William, o guia, chega ao hotel com a pontualidade do carteiro de De volta para o futuro (não lembro se o 2 ou o 3). No carro, meus companheiros de viagem: um geólogo chileno e dois casais espanhóis. Aparentemente, somente eu, William e Wilson, o motorista, ainda trabalhamos - mas eu estou de férias.
No trajeto, William mostra grandes dotes para manter uma conversação: pulando de assunto aleatório em assunto aleatório, de origem do café à produção industrial brasileira, sem deixar de saber sobre a guerra civil guatemalteca e detalhes aprofudados sobre os maias, e passar pela problematização do termo “povos originários”.
Noto que fala com propriedade ou com dose de cuidado, não parecem dados simplesmente decorados ou erudição oca. Descubro, depois que é historiador, já participou de escavações arqueológicas e sabe um básico de hieróglifos maias. Além de ser guia turístico. Mas ele conta que queria mesmo era ser engenheiro agrônomo.
A primeira parada é em Chichicastenango, em El Quiché, cidade média, conforme William. Quarenta mil habitantes, sendo uns cinco mil na cidade. Isso, 40 mil. Meia Pato Branco. Um cidade média para os padrões guatemaltecos, portanto. Sigamos. A grande atração que fomos ver, a feira de domingo (e quintas) é um tanto cheia e caótica: numa quadra de esportes ocorre a feira de frutas e legumes, ao redor, em corredores estreitos, se organiza uma feira de itens diversos - para turistas e para locais -, quase uma Liberdade de domingo - o que muito me angustia.
Uma primeira coisa que chama a atenção e o guia reforça: as mulheres usam vestes parecidas (mas não iguais!), o mesmo traje típico, de origens maia, vermelho escuro - e, não, não é performance para turista tirar foto. Noto que uma ou outra usa traje azul. William explica: são de outra localidade, por isso a mudança de cores.
A feira ocorre entre duas construções religiosas do século XVI: uma a leste, com portas para oeste, portanto, a igreja de Santo Tomás; a outra, a oeste, com porta para o leste, a capela do Calvário, que tem missa apenas uma vez ao ano, dia primeiro de novembro. Ambas estão, separadas por pouco mais de cem metros e foram construídas sobre templos maias - por isso a precisão dos pontos cardeais.
Fora delas, muita, mas muita fumaça. Por obra do sincretismo religioso local, queima-se muita coisa em oferenda aos antepassados, e a fumaça é a forma de conduzir tais elementos ao mundo superior: velas, incensos, rum, cacao... a queima é feita do lado de fora porque a igreja tenta limitar até onde pode ir esse sincretismo, ao menos dentro de suas portas. Tenta, porque a fumaça adentra o templo de qualquer modo, fazendo dos afrescos nas paredes quase borras negras. Achei curioso que no centro das naves há elevações para se queimar velas - uma tentativa de “domesticar” os hábitos maias, substituindo toda a riqueza de oferendas e cheiros pela pasmaceira das velas? Na capela do Calvário, uma mulher reza sobre a imagem de Cristo como se fosse o próprio velório acontecendo. No convento anexo à igreja de Santo Tomás, uma placa indica que ali, no início do século XVIII, foi encontrado e traduzido o Popol Vuh, livro da cosmologia maia.Nossa segunda parada em um taller de maíz. Uma casa simples, típica, paredes de adobe, pintadas, chão de terra batida e, o que me chamou a atenção, colunas com capitéis simples. Vimos como se mói o milho manualmente, conforme técnica ancestral, para depois preparar as tortillas, alimento típico, com uso equivalente ao pão.
Ali também fomos apresentados aos quatro tipos de milho cultivados e seus significados na cultura maia: o branco, que simboliza o ar, a pureza, os acestrais; o amarelo, que simboliza a luz, a vida; o preto, que simboliza a noite, a fertilidade; e o vermelho, que simboliza o sangue e o fogo. Por conta dessa represetanção, o milho vermelho é consumido apenas em situações rituais, sendo mais dedicado, por isso, à alimentação animal. Achei curioso, esses usos extremos do mesmo alimento: do mais elevado, o uso ritual, ao mais baixo, o uso animal, como se fosse um ciclo que se fechasse, com o ser humano no meio.Seguimos viagem até o lago Atitlán. Um lago vulcânico, com certa de 130 km² e 340 metros de profundidade, a 1.500 metros de altitude. Surgido de uma enorme erupção vulcânica, há 100 milhões de anos, ele hoje é circundado por alguns vulcões - há tempos inativos.
Chegamos perto do fim da tarde, uma estranha neblina cobria o lago, uma neblina que parecia feita de sol.
A visita ao lago ficaria para o dia seguinte.




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