sábado, 11 de fevereiro de 2023

Meu primeiro carnaval (na Avenida Faria Lima)

Digamos que carnaval nunca foi algo que me atraiu. Gosto do feriado, não reclamo, como muitos: foliões lá, eu cá, e está tudo bem. Em 2013, quando os bloquinhos ainda podiam ser tratados no diminutivo, Misson muito insistiu para que eu fosse com ela - e eu cogitei aceitar o convite, desde que fôssemos fantasiados de palhaços depressivos. Ficou para o ano seguinte, mas Misson partiu antes, e a ideia de pular carnaval acabou por aí.

Mas eis que dez anos depois, num sábado fresco e chuvoso, estou eu pronto para estrear na segunda festa mais popular do Brasil, meu primeiro carnaval de rua em São Paulo - ainda no pré-carnaval. O que mudou assim tão repentinamente? Fácil: o trabalho exige que eu vá. Dá para imaginar minha animação, ainda mais diante do que acompanhei dos bastidores e vivenciei na “organização”.

Vestido com o “abadá” da prefeitura (que alguns amigos acreditaram se tratar de fato de fantasia), desço na estação Eucaliptos e vou caminhando até a avenida Faria Lima. O caminho pelo bairro de Moema me é indigesto: assumo que regiões endinheiradas e segregadas me soam anti-cidade. Frequentei o bairro algumas vezes, acompanhando minha ex-namorada e sua família em restaurantes (pago pelo pai dela, claro, pois não tenho condições), e assumo que isso é algo que não sinto falta: diante da miséria que nos circunda (por mais que não seja visível em Moema, que é um bunker a lá Nós, do Zamiatin, assim como Perdizes e Pinheiros), gastar valores absurdos para comer me soa ofensivo - sim, aproveitei a oportunidade e comi em restaurantes caros, mas nunca tive orgulho disso, não. Assim como nesse sábado de pré-carnaval vivencio a experiência de caminhar entre foliões (mesmo que poucos) da avenida onde circulam os mais executivos mais endinheirados e descolados do Brasil. 

Parafraseando Belchior: cabelo à chuva, gente branca reunida. Me senti num Sesc: foliões brancos em sua enorme maioria, poucos negros, e todos com um estilo de vestir muito óbvio, um descolado caro; as pessoas todas muito bem comportadas, nem mesmo um grupo mais POC - que fosse POC de carnaval! Tanto que a festa correu sem nenhuma ocorrência. 

No trio elétrico, os blocos cantavam em meio a loas à prefeitura e aos patrocinadores, repetindo o slogan da cerveja ruim do trio de golpistas da 3G. Faço uma correção: negros havia: nos vendedores de cerveja, nos garis, nos seguranças, nos policiais - nos serviçais em geral, como no Sesc.

Eu poderia alegar que, por estar a trabalho, não entrei no clima da festa, mas estaria mentindo: não entrei porque há algo que está para além do meu campo de possibilidades existenciais (serei eu moderno, demasiadamente moderno, a ponto de não conseguir experienciar vivências mais comunitárias, carnaval, religião, transes, grupos homogeneizados?). Admiro quem tem efetivamente essa capacidade de festa comunitária (suspeito que a maioria apenas vive um kitsch de comunidade e transcendência), e ainda o faz com senso crítico.

Eu sigo observando à distância, mesmo próximo, percorrendo essas experiências como um estrangeiro que há muito não é turista, e está ciente e conformado da sua condição estrangeira.


11 de fevereiro de 2023


PS: No domingo trabalhei na Henrique Schaumann, em Pinheiro, basicamente a mesma coisa: ainda que com um pouco mais de negros, a maioria dos poucos que apareceram era branca.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Família [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]


"Família, família
cachorro, gato, galinha
família, família
vive junto todo dia". 

Se a desocupada leitora, o desocupado leitor esperava neste texto uma crítica à família, com citações de Engels e Gaiarsa, sinto informar que não haverá nada disso. Se, pelo contrário, imaginava que encontraria alguma palavra cristã edificante sobre a família, como teria a pastora Flordelis ou vemos nos sonhos eróticos-perversos da pastora Damares (quer dizer, espero que sejam sonhos, porque metade de sua historieta perversa de sequestro de crianças ela é acusada de já ter praticado), você errou feio, muito feio. Se imagina que uma família é como uma empresa, digo, que uma empresa é como uma família, tenho dó da sua família e sofro de inveja reversa de onde você trabalha.

“Família” é como não raro usam para se referir a mim e ao nobre colega Macedo, quando saímos pelo centro da cidade, em nosso horário de almoço, conforme comentado alhures. 

Até então achava que fosse uma forma de o atendente tentar parecer simpático ao chamar duas ou mais pessoas que chegam a um estabelecimento comercial: na ânsia de não ser minimalista com um “o que vocês querem” ou “pois não”, ao invés de um formalóide “o que os clientes/os senhores desejam”, ou os “o que os irmãos precisam”, que daria um ar muito religioso (talvez na Conde de Sarzedas caia bem), “família” soaria uma tentativa menos clichê, ainda que aparentemente muito utilizada. 

Pois estávamos eu e o nobre colega Macedo na zona, em um dos estabelecimentos comerciais onde costumo comprar chimia. A atendente se aproximou com o já habitual “posso ajudar, família?”. Ao que respondi que não, apenas olhava, mas ela insistiu em ficar ao nosso lado - depois a gente migra para as compras online e não entendem o porquê. Avisou que a geleia de determinada marca estava em promoção. Agradeci e avisei que era diabético. Ela assinalou onde estavam as sem açúcar e para ali voltei meu foco. 

Não o nobre colega Macedo, cuja atenção foi sugada pela geleia de alho com pimenta tal qual o clássico Ferdinando, o touro, diante de uma borboleta. Dono de marmitas com misturebas um tanto esdrúxulas (sem entrar no mérito se ficam boas, apenas que são plenamente incomuns), ele soltou um introspectivo “olha!”, enquanto eu me indignava com a empresa tentando me enganar, cobrando cinquenta centavos a mais numa geleia 100% fruta, mas com metade do peso. A atendente, que seguia ao meu lado, me pressionando, interveio de pronto: “essa tem açúcar” (sim! A geleia de alho com pimenta é doce!). “Ele está vendo pra ele”, respondi, ao que ela soltou um “ahh” estranho. 

E foi esse “ahh” estranho que fez eu suspeitar que o “família” que sempre ouvíamos não era um vocativo comum a todos, mas só àquelas pessoas que atendentes crêem serem uma... família. Isso se confirmou naquela mesma tarde, após ter perguntado a outros colegas e ninguém ser “família” quando saíam juntos às compras na hora do almoço.

Olhei para Macedo, meu nobre colega, e comuniquei, desolado, a descoberta: “Macedo, acham que somos um casal”. 

Até aí, tudo bem - desde que a senhora Maceda não achasse também e quisesse tirar qualquer satisfação e partir pro braço comigo. O problema é que imagem de casal as pessoas devem ter de nós: dois caras meio parecidos, com barbixas parecidas, usando roupas sempre quase iguais: com certeza acham que temos também um chaveiro com o rosto do outro escrito love e cada um tem um pingente com metade de um coração (se não for uma tatuagem na ulna ou no carpo ou em região íntima!). O problema não é acharem que somos um casal, mas que somos um casal brega! “Brega, Macedo! Um casal muito brega!”. Anos de estudo em artes pra terminar assim: confundido com alguém brega! E não adianta no lugar de pingente ou tatuagem de meio coração ser qualquer outra meia-imagem, mais significativa: seguimos bregas!

Para ajudar meu drama aqui compartilhado, Macedo não aceitou que passássemos a usar o crachá ao sair, para ao menos acharem que estávamos quase com a mesma roupa por trabalho, não por um de nós ter perguntado, no início da manhã, “amor, vamos de camisa vermelha hoje?”


23 de janeiro de 2023


PS: Este é um texto ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.