Lembro da comemoração eufórica com a grosseria real por parte da mídia (brasileira e internacional) e dos opositores do governante de turno da Venezuela. Fosse dito por um outro país latino americano e a interpelação poderia entrar em discussão, com base em disputas seculares e atuais entre estados irmãos; vindo de quem veio, nada era aceitável que não a condenação veemente desse restolho de imperialismo e colonialismo, mancha vergonhosa do passado espanhol e cicatriz indelével nas terras americanas. Mas virou um mantra para as elites “cosmopolitas” (Jill Lepore permite uma outra interpretação sobre o que seria o cosmopolita) e seus asseclas, um troféu dos ressentidos com a ascensão dos miseráveis à condição de pobres e aspirantes a direitos, a lembrar que todos são humanos e tem direito à dignidade - basicamente aquilo que um certo senhor considerado bastião da cultura ocidental dizia há dois milênios.
O artigo de Vargas Llosa mesmo é desprezível, sua tese beira que o projeto bolivariano era de regresso à barbárie para lucro de uma pequena elite no poder, consequência natural do socialismo ou qualquer coisa que agrida a ordem natural do mundo do capital. Como a Espanha do veículo em que foi publicado, Vargas Llosa se sustenta por um título pretérito que nada garante do futuro - o país, pelo menos, graças a seu povo, busca se reinventar e está aberto a devires. No fundo, o peruano deve lamentar que o confronto entre Juan Carlos e Chávez tenha parado numa frase e não na invasão das esquadras espanholas, ou melhor, marines estadunidenses, e ignora que as guerras hoje possuem métodos muito mais sofisticados que os de Francisco Pizarro. Anos numa guerra não aberta - mas de efeitos concretos - jogaram a Venezuela em uma enorme crise, com mais de 30% de desemprego (vale lembrar que no Brasil que evitou a barbárie, graças a Temer e Bolsonaro, segundo Vargas Llosa, 40% da população está desempregada ou subempregada) após queda econômica de 56% em oito anos - um país que no seu apogeu, em 2008, ainda não havia conseguido livrar 10% da população da miséria. Mas a memória de Vargas Llosa afirma peremptoriamente que bons eram os tempos antigos, onde peruanos iam fazer negócios no país - quais peruanos e às custas de quantos venezuelanos, ele não explica.
A retórica feita de "fatos etéreos", de afirmações imprecisas, ocultando números e salientando adjetivos, atestam que o escritor usa do peso de seu Nobel para espalhar desinformação. Isso me lembra da minha velha máxima sobre a cobertura da situação venezuelana, desde que Chávez assumiu: sei que um lado oculta, mente e distorce deliberadamente, desavergonhadamente. Do governo, tenta combater a essa guerra híbrida como pode, e é obrigado, seguidamente, a usar das mesmas armas, o que faz com que provavelmente acabe incorrendo em omissões graves, no mínimo (se assumisse que dado aspecto noticiado por El País e outras mídias globais é verdadeiro poderia dar a deixa para uma campanha de que tudo o que está ali é verdadeiro, o que definitivamente não é, vide as coberturas do golpe de 2002 ou do atentado em 2018). Não que a situação venezuelana não seja dramática, ou não teríamos tantas pessoas deixando sua pátria em tão pouco tempo. A questão é que se os números dão alguma noção, mas não são capazes de descrever o comensal do dia a dia das pessoas comuns, a mídia internacional só verá tragédia e caos, e o governo tenta, como pode, evitar que a profecia do fim da experiência bolivariana se auto realize.
Sei que apenas uma semana em terras venezuelanas, em missão da Igreja Católica - vou pelo Serviço Pastoral dos Migrantes, onde milito há anos -, provavelmente passando por regiões das mais precárias do país em frangalhos, não me dará grande panorama do país - minha esperança é que ao menos eu tenha alguma referência para perceber o que é verdade no meio de tantas mentiras de todos os lados sobre a vida na Venezuela.
03 de setembro
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