terça-feira, 12 de novembro de 2024

Um bairro feito em coletividade

Este final de semana fiz um passeio pelas ruas do Bixiga, na região central da capital. Apresentado como afroturismo, ele é organizado pelo Coletivo Negros do Bixiga, idealizador também do projeto que resultou no documentário homônimo lançado este ano (@negrosdobixiga).

O roteiro não é curto, tampouco longo, porém exige tempo para a imersão pelo bairro proposta por Wellinton Souza, nosso guia e integrante do Coletivo, e poder perceber as sutilezas da relações que se tecem nesse território, um local de resistência em meio a disputas contra a população que o ocupa - em boa medida formada por trabalhadores e estratos mais desfavorecidos da sociedade - vários que moram nos cortiços ainda muito presentes no bairro.

Passando por lugares significativos, conhecidos ou nem tanto, como a Rua Rocha, o sítio arqueológico Saracura Vai-Vai, a Casa do Mestre Ananias, apresenta também alguns recantos absolutamente inesperados, como o Viveiro Comunitário do Bixiga Denuzia Pedreira Bastos, em um pequeno terreno. O roteiro fala também de personalidades negras do bairro (e algumas italianas), como o artista e idealizador do Museu Afro, Emanoel Araújo, os sambistas Geraldo Filme o Pato N’Água (morto pelo esquadrão da morte, em 1968), e outros, além de proporcionar conversas com pessoas que fazem o dia-a-dia do bairro - sem falar dos encontros fortuitos entre o Wellinton e outros moradores, mostrando na prática uma relação muito diferente da que encontro nos bairros de classe média onde residi e resido. Um roteiro que realmente vale a pena fazer!

O que talvez sintetize a atmosfera do bairro seja uma grafiti pelo qual passamos, e que não teve qualquer menção. Um grafiti comum, sem destaque, longe dos painéis com técnica de grafitti que tem ganhado o estatuto de arte e começam a colorir a cidade nas paredes dos prédios - depois de anos sendo reprimidas nos muros.

Imitando a lógica dos totens espalhados por todos os lados de “Eu amo o lugar” - ou o evento, o time, etc -, tal grafiti tinha uma pequena e significativa diferença: ao invés de “EU [coração] BIXIGA”, ele trazia a primeira pessoa do plural: “NÓS [corações] BIXIGA”. Contra a lógica do individualismo, o Bixiga enquanto resistência se afirma também como coletividade, no plural das pluralidades que o habitam - com as bençãos de Tia Eliza.



12 de novembro de 2024


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Desfazendo-me

Calendários de bolso de 1975 e 1996, uma nota fiscal de quando morei com minha mãe, após o falecimento de meu pai; programas de orquestra, revistas de teatro, quatro anos de minhas crônicas encadernadas; um recorte de jornal de 1972, outro da greve dos bancários de 1990, uma foto do Motorhead autografada, bilhete do meu irmão avisando que foi na casa de um amigo, declaração de imposto de renda de 1990 de meus pais, carteirinha da minha mãe da biblioteca pública de Pato Branco e a minha de meio passe em Ribeirão Preto, recorte de 1992 com dicas de investimento, cartões telefônicos, um cartão de visitas com a sutil indireta “Disfarce... e saia de fininho que você aqui não está agradando”, caderno da minha mãe de 1968, DVD sobre Jango, do filme Pachamama, do Erik Rocha, de Sonhos, do Kurosawa, do NME Aniversário (no qual achei um texto meu que não lembrava); muitos CDs de blues, CD da Swan, da Tresbella Big Doce Band, do curso de alemão que não fiz; planta da reforma da casa de Pato, feita em 2021; nota fiscal da compra da Biblioteca Científica Live, em 1971; revistas dos GPs de Fórmula 1 a que assisti, guias de viagens que nunca fiz, mapas turísticos de cidades que visitei, bilhetes de metrôs de Lisboa e Barcelona, a carta com meu rendimento no vestibular da Fuvest, quando fui aprovado em psicologia; a revista dos 500 GPs e um capa de filme fotográfico com propaganda da Fórmula 1, de 1988; livro dos recordes de 1996, partituras - algumas que acalentaram meus dias de fossa da adolescência, outras que nunca toquei -, um guia turístico de Curitiba, de 1991; “livros” que escrevi para a matéria de português quando tinha dez, onze anos; vinte anos de agendas, bottons da Del-O-Max e do Pumas, um mini transmissor FM, instruções para uma prova de datilografia, cadernos e cadernetas variados - escritos, desenhados e totalmente em branco -, livros, muitos livros (de etiqueta, de despertar interesse científico em crianças, da coleção Os Pensadores); um gibi do Cascão, alguns do Recruta Zero; o primeiro livro que eu lembro de ter querido comprar - “História dos povos indígenas - 500 anos de luta no Brasil -, cocar, arco, flechas e flauta peruana de enfeites; panfletos do show da Cássia Eller, Almanaque Abril de 1971 (com um marcador na págida do “Calendários passados e futuros”, cujo futuro termina em 1999), camisetas da época do ensino fundamental que foram promovidos a panos de tirar pó e hoje são fiapos. Me desfaço. Abro caixas aleatórias - não são os espaços reservados para lembranças - e delas saem memórias e mais memórias; minhas, dos meus pais, da burocracia, de consumo. Nesses pedaços de papel e quinquilharias, imagino o que meus pais não viveram, no que não pensavam para terem separado aquilo; lembro dos muitos que fui e de tudo o que fracassei - felizmente - para me tornar quem sou. Não são pedaços apenas do passado, mas do futuro do pretérito. Me perco em relembrar e imaginar possibilidades. “Eu sou a continuação de um sonho”, fala a atriz na peça Reset Brasil, a que fui assistir hoje. Sou a continuação dos sonhos de meus pais, meu avós, de meus sonhos de antigamente. Mas sou também os sonhos abandonados pelo caminho - até para dar espaço a novos sonhos. E sejam individuais, sejam coletivos, eu sigo sonhando - e vivendo. 


28 de outubro de 2024