quinta-feira, 17 de março de 2016

O Brasil é fracasso (e eu só notei isso dia 16 de março de 2016)

Fracasso. É essa a sensação que me abate, depois de uma noite mal dormida e um dia mal acordado, ainda atordoado com os acontecimentos recentes do país. Fracasso. Eu fracassei, você fracassou, eles fracassaram, nós, nós fracassamos. Ainda que o golpe encabeçado pela Rede Globo seja revertido por Lula - com apoio dos movimentos sociais e das pessoas democratas do país -, o que resta deste episódio - cuja última cartada foi o atendimento à conclamação, por parte de um casal de ventríloquos biltres e canastrões, do homem-gado e da mulher-vaca para tomar a Avenida Paulista, em louvor ao fato de um justiceiro togado ter escarrado sobre as leis do país e sobre os direitos individuais - é a certeza de que o Brasil fracassou, de que nós fracassamos. Fracassamos enquanto nação, pois, tal qual nos últimos 516 anos, uma parcela majoritária da população segue invisível aos donos do poder, que apregoam que "todos os brasileiros" estão cansados disso e daquilo. Fracassamos enquanto Estado de Direito, ao permitir que presidente da República seja grampeado por qualquer juiz de província. Fracassamos enquanto Estado de Direito também quando o judiciário - juízes, promotores, analistas, técnicos - vestem preto como a milícia de Mussolini e tiram uma foto para defender que a constituição fique à mercê do casuísmo de ocasião de um grupo de plutorepresentantes. Fracassamos enquanto Estado de Direito quando um juiz da corte suprema do país é um coronel que usa o cargo para fazer proselitismo político e demonstra tanto apreço pelas pessoas, pela Constituição e pela justiça do País quanto Franz Gurtner na Alemanha Nazista. Fracassamos. Fracassamos enquanto país capitalista, ao vivermos de fato em uma sociedade de castas, com baixíssima ascendência social à casta dos donos do poder e do dinheiro, os primeiros encrustados na burocracia do Estado, cujos cargos são hereditários (por meritocracia, claro), os segundos encrustados nas entranhas do poder, feito chopins atrás do tico-tico (e eu custo a entender porque Macunaíma matou o tico-tico), a viver de concessões públicas, rendas do Estado, quando não de pilhagem pura e simples (mas tornadas legais pelos seus representantes legislativos, claro). Fracassamos enquanto civilização, ao formarmos milhares de doutores analfabetos e absolutamente incapazes de pensar, que dirá de refletir. Fracassamos ainda mais enquanto civilização ao querermos comparar pessoas com base em seus títulos burocráticos e não em sua inteligência, competência e respeito pela coisa pública, seu respeito e seu tato com o Outro. Fracassamos enquanto democracia ao deixarmos grande parte do povo sem direito a voz. Fracassamos enquanto democracia quando parte desse povo decide falar e reivindicar e é recebido a balas de borracha, bombas de gás, cacetetes, prisões arbitrárias por uma Polícia Militar autorizada a execuções extra-judiciais pelo governador do Estado - isso quando nosso Estado Democrático de Direito não deixa essa tarefa a jagunços e pistoleiros. Fracassamos enquanto Estado quando este se mostra muito aquém do crime organizado na sensibilidade às questões sociais e à distribuição equânime da justiça. Fracassamos enquanto democracia quando a Rede Globo comete sete golpes brancos à democracia em trinta anos (para ficarmos nos escancarados, sem possibilidade de dúvidas, 1982, 1984, 1989, 1994, 1998, 2005-2012, 2014), até que se cansa e parte para o golpe aberto, com Sérgio Moro como ator principal. Fracassamos enquanto democracia quando apenas uma geração é suficiente para parte do país esquecer o horror de uma ditadura (eu e meu irmão estamos na casa dos trinta anos, nascemos na transição da ditadura para essa nossa democracia capenga, e somos obrigados a conviver com um golpe de Estado!). Fracassamos enquanto civilização ao ver os tais homens e mulheres de bem defenderem o pau-de-arara, numa completa alienação da sua própria humanidade e absurda indiferença pelo Outro. Fracassamos enquanto civilização ao não conseguirmos garantir direitos elementares aos cidadãos - nem mesmo à presidenta da República! Fracassamos de maneira retumbante enquanto Estado Democrático de Direito, enquanto civilização, enquanto nação, enquanto pátria. Temo que nosso fracasso seja tamanho que não haja qualquer possibilidade de civilidade num futuro breve. Digo isso não por vermos pais acharem lindo o filho de cinco anos escrever "morra Lula", "morra Dilma" em um trabalho de escola, não por presenciarmos pessoas sendo espancadas por estarem de vermelho, não pelas panelas batidas no anseio de calar o diferente; digo isso pelos 50 mil assassinatos anuais, pelas outras 50 mil vítimas anuais da nossa guerra sobre rodas, pelas centenas de vítimas em conflitos agrários todos os anos, pelas vítimas que sequer merecem ser transformadas em estatísticas, assassinadas em aldeias indígenas, em prisões, em autos de resistência; fracassamos ao saber que há pessoas vitimadas por serem negras, por serem mulheres, por serem pobres, por serem "nordestinas", por serem haitianas, por serem putas, por serem periféricas, por serem moradoras de rua, por serem faveladas, por serem gays, por serem trans, por serem diferentes (que o diga todos os suicidas da Unicamp).
À tarde resolvi dar uma espairecida do golpe, fui dar uma volta no centro de São Paulo - bem longe da avenida Paulista. Largo do Paissandú, 25 de Março, Zona Cerealista, Luz. Tirando na cantina onde almocei, em que o assunto passou rapidamente por uma conversa ao meu lado, não ouvi nenhuma vez os nomes de Lula, Dilma, Moro, Globo - mas soube que o Coringão ganhou e o São Paulo, não. Elogiei a moça do caixa, garota muito simpática, que esbanja vida - pouco importa quem seja o dono do butim estatal. Fiquei sem saber, mas desconfio que ali, nessa área bem "povão" de São Paulo, as preocupações são as contas a pagar, o quanto vai conseguir ganhar no fim do mês, se o rapa está vindo, se vai conseguir um lugar sentado no ônibus ou no trem, na volta para casa; se ama e se é amado; se o seu time vai ganhar o campeonato, se a crise vai ceifar seu emprego, ou "apenas" seu salário. Moro, Lula, golpe? Ali está o Brasil fracassado - nosso fracasso - que insistimos em não enxergar. A certa altura, três ambulantes gritam e fazem algazarra; não tardo a entender: tiram sarro de dois africanos que passaram por eles vestidos com roupas tradicionais (que acho muito legais, por sinal). Sem idealizações, vejo ali o Brasil fracassado, o nosso fracassamos.

Ainda assim, de fracasso em fracasso, amanhã sairei à rua, sem camisa da seleção ou a bandeira que tanto me envergonha, lutar pela democracia, pelo Estado de Direito, pelo respeito aos direitos individuais e aos direitos sociais - pelo direito desses que hoje vociferam e agridem quem pensa diferente. Porque ainda é possível que nesse golpe eles fracassem, e isso nos permita tentar corrigir os efeitos de nossa herança de fracassos.

17 de março de 2016
ps: Fracassamos ao ter como alíquota de Imposto de Renda mais alta 27,5%.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Lula na Casa Civil: a confissão do golpe

Aqueles que entoam o "não vai ter golpe" não podem estar mais enganados: a ida de Lula para a Casa Civil é a admissão velada de que há um golpe de Estado em estágio avançado.
Lula pode não ter feito faculdade - diferentemente da maioria dos cabeças do golpe em curso e dos seus apoiadores apedeutas dos bairros nobres da nação -, mas é inteligente e demonstrou isso com tudo o que aprendeu ao longo de sua vida pública. Depois de afirmar que seria candidato em 2018 (eu ainda acho que ele não queimaria seu capital político com um terceiro mandato, antes tentaria a presidência da ONU, não fosse todo o trabalho dos seus inimigos de pô-lo fora da disputa da presidência do país), assumir um cargo no governo Dilma como o fez, às pressas e sem outras mudanças de imediato, seria um suicídio eleitoral - estivéssemos nós em condições democráticas normais. Não estamos, e assumir a Casa Civil foi a forma que o ex-presidente achou para tentar garantir eleições livres em 2018 - seja para ele ou para quem for do PT (e da esquerda?) participar.
(Parênteses para meia teoria conspiratória: a impressão que se tem é que sua prisão (na Guantanamo brasileira, conforme alcunha corrente da carceragem da PF em Curitiba) era para breve, ao que se seguiria o processo de impeachment de Dilma e sua destituição do cargo, um governo tampão "de união nacional" (vulgo PMDB, PSDB e os donos da voz) até 2018, quando novas eleições correriam "normalmente", sem perigo de vitória petista - tudo feito sob a supervisão do judiciário brasileiro e da nossa Grande Imprensa, ambos de notória imparcialidade).
A nomeação de Lula para a Casa Civil foi um belo contra-golpe político: no plano interno, dá ao governo petista um alívio - pequeno e por si só insuficiente - nas negociações com o legislativo, retardando o impeachment num primeiro momento, com possibilidade de freá-lo tão logo consiga se estabelecer (Paulo Henrique Amorim fala que Lula já estaria fechado com a maioria do PMDB, e a governabilidade, garantida); no plano internacional é que seu lance é grandioso: ao entrar no governo, uma destituição da presidenta deixaria escancarado ao mundo nossas instituições de república bananeira (em pé de igualdade com nossos hermanos paraguaios, de má-lembrança), o que traria sanções ao país, além de ferir nosso orgulho nacional tão pós-moderno e ao mesmo tempo tão século XIX - visível nas manifestações de domingo ou em manifestações de tucanos ou nas manifestações tanto dos políticos do Partido Conservador quanto do Partido Liberal -, de sermos quase primeiro mundo, não fosse a maioria da população desta terra, esse populacho feio e ignorante feito de gente mestiça e pobre.
O acerto do lance de Lula ficou evidente no destempero dos principais articulistas do golpe, Moro pelo judiciário e Globo pela Grande Imprensa e partidos de oposição de direita, ao divulgar conversas da presidenta da República - um crime contra a segurança nacional. Foi a comprovação de que o golpe estava em curso e que o contra-golpe também - "Nietzche", Marx e Hegel foi a primeira tentativa destrambelhada de barrar o contra-golpe. Se a espionagem da presidenta por parte da NSA (sigilosa, não fosse o WikiLeaks) mereceu congelamento das relações brasileiras com o todo-poderoso Estados Unidos, a espionagem e divulgação de conversas privadas da Presidente da República, com claro intuito de perturbar a ordem pública - o próprio Juiz admite de que não há indícios nas conversas -, merece respostas à altura, contra o juiz, contra o Grupo Globo de comunicação (e suas concessões públicas), e demais envolvidos nessa lastimável página de nossa história. 
Como já disse em outra análise: o Brasil hoje não se divide entre petistas e anti-petistas, coxinhas e petralhas, como a Grande Imprensa tenta fazer crer (e muitos acreditam); mas entre os defensores da democracia (falha, capenga, mas ainda assim sob o manto do direito e com possibilidades de aprimoramentos) e de uma ditadura com fortes traços fascistas.


PS: na CBN ouço da manifestação em Brasília, acompanhada pela PM e pelo exército. Desde a tentativa de locaute dos caminhoneiros, ano passado, tenho achado que o que o Exército mais quer é ter que entrar no jogo, garantindo a normalidade institucional ao obedecer as ordens das presidenta, e poder cobrar a fatura com o fim de Comissão da Verdade qualquer coisa relacionada ao período em que eles encabeçaram a ditadura nestes Tristes Trópicos - aplaudidos, diga-se de passagem, pelos mesmos que hoje aplaudem Gilmar Mendes, Sérgio Moro e seu jagunços.

PS2: é hora de Lula rever o documentário da BBC "Além do Cidadão Kane" (Beyond Citizen Kane), de Simon Hargo, em que um então político de esquerda homônimo ao ministro da Casa Civil falava do imperativo em se romper com o monopólio da comunicação do país, sob o risco de nossa democracia nunca poder triunfar por completo [http://j.mp/1XwkfRC].

16 de março de 2016.