Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo
(4/10), o jornalista e professor Eugênio Bucci mais confunde do que
esclarece quando pretende defender a tese de que “a censura judicial
encontra uma estrada aberta, desimpedida, e cresce”, com apoio de parte
da população.
Bucci começa seu artigo afirmando que há certa difusão da ideia de que
“a defesa da liberdade de imprensa é coisa da direita, é uma agenda
patronal”, com o que concordo: mesmo na academia, a divisão precária em
esquerda e direita serve para julgamentos rápidos e definitivos e impede
uma reflexão minimamente crítica acerca do problema – a começar pela
própria definição de esquerda e direita. A seguir, o autor diz que esse
bordão é a versão esquerdista da direitista “essa conversa de direitos
humanos só serve para proteger bandidos”. Os dois falam de direitos
fundamentais, certo, mas não há motivo para misturar uma coisa com a
outra: censura é péssimo e não há argumentos razoáveis num Estado
democrático para sua defesa, mas achar que é equivalente a pau-de-arara,
execuções sumárias e coisas do gênero, é desrespeitar o sofrimento
físico e psicológico de pessoas e familiares.
Com essa introdução, o articulista parece querer se pôr numa pretensa
posição de isenção e neutralidade. O que se segue não corrobora essa
impressão: ao se fiar em exemplos e mais exemplos para mostrar o avanço
da censura, ele causa mais confusão ainda ao leitor, discute filigranas
de pouca importância e foge do cerne do problema. Por qual motivo
censura prévia e disputas judiciais pela retirada de conteúdo ofensivo
devem ter igual tratamento, se são casos distintos? Que sejam
condenáveis muitas das decisões para retirada de conteúdo já publicado, o
próprio Judiciário oferece caminhos para seu questionamento – o que não
isenta a sociedade de pressões políticas.
Frouxos e lenientes
A questão que sobra é: a partir de que momento e em que direção essas pressões devem (ou deveriam) ser feitas? Bucci foge dela.
Como consequência do desenvolvimento (?) de seu texto, Bucci chega a igual conclusão que a Folha de S.Paulo,
em editorial de 28 de setembro: “A maior ameaça à liberdade de
expressão no Brasil, hoje, parte do Judiciário”. Liberdade para a
expressão de quem? Não de todos, com certeza. Ouso dizer que a maior
ameaça à liberdade de expressão no Brasil, hoje, parte da própria
imprensa – que se mostra pouco interessada em liberdade num sentido
pleno, com deveres e direitos.
Sintomaticamente, no parágrafo seguinte, afirma que “O Brasil unificou-se para derrotar a inflação, assim como agora se articula
para combater a pobreza”. Faltam sujeitos a essa união e essa
articulação. Sobra generalização. Os que criticam o Bolsa Família como
“Bolsa Vagabundagem” não parecem tão interessados assim no combate à
pobreza, por mais que tentem edulcorar seu discurso com “ensinar a
pescar, ao invés de dar o peixe”: alguém acredita nesse discurso,
proferido desde tempos remotos de nossa história? Bucci também ignora
que no mesmo dia a Folha lançou um editorial criticando as
atitudes da presidente argentina, Cristina Kirchner, contra o Grupo
Clarín. Nada mais natural: ao atacar a concentração da mídia (e,
consequentemente, da informação), Kirchner abre um perigoso precedente: e
se decidirem fazer o mesmo no Brasil, obrigando o quarto poder a
seguir, ele também, a Constituição? Motivos para fazê-lo sobram. Temor,
por parte dos grandes grupos de que seja feito, também. Mas os governos
petistas têm sido frouxos e lenientes no cumprimento da lei: vale
lembrar que a revista Veja publicou reportagem de capa
difamando sem provas o chefe do poder executivo, representante do Estado
nacional, de ter conta na Suíça. O que fizeram Lula e a Presidência?
Uma resposta numa entrevista, na volta da sua viagem à Europa.
Um privilégio
A defesa da liberdade de expressão sem questionar se ela existe de fato no país serve apenas para reforçar o status quo.
“Se queremos defender o direito à informação, precisamos defender a
liberdade do Google”, diz Bucci. Corretíssimo! Contudo essa defesa está
muito aquém de significar direito à informação e à liberdade de
expressão. A pura e simples defesa do atual desenho da mídia serve
apenas para que a imprensa possa seguir agindo como um poder paralelo,
supraconstitucional, o “quarto poder”, como ela adora se apelidar –
esquecendo que os outros três possuem limitações recíprocas e obrigações
constitucionais a serem seguidas (não me alongo neste aspecto, que
discuti no texto “O Quarto Poder para além do Estado Democrático de
Direito no Brasil”, na edição 101 da revista eletrônica Casuística, páginas 93-99).
A liberdade de imprensa, nesta configuração de forças, acaba sendo, na
verdade, liberalidade de imprensa, com claro pendor para os grupos com
maior poder econômico; e deixa toda a população à mercê de interesses
não declarados. Não se trata de defender a censura desses meios, mas a
contingência de seu poder para os parâmetros exigidos pela Carta Magna
do país (art. 220, § 5º) – os EUA, pais da liberdade de expressão, fazem
isso.
O término do seu texto apenas acentua o caráter nada parcial e a
argumentação carente de uma análise mínima de contexto desenvolvida até
então: dizer que “a liberdade de imprensa não é um privilégio de
jornalistas ou meios de comunicação: é um direito de todos nós” não
corresponde à realidade tupiniquim: a liberdade de imprensa é, sim,
privilégio de alguns poucos jornalistas e meios de comunicação – que o
diga Maria Rita Kehl, com quem Bucci lançou o livro Videologias, quando demitida do Estado de S.Paulo por “delito de opinião” (ver aqui) –, quando deveria ser um direito de todos nós.
São Paulo, 04 de outubro de 2012.
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, edição 716.
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