terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A confraternização cheia de mistérios [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Então é dezembro, último mês para tentar que o ano tenha sido mais que trabalhar, fazer faxina e marmita aos finais de semana (e quando falo marmita, estou sendo literal, aquela com arroz, feijão e mistura), viajar nas férias (cuidando para não gastar demais) e se queixar da vida. Mas não desanimo, vale lembrar que o Paraná Clube, em 2020, perdia de dois a zero para o Bahia de Feira de Santana até os 46 do segundo tempo e conseguiu a virada - se o Paraná consegue isso, qualquer pessoa consegue dar uma reviravolta no ano em dezembro (pedir demissão seria um exemplo, ainda que não esteja entre minhas alternativas, graças ao senhor Boleto).

Fim de ano traz, além dessa sensação de desperdício, por não ter feito quase nada, a Simone, o Roberto Carlos e agora, segundo o Brotinho, a Mariah Carrey (já não bastasse o rélouim e a bléquifraidei) e todos aqueles eventos desnecessários (os melhores), quando não desesperantes: reunião de família (a coisa boa do bolsonarismo foi acabar com esse evento de irritação e hipocrisia, como se realmente nos quiséssemos bem, quando no fundo só queremos fofocar e falar mal da vida alheia, mesmo), amigo secreto (para gastar dinheiro e ganhar algo indesejado em troca) e confraternização de fim de ano na empresa (são cerca de 1700 horas anuais em convívio com pessoas que não faço questão, por que sofreria outras quatro ou até mais?). Também é momento de rever amigos que não vimos o ano todo, em bares lotados, tentando encaixá-los numa agenda caótica por conta desses mesmos encontros.

Enfim, quase me desviava do móbil desta crônica, que é a confraternização aqui da empresa. 

Fui a uma e me arrependi - não sei onde estava com a cabeça. Decidi que nunca mais. A deste ano, menos ainda, pois terá um elemento novo: cada um paga a sua parte - e o valor é bem mais caro que um PF no centro, e eu desconfio que a comida não seja muito melhor que um por quilo daqui que se pretenda chique, que comentei alhures. Então é isso: não bastasse todo o ano junto a essa gente, ainda tem que pagar para passar um tempo a mais - e depois do expediente! 

Desculpem-me, colegas, mas um panetone caro compensa mais que sua companhia. Apesar que mesmo que fosse de graça eu não iria: ficar em casa sem fazer nada é mais interessante - e não que eu tenha uma má relação com a parte boa da equipe, digo, com boa parte da equipe.


Eu já havia avisado que não iria e dava por encerrada essa história para mim, quando o nobre colega Macedo - que também não vai porém é mais bem relacionado - me contou que havia um elemento especial, que me fez lembrar de um meme que comenta que só é a favor da escala 6x1 quem tem amante no serviço. Pois bem, a inovação maior é que será proibido celulares: eles ficarão do lado de fora. Isso mesmo: confraternização da firma virou uma reunião secreta - talvez para substituir o amigo secreto? Fosse qualquer outra festa, quero dizer, com outras pessoas, esse elemento iria me aguçar o interesse: afinal, se não é para filmar, coisas interessantes devem acontecer. Entretanto, o que me fica é a desconfiança de que algum superior, cidadão de bem e defensor da família tradicional, já esteja no modo pegação (quem sabe sem o Doutor Sabujinho as mulheres tenham baixado a guarda) e não quer que sua mulher veja o batom na cueca (ou na calcinha) em algum grupo de whatsapp - ou no Insta.

É certo que pode não haver provas materiais, contudo Macedo recordou que não tem como deixar de convidar todo o setor, por razões óbvias de criar o maior climão, fora a acusação de assédio moral. Nisso, Metodista, a pessoa que mais sabe dos subterrâneos do setor, assim como da empresa, já confirmou presença - logo ela, que nunca vai a confraternizações da firma.

Parece que só proibir celular não vai ser suficiente para manter os segredos.


03 de dezembro de 2024



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Um Esperando Godot revisitado para a periferia brasileira do século XXI

Acompanho o trabalho de Jhonny Salaberg desde a apresentação de “Buraquinhos ou o Vento é inimigo do Picumã”, no CCSP. Suas obras tem uma temática recorrente - pessoas negras e vivências periféricas, sendo ele próprio negro nascido em Guaianazes, zona Leste de São Paulo -, porém cada abordagem é muito diferente, na forma e no conteúdo: Salaberg, definitivamente, não se acomodou nem se contentou em reproduzir a fórmula que teve sucesso, e se mostra um dramaturgo versátil e sempre denso. 

Fui assistir ao seu mais recente trabalho, “Tá Pra Vencer”, que ficou em cartaz no Sesc Ipiranga, com direção de Naruna Costa e atuação de Ailton Barros, Bia Rezi, Filipe Celestino e Jennifer Souza. Nele, Salaberg, de alguma forma, faz uma releitura de "Esperando Godot", de Samuel Beckett, para o contexto de periferia de São Paulo no século XXI.


Três amigos organizam no quintal de sua casa uma festa surpresa para um quarto amigo e o esperam, enquanto fazem os últimos ajustes. Esse amigo por chegar teve uma ascensão social e parece desdenhar suas origens: fez faculdade, foi morar na região central, faz terapia, está com várias restrições alimentares - que são tratadas por frescuras -, e nem mesmo a mãe ele visita direito. A espera pelo amigo, ao invés de "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão de que a gente existe”, como em Beckett, é uma afirmação de existência, e o preparar a festa serve para relembrar que suas existências são mais que sobrevivência - ainda que em momentos breves. Ainda assim, é espera.

Entretanto, quando a campainha toca, quem chega não é o amigo aniversariante, e sim o entregador de aplicativo - que é reconhecido por ter estudado na mesma escola que os demais. É ele quem traz a mensagem, não ao anfitriões da festa, mas ao público: na descrição que fazem desse amigo, começamos a perceber que se trata de uma pessoa que, apesar de ter subido na escala social (não sabemos o quanto), o fez com um ritmo de trabalho doentio. Tão doentio quanto o do entregador - que se identifica com a descrição, mas é ignorado por ser um igual aos três amigos em cena - e nisso vemos que os personagens não avaliam com a mesma acuidade sua própria situação, como se para pobre trabalhar muito fosse obrigação e não conseguir ir além da sobrevivência, destino.

O entregador/mensageiro sai em busca de sinal para a maquininha de cartão, de pronto começa o segundo ato, alguns anos mais tarde, a mesma espera, as mesmas falas. Altera a entrega a ser feita, o amigo do trio a comentar do seu drama/desabafo laboral-existencial - o que trabalhou como motorista de Uber e fazia jornada até o limite que suportava, a mulher que queria ser útil e fracassa, a outra que aprendeu que devia fazer tudo sozinha e começa a não dar conta -, e a velocidade da cena. São quatro atos, cada vez mais acelerados - como as exigências atuais de produção, reprodução e consumo. Poderiam, quem sabe, alguma hora se queixar: "Estou cansado de respirar”, porém não há tempo para isso: mal há tempo para respirar, precisam seguir o fluxo para conseguir pagar os boletos, pôr comida no prato e seguir a vida - e de vez em quando se divertir.

O último drama laboral-existencial é do entregador/mensageiro. O que ele traz não é o aviso de que o quarto amigo deve vir, mas da situação de todos os cinco daquela cena - presentes e ausente. É quando finalmente o amigo ausente liga, mas diante do esgotamento dos demais, é o entregador quem atende e explica que entende sua ausência - afinal, também ele está a trabalhar no dia de seu aniversário, impossibilitado de comemorar com seus. Impossibilitado de comemorar, assim como de viver uma vida plena, por conta das exigências econômicas de sobrevivência. Como os demais presentes ali (na plateia também?).

Aqui chegamos ao título da peça. Até o primeiro desabafo - do ex-motorista de Uber, corroborado pelo entregador -, podemos interpretar que todos ali estão à espera do momento em que o trabalho árduo será recompensado, em que vencerão, finalmente - como o amigo teria vencido. É algo que imaginam estar sempre para acontecer, nas precariedades das relações trabalhistas por aplicativo, dos bicos ou freelas, das vendas porta a porta e no discurso do empreendedorismo (isso que a peça nem entra na questão dos jogos de azar pela internet). O mais “realista” nessa relação com o trabalho é o ex-uber, que acaba por voltar ao trabalho CLT, aceitando que é melhor saber o quanto vai ganhar, ainda que não muito, do que arriscar ganhar menos (ou mais) como empreendedor de aplicativo.

Um segundo significado de “Tá pra vencer”, entretanto, é que o que estamos vendo está próximo da data de validade. Aqueles personagens à beira da estafa - física, psicológica e emocional - estão muito próximos do vencimento, de serem vencidos pelas exigências inumanas de um sistema opressor no seu discurso de liberdade. Ou, numa leitura mais otimista, que nos lapsos de consciência que os quatro personagens mostram ao falar de seus dramas laborais-existenciais, o que pode estar próximo do vencimento seja esse sistema - até por uma questão de sobrevivência das pessoas que o fazem funcionar.

“Tá pra vencer”, como as demais peças de Saleberg, é feita de sutilezas e brutalidades ao mesmo tempo. Uma peça necessária para estes tempos - seja para aqueles que vivem na bolha classe média (frequentadora do Sesc), seja para pessoas periféricas que se vêem plenamente representados naquelas situações. E difícil é não sairmos todos com ao menos uma mesma certeza comum: como está, não dá para continuar.


20 de novembro de 2024