quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Vai pagar imposto!

Estou descendo a rua Itapeva, na Bela Vista, quando vejo um homem com um mala esbravejando contra um motorista ausente (imagino ter passado em uma poça e molhado o homem). Xinga alto e volta a xingar. Sobe alguns passos e vai até a esquina - onde, presumo, o motorista virou - e xinga mais. A cena é longa, mas o repertório é curto: os impropérios repetidos e repetitivos versam basicamente sobre o desejo de coito, a mãe do motorista, o ânus dela e o do próprio motorista. O homem volta a descer a rua, sempre xingando. Para poucos passos adiante e retorna novamente à esquina, quando a raiva acumulada e mal extravasada parece ter levado a um esforço intelectual incomum e ele pode, finalmente, esbravejar contra o espectro do motorista um vitupério definitivo: "vai pagar imposto, seu cuzão filho da puta!", e pôde seguir, então, seu trajeto sem necessidade de repetir os xingamentos em voz alta.
"Vai pagar imposto", foi esse o xingamento. Não foi desejar que batesse o carro, que tivesse o veículo furtado, a carteira apreendida por pontos, não foi um desejo de que o motorista pagasse uma multa, uma infração, foi o de que ele pagasse imposto, condição básica para a existência e funcionamento do Estado e possibilidade de vida em sociedade - isso enquanto não houver uma revolução que desabroche o novo que até agora somos incapazes de imaginar. Sei que a cena era excessiva, mas o pensamento não é isolado - e isso mostra o quanto as forças progressistas (incluídas as à direita) não souberam reagir aos ataques neoliberais e sequer acordaram para o quão defasados estamos na disputa ideológica.
Afinal, foi uma geração, 25 anos, em que os impostos foram apresentados como os grandes vilões da sociedade e das pessoas, que são roubadas por uma casta de parasitas - os políticos -, sem chance de reação. Era notícia diária, várias vezes ao dia, repetida de hora em hora: o quanto impostos são nefastos, o quanto o Brasil é caro por causa dos impostos, o quanto imposto tira a liberdade das pessoas usarem seu próprio dinheiro conforme desejarem - nem o pai castrador era tão castrador quanto o estado que cobra imposto de renda. Pior: diante dessa avalanche toda, as esquerdas foram incapazes de articular um contradiscurso minimamente combativo, quando não aderiram acriticamente às implicações desse mantra, como é o caso do PT, com Lula, Dilma, Haddad, Pimentel e outros, ou de Ciro Gomes (que, na minha visão, é progressista, mas não de esquerda). Sim, houve propostas sobre a questão tributária, projetos muito bem elaborados a partir de análises críticas robustas - uma recém apresentada na Câmara dos Deputados. Porém, se questões e abordagens técnicas são relevantes, elas são incapazes de mobilizar a opinião pública numa sociedade de massas - ainda mais num país de ensino (formal e não formal) bastante precário. Ouso dizer que a esquerda, deslumbrada consigo própria em suas densas elaborações teóricas sobre o tema foi incompetente em ouvir o discurso neoliberal em toda sua profundidade e incapaz de escutar a população e como ela recebe e processa esse discurso.
As pessoas simplesmente não sabem para que servem os impostos. Não adianta, como fez Gregório Duvivier em um programa muito elogiado na minha bolha classe média demi-crítica, explicar que os ricos pagam menos impostos, porque isso apenas reitera que é preciso, então, baixar os impostos de todos. A apresentação do estado pela mídia praticamente se confunde com o exercício do poder político, sendo que os políticos - quase sinônimos de corrupção - são pagos com o dinheiro dos impostos. Fechando o silogismo simplório num círculo completo, os impostos parasitam a sociedade para pagar uma classe de parasitas da sociedade. As pessoas não conseguem perceber que professores, médicos, policiais são pagos com dinheiro dos impostos; não faz sentido a elas que imposto ajude na redistribuição de renda; a classe média é tapada suficiente para achar que porque paga plano de saúde "sustenta" o SUS sem dele se utilizar, sem perceber os muitos benefícios indiretos, dentre eles o de que seu plano de saúde só tem o valor módico que tem hoje porque seus clientes podem recorrer ao SUS se a mensalidade for extorsiva por serviços de qualidade precária.
A ideia de que o imposto é um roubo é parte de uma longa cadeia ideológica que inclui o estado incompetente, o setor privado eficiente, o político corrupto. Foi por onde se adubou o terreno para antipolíticos da pior espécie vingarem: Doria Jr, Amoedo, Flávio Rocha, Huck tem enorme potencial porque seu discurso foi naturalizado e soa o óbvio, por mais falacioso que seja.
Reitero o que falei há tempos: ou a esquerda complexifica seu discurso, ou não será capaz de vencer essa direita, nem nas urnas, nem fora delas. Mais: precisa desde já fazer frente ao discurso hegemônico, se não quiser ficar refém do capital e de seus porta vozes midiáticos, se quiser reverter o xingamento de "vai pagar imposto". Qualquer vislumbre reformista precisa, necessariamente, assumir a bandeira de defesa de impostos e problematizar a partir do que temos e do que precisamos para nos tornarmos um país mais justo e menos desigual. Vamos pagar imposto!

09 de outubro de 2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Casa nova (Farewell transmission)

Ao abrir a porta do apartamento, às sete horas de uma noite chuvosa, me sinto subitamente envelhecido. Um apartamento vazio com alguns pequenos consertos para fazer, as paredes por pintar, apagar as marcas do tempo que sublinhavam os quadros até ontem pendurados. Pela janela da sala há o escuro das árvores - sentirei falta de ver o skyline da Paulista. "Long dark blue". Lembro de Farewell Transmission, de Songs: Ohia. É este, digo ao Vini. E a mim mesmo me pergunto o que pensará o desconhecido que cruzar essa soleira depois de amanhã, para a pesquisa do IBGE ou das memórias do que era o mundo três gerações atrás, na virada do século XXI. Um velho melancólico em meio a livros, três móveis e dois gatos. Talvez eu devesse encher a casa de cacarecos, como a disfarçar a condição que nos habita? Vini inspeciona os cômodos, me avisa da fiação estranha dentro do armário, acha feio o guarda-roupa deixado para trás. Sinto que ali estou guarnecido como alguém que abre um guarda chuva para se proteger de um tempestade de granizo. "Foi tão fácil conseguir e então eu me pergunto e daí?" Estranho quem me parabeniza por ter herança, ainda mais por gastá-la assim, confrontado pelo princípio de realidade que não me permite sequer cogitar um apartamento classe média dos anos 1990 - janelas incrustadas no concreto cheio de quinas, o vidro escuro nas sacadas, as pastilhas na fachada, um peso que não descarta esperança. Com a idade do Vini eu ouvia vinil do Raul Seixas no rádio National de meu pai, usando uma raquete de tênis como guitarra e o esfregão como microfone. Isso foi ontem pela manhã, enquanto Cecília fazia o almoço. Agora preciso me preocupar em pintar as paredes sem manchar o chão, orçamentos e prazos - e viagem para a Venezuela, a trabalho, no meio disso tudo. Tenho um mês para me acomodar e começar a me irmanar do apartamento, sem mais a sensação de provisório que até então me acompanhava cada mudança - eu próprio me sentindo alguém em plena mudança (me sentindo provisório?). Ou seja, posso fazer isso com calma, sem o receio do efêmero - me iludo. E agora? "Stop/ A vida parou/ ou foi o automóvel?". A rua é temporariamente sem saída - até que o prédio vizinho conserte ou caia de vez. Nas manhãs, haverá sabiás e outros pássaros cantando, e o grito das crianças no recreio da escola - como na minha infância, a escola Dona Frida. Me vejo em reminiscências, confirmo meu envelhecimento repentino; leite derramado: não mais um jovem de quase quarenta anos, mas um idoso de quase quarenta anos - que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, não nos termos bíblicos, como a reafirmar a descrença na vida eterna e a adesão ao catastrofismo ecológico, mesmo sem tanta convicção (insisto em ter esperança e achar que melhoraremos, que o mundo de amanhã será melhor que o de hoje). "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?". Dei o primeiro passo: tributável. Do resto ainda me esquivo. Do contrário disso também. Busco um fio de cabelo branco, para confirmar minha nova condição. Encontro, como sempre, uma espinha a brotar, que espremo com o prazer despreocupado das admoestações da mãe, de que vou ficar com a cara cheia de marcas, quando adulto - já sou adulto e ainda me faltam as marcas. Faço algumas medições, para as redes nas janelas, para os móveis que farei - uma estante de livro, uma escrivaninha, algo mais? A chuva que goteja fora me lembra de quando mudei para São Paulo, 30 de janeiro de 2012, havia um quê melancólico na garoa daquela noite - e uma nova vida iniciando. Deixamos o apartamento, Vini feliz por conhecer minha nova casa primeiro - finalmente algo que ele fez antes da mãe! Há tanto por fazer, uma porção de coisas grandes para conquistar, mesmo a um velho melancólico, um grandessíssimo idiota, ridículo, limitado, que insiste em palpitar sobre mil assuntos, só para dizer que não entende de nada, e assim prefere a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ao fechar a porta, em minha mente toca Mogwai, Yes! I am a long way from home.

05 de setembro de 2019