Desço na estação República. Logo na porta, jabuticabas substituídas
por lichias nos carrinhos de mão dos ambulantes. Aranhas feitas
artesanalmente e dvds piratas são vendidos logo à frente. Atti
kotti. Cenas urbanas. Dança. Mate. Na avenida São João, próximo à
galeria Olido, um grande número de pessoas reunidas – imantadas,
para usar o termo feliz de Lygia Pape (só não mais feliz que sua
obra). Passo próximo, tentando observar o que está pegando ali.
Numa mesa improvisada, vendem algo ou jogam, não consigo distinguir;
uma pessoa examina uma calça, outra chama um homem próximo para ver
a revista pornô que tem em mãos. Pego meu ingresso para o
espetáculo de dança e vou comer um xis com um mate. Ao sair da
lanchonete, presencio uma grande confusão. Tudo muito rápido,
pessoas correndo, pessoas caindo. Briga generalizada? Bem parecia
briga entre torcidas. Seria alguma disputa entre facções? É o
rapa?, um rapaz pergunta a outro próximo a mim. Não, a polícia
mesmo. A polícia militar, cuja função primeira não é proteger
ninguém, não é garantir a integridade das pessoas, não é
proporcionar segurança, mas preservar a ordem – que ordem?, é de
se questionar. E ela garante, a ferro e fogo, se for preciso.
Garante. Provocando tumulto e arruaça, se for preciso. Batendo,
espancando, matando, se for preciso. Garante. Que ordem? A polícia
em vez de prender graúdo vem avacalhar com a nossa feira, que só
tem coitado, fala, indignado, um homem. A apresentação a que
assisto pouco entendo mas gosto muito. Tem momentos de uma leve
tensão irônica, é algo divertida – me fazem lembrar da “moça da
dança”, que deve ter traumatizado minha ex-terapeuta, com um ano
de um assunto sem fim e sem desenvolvimento. A mulher atrás de mim
na fila veste blusa de oncinha, tem as unhas num tom estranho de azul
e o dedo mínimo meio torto. Começo a perceber algumas figurinhas
carimbadas da Olido – estarei eu me transformando em uma também? E
a oriental de tatuagem na testa? Nunca mais a vi. São dezessete
pessoas na platéia, quatro no palco, duas na produção – dentre
elas a diretora Alice K, uma oriental. O oriente parece que me
persegue. E a recíproca parece ser verdadeira. Taomolo, Fei Shuang,
we are accidents
waiting waiting to happen (em que Gigante vale por três), as coisas aconteciam com alguma explicação, o lunático em Murakami e Subaru de segunda mão; a
Luanda de Lobo Antunes, antes em guerra, agora canteiro de obras dos
chineses. O que seria de nós, não é, se fôssemos, de facto,
felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados,
mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça
reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família
numa festa de colégio? Um comprimido de antiácido pelo xis e pelo
mate e pelo litro de chimarrão durante o dia. A feira se refez,
reimantou pessoas. Lembro do homem no trem, na volta da faculdade.
Falava em AK-47 e gesticulava muito. Se as frases se encerravam com
palavras terminadas em e ou o, parecia balir. Mas nunca matei
ninguém, importante é o amor. O homem recém sentado ao seu lado,
interpelado, concorda: amor, saúde e trabalho é o importante. Isso
mesmo-o-o-o-o. Porém logo o homem que balia se retifica: eu vou
admitir pra você-ê-ê-ê-ê-ê, eu não gosto de trabalhar. Eu
também não. Bukowski, que me acompanhou nas viagens da semana
passada, tampouco parecia empolgado com a labuta. Dentre as
diferenças, Bukowski era escritor. Quando me perguntam de onde sou,
digo que sou do mundo-o-o-o-o. Resposta errada, creio: no Brasil,
para a polícia, cidadão do mundo, só os com três idiomas e
carimbos no passaporte. Zé Ninguém filho de Zé Ninguém tem que
vir de algum lugar e ir pra algum lugar, ou então é bandido – e
se estiver vindo da periferia, da terra dos Zé Ninguéns, é tão
bandido quanto, só vai passar porque (se) não acharam motivo pra
pará-lo por ali. Mudo de lugar, para poder ler o livro sobre dança
que tenho em mãos. Você sabe porque Gabriela não fala mais
comigo?, leio no celular da moça ao lado-o-o-o-o-o-o. Ouço o balir
de tempo em tempo. De uns dias pra cá, os pedintes na rua sempre
hesitam e me cumprimentam antes de pedir dinheiro – acho estranho.
E nunca tenho – desde que um deles reclamou que lhe menos de
um real. E ao bom dia de uma senhora respondo com um automático não
– ela carregava um monte de revistas religiosas e achei que iria me
oferecer uma. Na Augusta, vejo um homem parado de quatro sobre um
papelão. Poderia ser uma performance. Não é. Passo por ele, fede.
Mas poderia. Olho para trás, não parece estar ansiando, passando
mal, bêbado, nada, apenas parado, de quatro, na Augusta. Me pergunto
qual a diferença entre uma performance e aquela cena? A atitude
consciente de perturbar o banal do quotidiano? A atitude consciente
de nos fazer ter olhos também para o banal do quotidiano? A possibilidade de tudo acabar quando o performer decidir que é hora? Creio eu
que só tenho olhos para aquela cena graças às muitas apresentações
de artes e antiartes que vi – As dos Festivais de Apartamento, que
me parecem sem sentido, dentre elas. Imantados, pessoas de quatro, a
feira dos humilhados do parque com os seus jornais, parangolé (grafitti), atti kotti. Disse certa feita que toda escrita começa
pelo olhar: me vejo um analfabeto em enxergar o mundo.
São Paulo, 29 de novembro de 2012.
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