaginado de um Doria Jr ou Luciano Huck tomar o imaginário popular e criar raízes na sociedade - além do que são mais vivos e tem total simpatia da mídia, poderiam atuar (como Doria Jr deveras atua) como tratores nas instituições democráticas sem serem confrontados ou incomodados.
Diálogo, mobilização e politização - se realmente queremos reverter o quadro político atual. Ou então vamos ficar esperando Godot, nos queixando aos astros e esterilmente gritando nas redes sociais "eu  avisei".

31 de agosto de 2019