sexta-feira, 31 de julho de 2009

CQC e a lei da internet

Concordo com a opinião de muitos amigos, de que o programa CQC, apresentado por Marcelo Tas na tevê Bandeirantes, é um bom humorístico e que, apesar de bastante oscilante, pode ser considerado inteligente para os padrões televisivos em voga nos últimos 60 anos. E justamente por ser inteligente, merece maior atenção.

No programa de 27 de julho o CQC fez mais uma reportagem sobre pedofilia na rede. Como iscas, um rapaz bombadinho de 21 anos e uma moça de 24 – com um belo corpo de 24! – dizendo terem 15. Em um dos casos, a moça ligou para o “pedófilo” e marcou um encontro.

Dois amigos formados em direito me apontaram uma série de problemas nesse “furo”. Primeiro, anterior ao direito: pedofilia seria o fetiche por crianças. Mas as iscas não pareciam nem um pouco com crianças impúberes e ingênuas. Certo, pela idade dita eram menores. Ocorre, porém, que sendo consentida, a relação com alguém com mais de 15 anos não é necessariamente crime. Ademais, foi a garota quem ligou ao homem, sem que ele prometesse qualquer tipo de recompensa, nem mesmo um balão.

A curiosa coincidência: é a segunda matéria do CQC sobre o assunto. Justo quando tramita no legislativo o projeto de lei do senador tucano Eduardo Azeredo, o qual, sob a justificativa de combate à pedofilia, pretende acabar com a chamada “neutralidade da rede”, deixando a porta aberta para o controle do Estado e das empresas sobre o que é acessado e trocado entre os usuários. Há mais de dez anos, Luther Blissett já cantava que pedofilia era o pretexto favorito para caça às bruxas na internet. Não sei se o Marcelo Tas conhece a obra de Blissett – pela fama deste no cybermundo, penso que sim –, de qualquer forma, ele sabe o que está fazendo – inclusive naquilo que oculta.

O CQC talvez seja um programa mais vivo do que imaginam seus espectadores.


Campinas, 31 de julho de 2009

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

O dia do amigo

Descobri, graças à publicidade de cerveja, que dia 20 de julho é dia do amigo. Visitei a página da Skol, e diz lá que a data foi criada em 1969. Talvez fosse coisa do momento, criar datas e datas comemorativas, na falta de uma vida que valesse a pena por ela mesma. Não que hoje o mundo esteja muito melhor, as pessoas mais felizes, mas agora as homenagens tem servido mais para justificar a atividade parlamentar do que para maquiar nossas tristezas.

Em 1966, por exemplo, Stanislaw Ponte-Preta se divertia com a instituição do dia do pobre e do dia da avó. Antes, a moda eram as datas históricas. Hoje, no quesito novas datas, me parece, têm tido visibilidade as políticas, institucionalizadas, como o dia da consciência negra; ou em vias de, como o dia do orgulho gay; ou não, como o abril vermelho.

De qualquer forma, é sintomático a publicidade sair à caça de uma data comemorativa, se deparar com esse tal de dia do amigo, e a forma que tenta se apropriar dela. Primeiro, por ser puxado por uma campanha publicitária: o que antes era da esfera política ou da sociedade civil, hoje é do mercado. O dia do amigo, se existe há 40 anos, foi só quando se vislumbrou possibilidades de lucro nele que mereceu “comemorações”. Segundo, porque esse tipo de comemoração é anacrônica: hoje datas comemorativas ou são tradicionais (tem-se tentado importar algumas tradições, por sinal), ou marcam um dia de protesto, de reivindicação de direitos, de reclamar aquilo que não se tem (talvez o dia do amigo devesse se enquadrar nesse tipo de data). Por fim, é providencial que se comemore apenas o amigo, e não a amizade. Antes de tudo, por centrar no indivíduo e não na relação entre as pessoas; mas também por permitir que a data seja comemorada, pela agitadora oficial, com uma disputa entre diversos grupos de amigos por um prêmio qualquer. Ou seja: com meus amigos eu comemoro, com os outros é guerra. Quase como briga de torcidas, mas patrocinado por cerveja. Ops! Quase como briga de torcidas, até mesmo no estímulo e no patrocínio da cerveja.

PS: Eu tinha pensado em falar da estupidez das propagandas. Por enquanto resolvi não chover no molhado. Penso que o texto “Roubada não desce redondo”, do bailarino Alysson Amancio, dá conta do recado.


Pato Branco, 24 de julho de 2009

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sede de sangue

Há dificuldade por parte de muitos em aceitar minha posição: não acredito em nada do caso Nardoni, salvo que uma menina caiu do prédio. Não é nem para polemizar. Inclusive, quando alguém vem tentar me convencer da versão sacramentada pela mídia, dando os mais ínfimos detalhes do suposto assassinato que ninguém viu, trato de cortar logo a conversa: para mim, a verdade do caso está perdida, como perdidos estão a original da taça Jules Rimet ou o tigre-dente-de-sabre.

Se por certo tempo o caso Nardoni motivou homéricas e intermináveis discussões sobre todas as convergências possíveis em opiniões exatamente iguais, hoje muitos vão precisar espremer o cérebro para tentar lembrar do que se trata: a memória é curta sob o espetáculo, dura o tempo que dura o assunto na tevê.

Nardoni, portanto, já é passado, pode ser esquecida. Mas a sede de sangue, essa segue latente. Não falo da sede de pais ensandecidos assassinos de seres angelicais, mas dos espectadores ansiosos por uma fogueira, para terem a aparência de vida na sua moribunda e deprimente existência. E a temporada de caça a novos monstros está aberta.

No Rio de Janeiro houve um ensaio por estes dias. O roteiro não podia ser mais original: uma criança cai do prédio. Por sorte, ou melhor, por menos azar, houve como comprovar que não foram os pais quem a defenestraram. Não serão condenados à fogueira como o casal do ano passado. Mas o linchamento moral começou assim mesmo, com a prisão deles e sua exposição ao grande público, nesse momento de grande dor para qualquer pai ou mãe. A acusação: abandono de incapaz. Como se fosse obrigação dos pais estarem 24 horas por dia, sete dias por semana amarrados aos filhos; como se houvesse lei proibindo qualquer fatalidade, criminalizando os atingidos pelos infortúnios do destino.

E parece que essa será mesmo a tônica até que surja o próximo caso a saciar a sede de sangue da imprensa e dessas pessoas carentes de circo e de assunto para o almoço de domingo.

Os pais que se cuidem.


Campinas, 17 de julho de 2009

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sexta-feira, 10 de julho de 2009

A burocratização da esfera política

Descobri esta semana que sou professor universitário. Fiquei curioso em saber se de universidade pública ou particular: isso, porém, não estava explicitado. Explico. Achei um texto meu, escrito pouco antes do início da greve deste ano, publicado em um blogue de alguém que desconheço. O dono do blogue resolveu esquecer de pôr o título, “Mediocridade e conservadorismo na universidade brasileira”, deixando apenas o subtítulo “O movimento estudantil”. Compreensível, visto o teor conservador de direita/reacionário do seu autor (que, ao que tudo indica, não entendeu o que eu quis dizer). Pelo menos citou o autor (por ser copyleft, deveria ter citado também que tirara da página do CMI).

O divertido foi que, vendo que o texto era escrito por alguém de dentro da universidade e com alguma experiência nesse ambiente, resolveu me taxar de professor universitário. Logo eu, que para Unicamp ainda sou aluninho de graduação. E não adiantou eu avisá-lo dos “equívocos”: meu texto segue sem o título, e eu sigo com mais títulos do que tenho – aqueles pressupostos aos professores universitários.

O ponto que chama a atenção nessa história é a necessidade de aval burocrático para que o que eu disse seja digno de consideração. Oito anos de graduação, participação no sindicalismo estudantil, em projetos de educação popular e outros não me autorizam a dizer nada, se eu não apresentar antes as credenciais. Que tais exigências burocráticas existam no âmbito do Estado é até justificável, visto que se trata de selecionar uma burocracia bem capacitada e adepta do burocratismo para garantir sua perpetuação. Preocupante é quando tal burocratização atinge toda a esfera política. Para ter direito à voz é preciso antes mostrar os papéis timbrados que dizem que você tem tal direito. Carteira de identidade não vale. Só com isso, quem ousa ter voz não passa de um defensor da ignorância. E a própria direita, sempre tão crítica da burocracia estatal, é a primeira a legitimar e estimular o papel do Estado na divisão social de saberes.

Os “especialistas” que toda reportagem na tv mostra que o digam.

Campinas, 10 de julho de 2009
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sexta-feira, 3 de julho de 2009

A força faz a união

Do governo federal, redução (ainda que temporária) de impostos e uma linha de crédito de R$ 4 bi. Do estadual, mais uma linha de crédito de R$ 4 bi, e R$ 1,3 bi para a ampliação da marginal Tietê. Agora é a vez do governo municipal dar sua contribuição, com a proibição de circulação de ônibus fretados em parte da cidade de São Paulo. Se os três níveis de poder conseguissem agir tão sincronizadamente para a melhoria da educação, da saúde pública, da segurança, para o combate à corrupção, à miséria e estaríamos sem dúvida em um país muito melhor. Mas é o transporte individual que consegue unir forças dessa forma.
A democracia brasileira em breve poderá ir para além do “um homem, um voto”, instituirá o “um homem, um carro”. É quando todos terão a alforria do transporte público, livres para irem onde bem entenderem com seus potentes carros. A 5 km/h, se tanto, mais vagarosos que os resistentes pedestres que insistem em ter pernas e a ocupar calçadas com elas, impedindo a sua transformação em ruas, o que auxiliaria no fluxo de veículos.
A medida de proibir os fretados, diz o secretário de transporte, Alexandre Moraes, tirará de circulação 1300 ônibus, afetando 110 mil pessoas. Dessas, estima, 48 mil irão para o transporte público (com aumento de até 46% nos seus custos com transporte). Suponhamos que essa santa ingenuidade seja verdadeira, resta a dúvida: e as outras 62 mil pessoas? Adotarão bicicletas, skate, patinete? Ou porão 25 mil carros a mais nas ruas (e olha que estou dobrando a taxa de ocupação nesses carros)?
Para além do questionamento dos investimentos e da celeridade nas melhorias do transporte público, ainda mais na caótica São Paulo, outras questões devem ser levantadas: o papel do carro no imaginário nacional: ter carro é ter sucesso, pedestre é pobre e perdedor; e a centralidade da indústria automobilística na geração de empregos.
Enquanto não começarmos a mudar isso, seguiremos comprando carro para cada vez mais disputar corrida com pedestres. E ainda com o risco de perder.

Campinas, 03 de julho de 2009
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

Comentário sobre o artigo "O espetáculo da 'mídia', para a 'mídia' – e pelos contestadores", de Eugênio Bucci.

Caro Bucci,

Gostei muito de seu texto, mas temi, com seu entusiasmo inicial por Debord, que não fizesse certas ressalvas. O fez, felizmente, no final do texto. Penso, porém, que foi um pouco exagerada, visto que não foi feita uma distinção que julgo importante no autor. Uma coisa é a organização por ele proposta para a realização da revolução, algo, como você disse, numa linha bastante leninista. Outra coisa é o projeto revolucionário para um pós-revolução, o que fazer da vida quotidiana quando o capitalismo ruir e os sujeitos serem, finalmente, autônomos – a realização do projeto Iluminista, em suma. Falo em projeto, mas não tenho ainda claro em que medida Debord o desenvolve ou o apresenta n'A sociedade do espetáculo; se como esboço, como uma direção, ou se seria possível, numa leitura mais apurada, ver esse projeto já desenvolvido. Mas que há uma proposta para uma vida “comunista”, em alguma medida posta em prática pelos situs, ainda que sob regime capitalista, isso me parece bastante evidente. Cito o final do capítulo VI, Tese 163: “O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida história generalizada, é o projeto de um enfraquecimento da medida social do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. E o programa de uma realização total, imersa no tempo, do comunismo que suprime 'tudo o que existe de independente dos indivíduos'”. Outro situacionista, Raoul Vaneigem, traz mais forte a idéia do reforço da subjetividade numa futura sociedade comunista. Traz também, por outro lado, mais forte a idéia de que o paredão é parte do processo revolucionário. Ou seja, são dois aspectos da teoria revolucionária de Debord e dos situacionistas, para além do diagnóstico, que não podem ser tidos como uma coisa só e descartados: uma parte dessa teoria é muito valiosa, para se pensar o quotidiano nosso, que seja.

Sou da Unicamp e da PUC-SP e não da USP, então não sei quantos e quais são os grupelhos auto-proclamados revolucionários que se embasam em Debord. Conheço um deles, que tem seus tentáculos na Unicamp, o Movimento Negação da Negação. Como disse certa feita um amigo meu: “um bando de publicitários leninistas”. Irônico, mas com alguma verdade: pegam dos situacionistas a estética e a parte de organização revolucionária. Consomem a imagem do revolucionário. Abandonam o diagnóstico e, no fim, confirmam o que Debord já alertava na Tese 203: “Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sócio-lógico-política [sic] para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular”.

Sei que você, quando se refere à espetacularização da greve 2009, não se refere somente a esses grupelhos, mas a todo o movimento, que está totalmente submerso na linguagem do espetáculo, o que significa que se limitou na sua crítica e, conseqüentemente, nas suas ações/intervenções. Como você disse, a greve se tornou uma imagem. Porém um aspecto que você toca por alto mais no fim do texto e que talvez seja parte das mais importantes desse processo de adequação passiva à linguagem espetacular: o espetáculo não é somente a imagem, ele é a representação do vivido. Os grevistas estavam ali representando um papel para o espetáculo, para poderem ser consumidos como imagens e ter sua existência autenticada pelo espetáculo. Daqui faço uma mistura de Debord com Jacques Rancière, e seu livro O desentendimento. Na leitura que faço dessa obra (li sem me deter muito, por isso não sei em que me medida me mantenho fiel ao pensamento do autor no que vou dizer), política merece essa denominação quando consegue desestabilizar a ordem política reinante, o status quo. É quando os excluídos – indivíduos, grupos, propostas, minorias – arrombam a porta e adentram. Política é quando o debate se amplia na obrigatoriedade de inclusão do Outro. A não-política, ou uma política apenas institucional, de fachada, seria quando todos os movimentos dentro da chamada arena política são previsíveis, ou ao menos não vão além de um campo delimitado (Foucault comenta algo próximo quando fala do conceito de Parrhesía). É o que aconteceu com tais grevistas: cumpriram um papel bastante delimitado, fizeram o que era esperado deles, seja nas ações, seja, principalmente, nas reivindicações. “Fim da Univesp”, “aumento de 16%”, “educação de qualidade”. As reivindicações são algumas justas, outras me parecem conservadoras. Não que se deva esperar que a universidade, uma instituição oficial dentro do aparelho do Estado, seja revolucionária. Mas me parece que no Brasil, seguindo a distribuição dos papéis entre as elites, a universidade não chega sequer a ser progressista: não inova na sua relação com a sociedade, não consegue estabelecer internamente um ambiente minimamente inovador (com o perdão da repetição do termo), não há na academia diálogo (que em grego só existe na voz média-reflexiva, não na ativa), o que há são debates: cada um põe sua opinião e no fim saem todos como entraram; não se questiona os funcionários ficarem reduzidos a meia dúzia de funções simiescas, as 40 horas de trabalho semanais (se no fim do século XIX 40 horas já garantiam o lucro do patrão, com a evolução tecnológica desde então é evidente que há tempo excesso no serviço), a tortuosidade da burocracia. Pior, não há questionamento sério à hierarquia da universidade. Questiona-se a forma de escolha do reitor, mas não a forma como poder é estruturado dentro da Academia, numa ordem muito forte, rígida: isso é aceito assustadoramente como algo natural.

Seguindo ainda por essa linha, não por acaso se fala em “atores políticos”, e não em “personagens políticos”: estão todos encenando aquilo que foi determinado para seus papéis: os conservadores de esquerda com greves esvaziadas, em que piquetes se tornam elemento vital e não apenas umas das ferramentas; os conservadores de direita e reacionários com flash-mobs, factóides, pedidos de ordem, da PM no campus. E, no fundo, não se soube de discussões por parte desses grupos de questões mais seminais. Como a que o professor Safatle colocou em artigo na Folha de São Paulo: quando se discute se deveria ou não chamar a PM, sinal de que há tempos a capacidade de diálogo na universidade já estava minada. E é um sintoma do papel que a universidade se arrola: um lugar técnico, de conversa, conchavos entre iguais e não de diálogo entre diferentes, o qual pode resultar em um embate de idéias, de teorias (mesmo as das exatas): pois o choque aberto com o diferente implica na possibilidade de irrupção de algo novo, esse algo novo pode gerar uma ação política – essa política defendida por Rancière –, a qual não se faz a menor idéia de onde terminará, justo por sair do script.


Um abraço.

Campinas, 02 de julho de 2009

Texto original:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=543JDB002