quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Descapetização total instantânea [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

 Quando mudei para o apartamento onde atualmente resido, um dos meus maiores medos era que no terreno vazio ao lado fosse construída uma igreja evangélica. Meus avós, no interior, tiveram essa sorte, e aos finais de semana é aquela cantoria e gritaria de gente tentando acordar um Deus surdo e desdenhoso - pois pelo tanto que gritam, sinal que tudo o que têm recebido do ser supremo do bem é o desdém divino. E quando você acha que terminou, ainda tem mais de meia hora de conversação animada na rua, já perto da meia-noite.

Pois não construíram a temida igreja - o terreno foi ocupado por uma torre de trinta andares, nessa arquitetura da moda em SP, em que os apartamentos parecem galinheiros apertados. Menos mal, ainda que o novo edifício faça sombra no meu, e se um dos vizinhos for voyeur, deve haver fotos minhas desnudo circulando pela internet.

De volta ao meu edifício. Ano passado mudaram os moradores do apartamento acima do meu. Há pouco mais de um mês essa vizinha fez um aniversário evangélico, com cantorias desafinadas e toda uma comemoração murcha na hora dos parabéns. Até aí, ok, cada um tem sua fé, e aniversário deve-se mesmo comemorar, mesmo que de uma forma deprimente como essa - o vizinho anterior possuía filho ainda criança e fez festas de aniversário todo mês durante a pandemia. Impliquei, mas não reclamei.

Duro que depois dessa “festa” parece que acharam que o apartamento é apropriado para a realização de cultos e sessões de exorcismo. Uma vez por semana passou a ter cantorias incrivelmente desafinadas (ainda bem que Deus é surdo, ou já tinha mandado um meteorito no meu prédio), seguidas de uma verborragia gritada por longos minutos, talvez uma hora, numa chorosa língua inventada - que deve ser a tal língua dos anjos, os quais, deduzo, devem ser seres muito rudimentares para não conseguirem articular sequer sílabas simples. Claramente todo esse festival sonoro se dedicava não a louvar Deus, mas a atazanar o todo poderoso do mal, o Diabo, que diferentemente do todo poderoso do bem, está sempre acordado e à espreita, disposto a dar a mão a quem lhe pedir, e não só aos VIPs.

Como bom vizinho, tentei não implicar, apesar da irritação - afinal, também não sei se o vizinho de baixo não usa de muita tolerância para suportar meus barulhos, em especial de Calvin, meu gato-jamanta pulador.


Pois ontem, lá estava a vizinha no seu culto-exorcista semanal, com a devida cantoria desafinada, com o chororô dos anjos, tudo em volume muito alto, quando decidiram também pular, como se fossem crianças hiperativas num jardim da infância. Ou melhor, elefantes felizes num jardim zoológico. Foi demais. Reclamei para a síndica, que se prontificou a resolver o quiproquó no ato. 

Fiquei na porta a escutar (o prédio é antigo, as escadas não possuem portas). Escutei a campainha sendo tocada - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei o bater na porta - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei, então, murros na porta e o milagre se fez: repentinamente o silêncio. Evidentemente que o Diabo fugiu tão logo viu a síndica e tudo aquilo que meus vizinhos estavam fazendo se tornava desnecessário. Fui dormir tranquilo e com a sensação de missão cumprida. Como não sou egoísta, deixo aqui a dica às igrejas evangélicas e todos aqueles preocupados com o Diabo: para uma descapetização total e instantânea, sem dores, sem gritos, sem lamúrias, chamem o síndico!


24 de outubro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cena urbana

O sinal fecha. Olho à minha direita. Ao fundo, o brutalismo da estação Armênia interrompe qualquer horizonte possível. Já a praça ao lado parece um acampamento de guerra: é um acampamento dos desvalidos, com precárias barracas improvisadas. Pessoas que me aparentam sem horizontes nesta sociedade. Garoa, mas isso não espanta dos bancos os homens que ali passam o tempo (não vi mulheres). Sobre o que será que conversam? Matam o tempo, à espera que este os matem (a morte violenta seria a outra alternativa)? A praça parece uma área proibida a quem não é um miserável, não por imposição deles, mas por medo nosso. No ponto de ônibus da praça, sete pessoas se protegem da garoa. Um homem - um dos "moradores" desse lugar de passagem - se aproxima e tenta cumprimentar algumas dessas pessoas, sem muito sucesso. Passa, então, a dançar estilo o Michael Jackson e tenta novamente cumprimentar as pessoas. Três o fazem, os demais o ignoram ou se afastam. Reparo que o homem veste uma luva preta na mão direita, dessas que se usa em restaurante. Ele pula na frente do carro e começa a dançar para nós. Dura uns trinta segundos sua apresentação. Imagino que vá pedir uma moeda depois disso, mas ele simplesmente sai e vai ao encontro dos seus companheiros de abandono. O sinal abre e a cidade volta a passar indiferente pela janela do carro.



23 de outubro de 2024