quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O estouro da noiada: outra andança pelo centro

Faz tempo que não tenho dado minhas voltas pelo centro de São Paulo – o que reflete na ausência de crônicas sobre o assunto. Um pouco receio da polícia, que anda dando tiro como se jogasse videogame, bastante por causa do clima destes últimos meses, que oscila entre seco, chuvoso e frio, sem parar num meio termo minimamente aprazível; e principalmente porque tenho que acordar às cinco e meia da manhã pra ir pra aula.

Aproveitando o clima agradável e o fato de não ter aula na quarta, decidi sair para tomar a fresca e comer fora, um junkie-not-so-fast-food oriental, na Augusta. Como havia fila na lanchonete, decidi ir na outra filial, na praça da República. No caminho passo pela praça Roosevelt – pela primeira vez desde que reabriu da sua "revitalização". Concreto concreto concreto concreto. Degraus degraus degraus. Skatistas skatistas skatistas. Policiais e mais policiais. Uns canteirinhos perdidos em meio a isso tudo. Sou mais de uma praça com mais verdes e menos agitos, como a praça Camões, em Ribeirão Preto, onde velhinhos, moradores de rua, cachorros acompanhados de suas respectivas madames e maconheiros se encontram pacificamente sob as árvores. De qualquer forma, sabendo que a parte concreto e degraus será sempre predominante na praça (até nova revitalização), se continuar havendo mais skatistas que policiais, creio que estamos bem. O problema é se os moradores de bem do entorno – que já teve um prostíbulo derrubado – conseguirem impôr toque de recolher aos skatistas, tornando-a outro espaço inóspito da capital – restrições sempre com as melhores das intenções, em nome dos bons costumes e da moral, é claro.

Na avenida São Luís, a calçada, refeita, tem o mapa estilizado de São Paulo distorcido, assumindo formas ora sem sentido, ora de pato. Troco a comida japonesa por um xis numa lanchonete próxima à galeria Olido. Já alimentado, no trajeto de volta, uma moradora de rua, indignada, comenta com outro que está sem cobertor pela terceira noite seguida, porque emprestou a não sei quem. Não passará frio, com certeza, fico me perguntando se não o utilizaria como colchonete. Parada súbita no Shopping Light, para usar o banheiro – que não é catraca livre. Aliviado, decido, então, por uma volta no centro.

Esqueço que já havia me comprometido comigo mesmo a não ir além da avenida São João depois do horário comercial. Não resisto. No cruzamento da Ipiranga com a Rio Branco, acho por bem voltar. De repente, da rua do Boticário, sai um enorme número de nóias. Não adianta parar ou continuar, o resultado é o mesmo: acabo no meio deles – um tanto apreensivo, admito. Andam em ritmo até que acelerado, sempre olhando para trás, assustados. O responsável pelo estouro da noiada: um carro da polícia que passa lentamente. Trato de acelerar o passo para sair do meio (só depois me dou conta que eles estavam preocupados demais com a polícia para se darem conta d'eu ali no meio, e que mais perigoso era a polícia ainda resolver me pegar).

Não me enrolo muito pela Boca do Lixo, basta de emoções pela noite. Volto pela Augusta, como sempre. Alguns novos empreendimentos imobiliários brotam no caminho, colocando a vida noturna da rua sob perigo – que a efervescência da Augusta fique na rua e pelo centro, ao menos! Estranho alguns garotos, na faixa dos treze anos, vestidos relativamente bem, no baixo Augusta. Estranho também o alto Augusta estar mais movimentado que o resto, apesar de já ser quase onze da noite. Não estranho o fato de estar cansado: estou há duas horas e meia caminhando, com breve pausa para o xis. Já do outro lado da Paulista, a revenda de automóveis de luxo próxima à minha casa fechou – mas o simpático morador de rua que ficava como se fosse o segurança da loja continua lá. Para compensar, entro na internet descubro que a diária no hotel que há no caminho é de quase trezentos dólares, a mais barata (sem café da manhã).

São Paulo, 17 de outubro de 2012.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Liberdade de expressão e o direito a se expressar

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (4/10), o jornalista e professor Eugênio Bucci mais confunde do que esclarece quando pretende defender a tese de que “a censura judicial encontra uma estrada aberta, desimpedida, e cresce”, com apoio de parte da população.

Bucci começa seu artigo afirmando que há certa difusão da ideia de que “a defesa da liberdade de imprensa é coisa da direita, é uma agenda patronal”, com o que concordo: mesmo na academia, a divisão precária em esquerda e direita serve para julgamentos rápidos e definitivos e impede uma reflexão minimamente crítica acerca do problema – a começar pela própria definição de esquerda e direita. A seguir, o autor diz que esse bordão é a versão esquerdista da direitista “essa conversa de direitos humanos só serve para proteger bandidos”. Os dois falam de direitos fundamentais, certo, mas não há motivo para misturar uma coisa com a outra: censura é péssimo e não há argumentos razoáveis num Estado democrático para sua defesa, mas achar que é equivalente a pau-de-arara, execuções sumárias e coisas do gênero, é desrespeitar o sofrimento físico e psicológico de pessoas e familiares.

Com essa introdução, o articulista parece querer se pôr numa pretensa posição de isenção e neutralidade. O que se segue não corrobora essa impressão: ao se fiar em exemplos e mais exemplos para mostrar o avanço da censura, ele causa mais confusão ainda ao leitor, discute filigranas de pouca importância e foge do cerne do problema. Por qual motivo censura prévia e disputas judiciais pela retirada de conteúdo ofensivo devem ter igual tratamento, se são casos distintos? Que sejam condenáveis muitas das decisões para retirada de conteúdo já publicado, o próprio Judiciário oferece caminhos para seu questionamento – o que não isenta a sociedade de pressões políticas.
Frouxos e lenientes

A questão que sobra é: a partir de que momento e em que direção essas pressões devem (ou deveriam) ser feitas? Bucci foge dela.

Como consequência do desenvolvimento (?) de seu texto, Bucci chega a igual conclusão que a Folha de S.Paulo, em editorial de 28 de setembro: “A maior ameaça à liberdade de expressão no Brasil, hoje, parte do Judiciário”. Liberdade para a expressão de quem? Não de todos, com certeza. Ouso dizer que a maior ameaça à liberdade de expressão no Brasil, hoje, parte da própria imprensa – que se mostra pouco interessada em liberdade num sentido pleno, com deveres e direitos.

Sintomaticamente, no parágrafo seguinte, afirma que “O Brasil unificou-se para derrotar a inflação, assim como agora se articula para combater a pobreza”. Faltam sujeitos a essa união e essa articulação. Sobra generalização. Os que criticam o Bolsa Família como “Bolsa Vagabundagem” não parecem tão interessados assim no combate à pobreza, por mais que tentem edulcorar seu discurso com “ensinar a pescar, ao invés de dar o peixe”: alguém acredita nesse discurso, proferido desde tempos remotos de nossa história? Bucci também ignora que no mesmo dia a Folha lançou um editorial criticando as atitudes da presidente argentina, Cristina Kirchner, contra o Grupo Clarín. Nada mais natural: ao atacar a concentração da mídia (e, consequentemente, da informação), Kirchner abre um perigoso precedente: e se decidirem fazer o mesmo no Brasil, obrigando o quarto poder a seguir, ele também, a Constituição? Motivos para fazê-lo sobram. Temor, por parte dos grandes grupos de que seja feito, também. Mas os governos petistas têm sido frouxos e lenientes no cumprimento da lei: vale lembrar que a revista Veja publicou reportagem de capa difamando sem provas o chefe do poder executivo, representante do Estado nacional, de ter conta na Suíça. O que fizeram Lula e a Presidência? Uma resposta numa entrevista, na volta da sua viagem à Europa.
Um privilégio

A defesa da liberdade de expressão sem questionar se ela existe de fato no país serve apenas para reforçar o status quo. “Se queremos defender o direito à informação, precisamos defender a liberdade do Google”, diz Bucci. Corretíssimo! Contudo essa defesa está muito aquém de significar direito à informação e à liberdade de expressão. A pura e simples defesa do atual desenho da mídia serve apenas para que a imprensa possa seguir agindo como um poder paralelo, supraconstitucional, o “quarto poder”, como ela adora se apelidar – esquecendo que os outros três possuem limitações recíprocas e obrigações constitucionais a serem seguidas (não me alongo neste aspecto, que discuti no texto “O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil”, na edição 101 da revista eletrônica Casuística, páginas 93-99).

A liberdade de imprensa, nesta configuração de forças, acaba sendo, na verdade, liberalidade de imprensa, com claro pendor para os grupos com maior poder econômico; e deixa toda a população à mercê de interesses não declarados. Não se trata de defender a censura desses meios, mas a contingência de seu poder para os parâmetros exigidos pela Carta Magna do país (art. 220, § 5º) – os EUA, pais da liberdade de expressão, fazem isso.

O término do seu texto apenas acentua o caráter nada parcial e a argumentação carente de uma análise mínima de contexto desenvolvida até então: dizer que “a liberdade de imprensa não é um privilégio de jornalistas ou meios de comunicação: é um direito de todos nós” não corresponde à realidade tupiniquim: a liberdade de imprensa é, sim, privilégio de alguns poucos jornalistas e meios de comunicação – que o diga Maria Rita Kehl, com quem Bucci lançou o livro Videologias, quando demitida do Estado de S.Paulo por “delito de opinião” (ver aqui) –, quando deveria ser um direito de todos nós.

São Paulo, 04 de outubro de 2012.

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, edição 716.