quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Executivos de argila atrapalham o fluxo na Paulista

Na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta, um grupo de pessoas munidas de poderosas máquinas fotográficas. Conversam animados, mostram suas capturas, buscam um novo alvo. Deve ser mais um desses grupos de aula de fotografia que se tropeçam pela Paulista. Quando minha câmera quebrou (era uma simples, ainda da época do filme) e pensei em comprar uma nova, me dei conta de que se a máquina fosse determinante pra qualidade da foto, teríamos Sebastiões Salgados em série. Não me parece o caso. Desisti de gastar muito numa máquina – na verdade, ainda não comprei uma substituta à minha velha Nikkon sugadora de baterias.

Palhaçada. Parecem múmias do Egito. Encheção de saco. É um protesto. Mas estão protestando contra o que? É um bando de viados, isso sim. Parecem aqueles soldados chineses.

Pouco depois da rua Padre João Manuel, vem caminhando lentamente na direção contrária à minha uma horda de executivos de argila. Argila da cabeça aos pés – digo, sapatos –, em suas pastas, celulares, óculos. Nos olhos, venda. Reações diversas. A primeira e mais comum é sacar o celular para fotografias e pequenos filmes – depois pensa-se sobre o que é aquilo. Há os que param para assistir, tentam entender – pra que isso? Estão protestando contra o que? –, outros xingam por atrapalhar seu caminhar apressado – e não deixa de me chocar terem usado o argumento de que eram “viados” para menosprezar a performance, isso um dia depois de outro homossexual ter sido agredido por cometer o crime de ofender as pupilas puras de pessoas de bem com sua existência –, outros olham, tiram uma foto e seguem, abrindo espaço por entre a argila dos corpos (com cuidado, para não se sujarem); há os que vêem, se surpreendem e seguem; alguns acompanham o cortejo por alguns metros.

Admito, ser pego de surpresa por uma performance é mais interessante do que ir pra Paulista em busca dela – a relação com o ato é muito diferente. Mas não há sorte que garanta sempre se deparar com performances sem querer, às vezes é preciso ir atrás.

Na avenida Paulista, árvores de metal e vidro foram plantadas no canteiro central. Podia ser uma performance, mas é a decoração de natal. No cruzamento com a Padre João Manuel, forma-se uma pequena fila de carros, obrigados a parar pelo grupo que segue seu lento caminhar. Ao liberarem uma das pistas, um motorista faz o motor roncar mais forte, para mostrar sua viril indignação por terem feito perder tempo. É vaiado. Ignora (ou se faz de cego às vaias), e segue com a cara fechada, pondo medo e impondo respeito a ninguém. Em frente à entrada principal do Conjunto Nacional, uma mulher trabalha como estátua viva, faz pose por moedinhas em sua brancura clássica. Algumas pessoas a observam (e tiram fotos) quando vêem os executivos de argila se aproximarem. Fotos para registrar o encontro. O branco neoclássico com o barro anti-pós-moderno. A pureza de um passado idealizado e a sujeira de um presente ignorado. Os homens de argila não querem moedinhas, nem podem parar para contemplar a estátua viva em seu modelito greco-romano. Passam – lentamente.

O grupo munido de poderosas máquinas segue na esquina com a Augusta e se anima com a aproximação da performance: tiraram a sorte grande, algo inusitado para treinarem suas técnicas de fotojornalismo artístico! Menos dois que, cegos para os Cegos, quase de gatinhas, quase enfiando suas objetivas na bunda da mulher, perseguem uma senhora de bengala que atravessa a rua.


São Paulo, 05 de dezembro de 2012.

ps: mais informações sobre a performance Os Cegos podem ser encontradas em j.mp/QL0MhZ

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Aqui e ali (atti kotti)

Desço na estação República. Logo na porta, jabuticabas substituídas por lichias nos carrinhos de mão dos ambulantes. Aranhas feitas artesanalmente e dvds piratas são vendidos logo à frente. Atti kotti. Cenas urbanas. Dança. Mate. Na avenida São João, próximo à galeria Olido, um grande número de pessoas reunidas – imantadas, para usar o termo feliz de Lygia Pape (só não mais feliz que sua obra). Passo próximo, tentando observar o que está pegando ali. Numa mesa improvisada, vendem algo ou jogam, não consigo distinguir; uma pessoa examina uma calça, outra chama um homem próximo para ver a revista pornô que tem em mãos. Pego meu ingresso para o espetáculo de dança e vou comer um xis com um mate. Ao sair da lanchonete, presencio uma grande confusão. Tudo muito rápido, pessoas correndo, pessoas caindo. Briga generalizada? Bem parecia briga entre torcidas. Seria alguma disputa entre facções? É o rapa?, um rapaz pergunta a outro próximo a mim. Não, a polícia mesmo. A polícia militar, cuja função primeira não é proteger ninguém, não é garantir a integridade das pessoas, não é proporcionar segurança, mas preservar a ordem – que ordem?, é de se questionar. E ela garante, a ferro e fogo, se for preciso. Garante. Provocando tumulto e arruaça, se for preciso. Batendo, espancando, matando, se for preciso. Garante. Que ordem? A polícia em vez de prender graúdo vem avacalhar com a nossa feira, que só tem coitado, fala, indignado, um homem. A apresentação a que assisto pouco entendo mas gosto muito. Tem momentos de uma leve tensão irônica, é algo divertida – me fazem lembrar da “moça da dança”, que deve ter traumatizado minha ex-terapeuta, com um ano de um assunto sem fim e sem desenvolvimento. A mulher atrás de mim na fila veste blusa de oncinha, tem as unhas num tom estranho de azul e o dedo mínimo meio torto. Começo a perceber algumas figurinhas carimbadas da Olido – estarei eu me transformando em uma também? E a oriental de tatuagem na testa? Nunca mais a vi. São dezessete pessoas na platéia, quatro no palco, duas na produção – dentre elas a diretora Alice K, uma oriental. O oriente parece que me persegue. E a recíproca parece ser verdadeira. Taomolo, Fei Shuang, we are accidents waiting waiting to happen (em que Gigante vale por três), as coisas aconteciam com alguma explicação, o lunático em Murakami e Subaru de segunda mão; a Luanda de Lobo Antunes, antes em guerra, agora canteiro de obras dos chineses. O que seria de nós, não é, se fôssemos, de facto, felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio? Um comprimido de antiácido pelo xis e pelo mate e pelo litro de chimarrão durante o dia. A feira se refez, reimantou pessoas. Lembro do homem no trem, na volta da faculdade. Falava em AK-47 e gesticulava muito. Se as frases se encerravam com palavras terminadas em e ou o, parecia balir. Mas nunca matei ninguém, importante é o amor. O homem recém sentado ao seu lado, interpelado, concorda: amor, saúde e trabalho é o importante. Isso mesmo-o-o-o-o. Porém logo o homem que balia se retifica: eu vou admitir pra você-ê-ê-ê-ê-ê, eu não gosto de trabalhar. Eu também não. Bukowski, que me acompanhou nas viagens da semana passada, tampouco parecia empolgado com a labuta. Dentre as diferenças, Bukowski era escritor. Quando me perguntam de onde sou, digo que sou do mundo-o-o-o-o. Resposta errada, creio: no Brasil, para a polícia, cidadão do mundo, só os com três idiomas e carimbos no passaporte. Zé Ninguém filho de Zé Ninguém tem que vir de algum lugar e ir pra algum lugar, ou então é bandido – e se estiver vindo da periferia, da terra dos Zé Ninguéns, é tão bandido quanto, só vai passar porque (se) não acharam motivo pra pará-lo por ali. Mudo de lugar, para poder ler o livro sobre dança que tenho em mãos. Você sabe porque Gabriela não fala mais comigo?, leio no celular da moça ao lado-o-o-o-o-o-o. Ouço o balir de tempo em tempo. De uns dias pra cá, os pedintes na rua sempre hesitam e me cumprimentam antes de pedir dinheiro – acho estranho. E nunca tenho – desde que um deles reclamou que lhe menos de um real. E ao bom dia de uma senhora respondo com um automático não – ela carregava um monte de revistas religiosas e achei que iria me oferecer uma. Na Augusta, vejo um homem parado de quatro sobre um papelão. Poderia ser uma performance. Não é. Passo por ele, fede. Mas poderia. Olho para trás, não parece estar ansiando, passando mal, bêbado, nada, apenas parado, de quatro, na Augusta. Me pergunto qual a diferença entre uma performance e aquela cena? A atitude consciente de perturbar o banal do quotidiano? A atitude consciente de nos fazer ter olhos também para o banal do quotidiano? A possibilidade de tudo acabar quando o performer decidir que é hora? Creio eu que só tenho olhos para aquela cena graças às muitas apresentações de artes e antiartes que vi – As dos Festivais de Apartamento, que me parecem sem sentido, dentre elas. Imantados, pessoas de quatro, a feira dos humilhados do parque com os seus jornais, parangolé (grafitti), atti kotti. Disse certa feita que toda escrita começa pelo olhar: me vejo um analfabeto em enxergar o mundo.

São Paulo, 29 de novembro de 2012.
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