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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Entre ruínas [Viagem à Guatemala]

Reconheço uma grande atração por ruínas. Não sei explicar bem o porquê. Acho que é poder presenciar esse gládio entre o ser humano e o tempo, entre o esquecimento e a obra humana. Pois hoje descobri que ruínas também podem ser uma pugna entre a natureza e a nossa ambição de imortalidade.

A primeira parada do dia foi em Iximché, ruínas de uma cidade maia do pós-clássico, fundada em 1470 e abandonada menos de cem anos depois, após ser conquistada pelos espanhóis - foi a primeira capital da Guatemala, por breve tempo.

A cidade é cercada por escarpa em três de seus lados, e era no baixio dessa montanha que viviam as pessoas “normais”, em casas simples das quais não resta nada. Me chama a atenção o poder da ideologia nesse caso: essas pessoas atendiam aos interesses do rei, dos sacerdotes e da nobreza, sem ganhar objetivamente nada em troca - diferentemente da Europa, onde se oferecia proteção física por servir ao senhor feudal, por exemplo.

De parte das construções, restam apenas as plataformas sobre as quais se erguiam templos, casas e palácios. Outra parte foi tomada pela natureza. Ainda assim, o ser humano insiste, e no final do sítio arqueológico, no último templo da última praça, presencio dois rituais maias em honra aos antepassados - o que já era previsível, visto o cheiro de fumaça que impregnava todo o sítio (havia um terceiro, que me pareceu para turista, visto que eera apenas uma indígena cercada de gente branca) .

A segunda parada foi em La Antigua, por muito tempo a capital da Capitania da Guatemala, e patrimônio histórico da humanidade pela Unesco. A cidade está engessada - segundo William, não se pode construir ou derrubar nada -, mas isso não significa que seja uma cidade morta, numa vida artificial para turistas (como foi minha sensação com a cidade velha de Cartagena de Índias, na Colômbia [http://bit.ly/cG230301]): pessoas moram ali, há uma vida que se desenrola para além do turismo.

Das trinta e seis igrejas que haviam na cidade, restam dezesseis - todas restauradas ou em processo de restauração. Contudo, se as ruínas de Iximché foram tomadas pela natureza depois do abandono, aqui a natureza primeiro transformou parte da cidade em ruínas, por conta dos terremotos, até ela ser abandonada por ordem real - em um processo que levou dez anos - , para voltar a ser ocupada anos depois: “se querem ver as obras que haviam nestas paredes, visitem as igrejas da capital”, no diz William.

Creio que as três construções de destaque da cidade são a igreja de La Merced, uma igreja do barroco antiguenho, de proporções estranhas, uma vez que é baixa e bastante larga; o Arco de Santa Catarina, uma ponte por onde religiosas podiam cruzar a rua sem serem vistas, e com isso sem descumprir seu voto de reclusão, e a catedral de San José.

Desta última, o nártex (o hall de entrada da igreja) foi reconstruído e transformado na nave igreja. É modesta, ainda mais diante do tamanho de suas ruínas, com quase cem metros de comprimento. Nela, me salta aos olhos um Cristo negro. Seria sua cor original?! Nos trabalhos de restauro, descobriu-se que era branco e foi enegrecendo com o tempo. Porém, por conta da fé viva que em torno dele, decidiram mantê-lo tal qual está hoje: uma vez por ano fiéis de várias localidades - inclusive Oaxaca, no México - vêm até aqui por conta dele: “o Deus que quis ser moreno como nós”. 

Na parte de ruínas da catedral, como em outras ruínas daqui que visitei, muitas colunas e paredes reconstruídas - segundo William, ainda é restauro se for menos de 50% do edifício reconstruído. Certamente deve haver questões estruturais que justificam muitas dessas intervenções, outras, como em paredes laterais, me parecem um desejo de retomar a antiga forma, de disfarçar a obra da natureza e do tempo - e acabam por mostrar nossa pequenez diante de nossos sonhos de grandiosidade.


02 de dezembro de 2025










segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Miyazaki na Mesoamérica [Viagem à Guatemala]

O segundo dia amanhece claro e tomo meu café da manhã diante da imponência dos 1.500 metros dos vulcões Tolimán e Atitlán. O roteiro é tomar uma lancha e visitar duas localidades que beiram o lago Atitlán.

A primeira cidade foi San Juan La Laguna. Visitamos uma cafeteria que produz o próprio café, uma loja de chocolate que produz o próprio chocolate - mas não o próprio cacau, que ali não é região cacaueira -, e uma cooperativa de tecelãs que eventualmente produz os próprios fios de algodão - e o tingem artesanalmente, a partir de plantas.

Em Santiago Atitlán (e sempre que ouço esse santo me lembro do curioso caso que é Tiago e Jacob terem a mesma origem), visitamos uma igreja de 1547, com o teto destruído por algum dos terremotos que atingiram a região (substituído por telhas galvanizadas) e cujo átrio defronte, amplo e desocupado, me remeteu às paisagens de De Chirico (e quem me conhece sabe o quanto sou fã desse pintor), porém com o horizonte terminando não no infinito, mas no vulcão Tolimán.

As ruas de Santiago são ruas perfumadas por diversos cheiros - tortillas sendo assadas, temperos, frutas, churrasco -, e as mulheres, como em Chichicastenango, via de regra, estão com trajes típicos - e, novamente, não me parece que seja para performar para o turismo, pois não me parece que milho, sapoti ou produtos de limpeza tenham muito apelo junto aos turistas. 

A outra parada que fizemos na cidade fomos de tuc tuc - uma espécie de moto táxi de três rodas - a uma favela, onde adentramos por uma viela até chegar a uma casa particular. Nessa casa estava a imagem do Gran Abuelo, Rilaj Mam, um santo popular, de origem maia, protetor local, que a cada ano ganha uma máscara nova e fica na casa de um dos membros da confraria. É um dos poucos aspectos em que notei homens tomando a dianteira na manutenção da tradição - e isso dentro de uma aura de grande mistério e círculo fechado. Em geral, o que percebo é que na insistência de aspectos culturais maias no quotidiano são as mulheres que surgem como as principais guardiãs.

Na volta, na lancha, a tarde já caindo, e a mesma neblina solar vai tomando conta do lago. Me sinto numa animação de Miyazaki adaptada para a mesoamérica: os vulcões Tolimán, Atitlán e San Pedro no lugar do monte Fuji, santos populares ocultos em máscaras misteriosas no lugar de grous e mulheres com Huipil e Faja, no lugar de quimono. E uma mesma poesia realisticamente irreal no ar.


01 de dezembro de 2025

domingo, 30 de novembro de 2025

Neblina feita de sol [Viagem à Guatemala]

Hoje, sim, começa minha viagem! O itinerário do pacote, digo. Ontem foi apenas chegada, uma sucessão de pequenos infortúnios (que ganharam outra dimensão por conta do cansaço e da expectativa) e uma visita ao interessante Museo Nacional de Arqueología y Etnografía - e o que ali vi acho que vai se tornar mais interessante conforme o avançar da viagem.

William, o guia, chega ao hotel com a pontualidade do carteiro de De volta para o futuro (não lembro se o 2 ou o 3). No carro, meus companheiros de viagem: um geólogo chileno e dois casais espanhóis. Aparentemente, somente eu, William e Wilson, o motorista, ainda trabalhamos - mas eu estou de férias.

No trajeto, William mostra grandes dotes para manter uma conversação: pulando de assunto aleatório em assunto aleatório, de origem do café à produção industrial brasileira, sem deixar de saber sobre a guerra civil guatemalteca e detalhes aprofudados sobre os maias, e passar pela problematização do termo “povos originários”.

Noto que fala com propriedade ou com dose de cuidado, não parecem dados simplesmente decorados ou erudição oca. Descubro, depois que é historiador, já participou de escavações arqueológicas e sabe um básico de hieróglifos maias. Além de ser guia turístico. Mas ele conta que queria mesmo era ser engenheiro agrônomo.

A primeira parada é em Chichicastenango, em El Quiché, cidade média, conforme William. Quarenta mil habitantes, sendo uns cinco mil na cidade. Isso, 40 mil. Meia Pato Branco. Um cidade média para os padrões guatemaltecos, portanto. Sigamos. A grande atração que fomos ver, a feira de domingo (e quintas) é um tanto cheia e caótica: numa quadra de esportes ocorre a feira de frutas e legumes, ao redor, em corredores estreitos, se organiza uma feira de itens diversos - para turistas e para locais -, quase uma Liberdade de domingo - o que muito me angustia.

Uma primeira coisa que chama a atenção e o guia reforça: as mulheres usam vestes parecidas (mas não iguais!), o mesmo traje típico, de origens maia, vermelho escuro - e, não, não é performance para turista tirar foto. Noto que uma ou outra usa traje azul. William explica: são de outra localidade, por isso a mudança de cores.

A feira ocorre entre duas construções religiosas do século XVI: uma a leste, com portas para oeste, portanto, a igreja de Santo Tomás; a outra, a oeste, com porta para o leste, a capela do Calvário, que tem missa apenas uma vez ao ano, dia primeiro de novembro. Ambas estão, separadas por pouco mais de cem metros e foram construídas sobre templos maias - por isso a precisão dos pontos cardeais.

Fora delas, muita, mas muita fumaça. Por obra do sincretismo religioso local, queima-se muita coisa em oferenda aos antepassados, e a fumaça é a forma de conduzir tais elementos ao mundo superior: velas, incensos, rum, cacao... a queima é feita do lado de fora porque a igreja tenta limitar até onde pode ir esse sincretismo, ao menos dentro de suas portas. Tenta, porque a fumaça adentra o templo de qualquer modo, fazendo dos afrescos nas paredes quase borras negras. Achei curioso que no centro das naves há elevações para se queimar velas - uma tentativa de “domesticar” os hábitos maias, substituindo toda a riqueza de oferendas e cheiros pela pasmaceira das velas? Na capela do Calvário, uma mulher reza sobre a imagem de Cristo como se fosse o próprio velório acontecendo. No convento anexo à igreja de Santo Tomás, uma placa indica que ali, no início do século XVIII, foi encontrado e traduzido o Popol Vuh, livro da cosmologia maia.

Nossa segunda parada em um taller de maíz. Uma casa simples, típica, paredes de adobe, pintadas, chão de terra batida e, o que me chamou a atenção, colunas com capitéis simples. Vimos como se mói o milho manualmente, conforme técnica ancestral, para depois preparar as tortillas, alimento típico, com uso equivalente ao pão.

Ali também fomos apresentados aos quatro tipos de milho cultivados e seus significados na cultura maia: o branco, que simboliza o ar, a pureza, os acestrais; o amarelo, que simboliza a luz, a vida; o preto, que simboliza a noite, a fertilidade; e o vermelho, que simboliza o sangue e o fogo. Por conta dessa represetanção, o milho vermelho é consumido apenas em situações rituais, sendo mais dedicado, por isso, à alimentação animal. Achei curioso, esses usos extremos do mesmo alimento: do mais elevado, o uso ritual, ao mais baixo, o uso animal, como se fosse um ciclo que se fechasse, com o ser humano no meio. 

Seguimos viagem até o lago Atitlán. Um lago vulcânico, com certa de 130 km² e 340 metros de profundidade, a 1.500 metros de altitude. Surgido de uma enorme erupção vulcânica, há 100 milhões de anos, ele hoje é circundado por alguns vulcões - há tempos inativos.

Chegamos perto do fim da tarde, uma estranha neblina cobria o lago, uma neblina que parecia feita de sol.

A visita ao lago ficaria para o dia seguinte.


30 de novembro de 2025

sábado, 29 de novembro de 2025

Merda! [Viagem à Guatemala]

Merda! No teatro de fala assim para desejar que o que é para dar errado, dê antes de entrar no palco. Merda! Eu devia ter dito isso antes de sair de casa para minha viagem de férias, não depois. 

Saí mais cedo com pegar o trem para o aeroporto de Guarulhos, justo para, na eventualidade de qualquer merda acontecer, ter tempo de resolvê-la. E assim foi. Já estava na Luz quando me dei conta de que havia esquecido a doleira. Um detalhe menor, sem dúvida, se eu não estivesse esquecido dentro os dólares que comprara para a viagem. Merda!

Volto para casa, pego a doleira (com os dólares) e vou para o aeroporto de aplicativo, mesmo. Isso dói para um mão de vaca, mas é a vida, às vezes custa um pouco mais. Ao menos minha dose de azar de viagem eu dava por resolvida. 

Ingênuo...

Na escala no Panamá, sou obrigado a despachar minha mala de mão. Faço a contragosto, mas não vai ser isso que vai estragar meu humor (depois de uma semana de extrema ansiedade por conta dessa viagem, o que pus na conta do autismo). Estou na fila para entrar no avião, vejo passar as malas e identifico a minha. Quebrada. Agora, sim: merda!

Durante o vôo ensaio um barraco em castelhano para quando chegar. Me demoram na imigração, e quando alcanço a esteira, minha mala está solitária ao lado dela. E quebrada. Ao menos vejo que foi só o casco externo, todo o resto está nos conformes. Viagem que segue, agora certo de que os deuses do teatro e da viagem já tinham me dado minha dose de merda - duas coisas menores, por sorte, que só vão me custar financeiramente.

A saída do aeroporto me chama a atenção. Na área de desembarque muitas (muitas!) pessoas esperando com balões e flores seus familiares. Muitas, mesmo! Por um instante cheguei a pensar que algum famoso iria desembacar, tal era o clima do local. O responsável da agência de viagens por me buscar, mais prático, tinha apenas uma placa com meu nome.

O hotel é próximo, mas o caminho é caótico. Ele explica que houve um aumento de 400% da frota da cidade desde a pandemia. Comenta também que cerca de 3 milhões de guatemaltecos vivem nos EUA (na internet, buscando depois achei o número de 1,5 milhões), a maioria indocumentado. Imagino que essa migração talvez explique todo o clima de festa na chegada, o que é confirmado: são os documentados voltando para as festas.

No hotel, lembro que não sou de luxo, não: prefiro as coisas mais simples. O corredor chique com cara de filme de terror, as muitas facilidades que vou ter vergonha de aproveitar e as coisas simples que não sei operar - tudo isso me intimida. Apesar de muito tentar, não consigo ligar o chuveiro - tomo banho de banheira, mesmo. Não que eu não goste de ficar na água, duro é se lavar assim.

Mas foi na saída do banho que descobri que os deuses da viagem estavam de mal comigo: não bastasse o pacote de dados internacional que comprei não estar funcionando, uma hora na tomada e a bateria do meu celular havia carregado 8%. Junto a isso, um aviso: carregamento lento, provavelmente causado por cabo danificado.

Bem, eu estava na Guatemala para passear, não para tirar fotos.




29 de agosto de 2025