sábado, 19 de dezembro de 2015

As ruas começam a incomodar a Grande Imprensa

Um das principais conseqüências das chamadas "jornadas de junho", de 2013, é a assunção da rua como espaço político ordinário. Num país em que "político" é tido como termo pejorativo pelos próprios políticos, e no qual rua como espaço público é duramente questionado pela Grande Imprensa e pelas parcelas bem-remediadas do país - a ponto de se dizer, por exemplo, que o centro de São Paulo é área morta e precisa ser "revitalizada" -, conseguir que a rua assuma positivamente o papel político é algo a ser comemorado - na história destes Tristes Trópicos, talvez isso tenha acontecido apenas no interregno democrático entre 1945 e 1964; os caras-pintadas do Fora Collor, em 1992, não conseguiram deixar esse legado: tão logo caiu o presidente, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou.
E assim seguiu, de 1992 até a "quinta terror", aquela de repressão a la Pinheirinho contra os manifestantes classe-média que protestavam contra o reajuste da tarifa de transporte público: toda manifestação era tida por baderna e perturbação da ordem, um bando de desocupados que ao invés de trabalhar prefere atrapalhar os cidadãos de bem. Desde então, como espaço político, fechar uma faixa da Paulista para meia dúzia protestar contra o que for passou a ser legítimo. E como a rua ainda resiste em ser pública, cabe manifestação de esquerda, cabe manifestação de direita, cabe pobre pedir direitos, cabe rico pedir fim de direitos (dos outros, claro). Após dois anos das tais jornadas, as diferenças entre manifestação de esquerda e de direita foram se sedimentando e hoje são evidentes: na primeira, os policiais militares pronto para atacar; na segunda, os mesmo soldados fazendo poses para selfies; numa, diversas cores e classes; na outra, a padronização nas camisas da seleção em corpos brancos e bem nutridos; uma acontece durante a semana ou quando for necessário, na Paulista, no Viaduto do Chá, em Itaquera, na Praça da República, na Sé, no Grajaú, na Anhanguera, nas marginais; a outra ocorre aos domingos, na avenida Paulista, no máximo no Largo da Batata, com chamadas na rede Globo.
A importância da ocupação das ruas é vital se pretendemos construir uma sociedade democrática: conforme o filósofo francês Paul Virilio, mesmo em tempos de internet, de petições online, de xingar muito no tuíter e de páginas de protesto, o real poder está onde sempre esteve: na rua. Tem o controle da situação quem tem o controle da rua - daí todo o aparato do urbanismo e dos avanços técnicos para retirar a massa da rua.
Exemplo do poder das ruas: foi quando os estudantes - que desde o início agiam politicamente, diga-se de passagem - que ocupavam as escolas estaduais passaram a ocupar também as ruas que Alckmin recuou no fechamento das noventa escolas para 2016, não sem antes ter enviado para o diálogo - conforme o governador - seu porta-voz principal para questões sociais, a polícia militar e sua retórica feita de balas de borracha, bombas de gás e porrada democraticamente distribuída.
Nesta semana, a direita foi para a rua domingo, como é do seu feitio, protestar contra Dilma e a favor do golpe - nem precisa mais ser militar. Na quarta, a esquerda assumiu o protagonismo, em defesa da democracia.
A Grande Imprensa, como era de se esperar, manteve sua narrativa anti-democrática e golpista. Em tempo: não seria golpista se tivéssemos pluralidade nos meios de comunicação; contudo, com a Grande Imprensa agindo em monobloco, distorcendo os fatos de acordo com seus interesses, sem qualquer contraditório, aplicando os ensinamentos de Goebbels - sem conseguir atualizá-los para o tempo de internet -, resulta em pacto com um golpe de Estado. No domingo dos protestos pró-golpe, o Estadão trazia o protesto na primeira página; O Globo falava do futuro governo Temer; enquanto a Folha de São Paulo - versão diária para a Veja - estampava como manchete que "após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida" (por mais que todos os indicadores digam o contrário), e imprimia na sua primeira página nota sobre os protestos. Na segunda, o Globo sequer os mencionava na sua capa, os jornalecões de São Paulo falavam do fracasso, ainda que Folha tentasse dar um ar Poliana a ele. Na quinta, os jornais noticiavam como atos pró-Dilma os protestos que foram antes de tudo anti-golpe - como dissera em entrevista à BBC Brasil Guilherme Boulos, boa parte, se não a maioria, não estava ali para defender o governo, mas a democracia. Por terem levado mais gente que os protestos de domingo, mereceram figurar na primeira página dos três jornalecões, não sem antes explicitar que era movimento de centrais sindicais (seriam manifestações comunistas?).
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi o tuíter da jornalista Eliana Cantanhêde, uma das principais porta-vozes dos barões da mídia - talvez por não ter constrangimento em ser velhaca para defender o patrão. No dia das manifestações contra o golpe, quarta-feira, ela disse: “Devia ser proibido fazer manifestação em dia útil. São Paulo está um caos. Irritante!”. Fosse outra pessoa, e esse comentário poderia passar em branco. Sendo de quem é, merece um pouco de reflexão. O irritante para a jornalista (e todo o pensamento que ela representa) não é manifestação em dia útil, é manifestação de esquerda. José Serra reclamou da avenida Paulista interditada para carros, num domingo, por prejudicar o trânsito; Cantanhêde faria o mesmo tranqüilamente. Nenhum dos dois, contudo, reclamou da Paulista fechada para protesto contra a Dilma - os colegas de Serra até foram discursar no dia treze. Ao querer restringir protesto para domingo, Cantanhêde mostra bem seu apreço pela democracia sem povo e sem contraditório, uma democracia que não perturbe a ordem viável (e viária) apenas para as classes abastadas - porque as classes subalternas sofrem diariamente com trânsito, transporte público, violência policial, omissão estatal, etc -; e discretamente afirma que há uma manifestação legítima e outra não: como apontado acima, manifestação de domingo não diz respeito apenas ao dia da semana, mas também ao tipo de manifestante e as bandeiras que defendem.
A rua como espaço ordinário de política começa a incomodar os detentores do poder, assim como a rua como espaço público. O projeto do PSDB e da Grande Mídia - que é sua mentora intelectual - mostra cada dia mais seu deprezo pela democracia: dois pesos duas medidas para a corrupção, golpe para vencer eleições, tropa de choque da polícia militar para dialogar com movimento sociais, rua para carros, circo (Faustão, Datena, Bonner, Ratinho e afins) para o povo, para o qual fazem a promessa seguir com seu direito de dar a última palavra: sim, senhor.


19 de dezembro de 2015

domingo, 29 de novembro de 2015

E agora, escrever para quem? [saudades feitas de afetos]

Como acontece muitas vezes, não precisei pensar na crônica: ela quem surgiu espontaneamente (era sobre a entrevista do secretário de educação de São Paulo). Tendo identificado os pontos de ancoragem da argumentação, abri o Open Office e, diante do branco da tela, meu trabalho era conseguir que os pensamentos mantivessem a velocidade dos dedos, que passeavam rápida e familiarmente pelo teclado. Findo o primeiro parágrado, como se estivesse em uma encruzilhada, precisei decidir a ordem da exposição, o impacto e os desdobramentos de cada argumento. Foi então que estanquei: ao pensar no meu interlocutor ideal, me veio a constatação de que eu já não possuía meu principal leitor - ele, que seguidamente usava minhas crônicas de gancho nas conversas, seja para complementar, para acrescentar ou para contestar pontos específicos. Nosso espectro de concordância era grande, e o respeito nos pontos dissonantes também: ele devia me achar muito moderado, eu o achava muito radical, pouco atento às forças envolvidas nos embates políticos. De qualquer forma, estávamos numa esquerda bem longe do centro e a prudente distância de extremismos apedeutas. Ali, diante do primeiro parágrafo escrito e com o resto da análise apenas precisando de meus dedos, me perguntei por que eu escrevia, para quem eu escrevia. Dos porquês, dois deles eu tenho muito claro desde longa data: porque gosto e porque me ajuda a organizar e entender o mundo que me cerca - social como interno e afetivo. O para quem me soou uma pergunta que eu nunca havia me posto. Não era para mim, que os textos escritos para mim eu nunca publico. Me lembrei de uma conversa com uma antiga terapeuta. Eu apanhava para conseguir escrever o texto de qualificação do mestrado, basicamente por conta de preocupações formais excessivas: eu fazia uma leitura quase estruturalista d'A Sociedade do Espetáculo; e tinha como objetivo escrever a dissertação o mais rigorosa possível, mas numa linguagem que meu pai fosse capaz de ler e entender (e não se entediar). A terapeuta não entendeu por quê meu pai, achou que era qualquer coisa psicanalítica, de filho dependendo da aprovação do pai. Precisei me explicar: meu pai não possuía curso superior, não tinha um conhecimento especializado (academicamente falando), mas muita leitura, vasto campo de interesse, e uma cultura geral bem acima da média (academicamente falando também). Eu poderia escrever uma dissertação hermética difícil árida que a banca (Peter Pal Pélbart, Jeanne Marie Gagnebin e Vladimir Safatle) compreenderia sem qualquer dificuldade; mas preferia alcançar um público mais amplo, ainda que qualificado, que não necessitasse de simplificações dos conceitos, apenas um texto minimamente aprazível à leitura, talvez uma ou outra explicação mais detalhada de pontos mais complexos. Meu pai foi o representante imaginário desse público - para minha dissertação e para a grande maioria das minhas crônicas. Isso não quer dizer que eu escrevia para ele, escrevia para o mundo - mas um mundo ideal feito de Dejanirs. Não apenas isso: ele era de fato meu leitor e interlocutor privilegiado - ou talvez eu fosse o escritor e interlocutor privilegiado dele. E agora, o que fazer? Eu sabia como seguir com a crônica, mas ao pé daquele primeiro parágrafo, a ausência dele fez com que perdesse o sentido continuar a escrever. Escrever para quem? Lembrei que todo meu interesse por política era clara influência dele - assim como minha vontade de saber sobre tudo (ou quase) e meu apetite por livros. Na ausência de quem, achei um novo quê para justificar minha crônica - e as vindouras. Como homenagem: não tenho mais sua interlocução, porém ainda posso mostrar ao mundo parte da herança que ele me deixou.


29 de novembro de 2015.