terça-feira, 2 de agosto de 2016

O epitáfio de nossa humanidade [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

O que esperar de um espetáculo que faz o Elogio de Guerra, como o apresentado pela Compañia Hombrebuho, vinda da Colômbia famosa por tanto conflitos armados? Tiros, mortes, desespero, a dificuldade em seguir vivo diante da ameaça de tanta tecnologia de morte e destruição? O que há de se elogiar na guerra?
Yenzer Pinilla García nos convida, contudo, a se desfazer do imediato como forma de compreender o que se passa diante de nós - seja o espetáculo a que assistimos, seja o mundo em que vivemos. O título é uma metacrítica sutil e feliz: se hoje elogio é sinônimo de louvor, a origem da palavra remete a epitáfio (do latim elogium) ou a palavras (do grego λογιον). E é isso que o artista faz em cena: uma seqüência de palavras em tom de palestra - longe de qualquer empostação teatral -, com a qual elenca aquilo que o encaminha para a morte da sua própria humanidade, derrotada por uma guerra em que a tanatotecnologia é feita não de destruição imediata, mas de falsos positivos - a começar pela hipocrisia dos laços sociais, incapazes de sustentar qualquer subjetividade. Discurso feito por um sujeito presente, consciente de si, de seu corpo e suas potencialidades - representado na sua grande habilidade corporal do artista, que faz parecer simples e fácil a gama de movimentos e o domínio da gravidade que possui -, mas que tenta se identificar com a própria sombra. 
Elogio da Guerra é feito, portanto, de um discurso humano (racional) em um corpo humano (para além do racional), arruinados por uma sociedade (anti) humana, excessivamente racional. Corpo palavra razão - λογος σομα - são subjugados a uma racionalidade heterônoma ao sujeito: em nenhum momento o intérprete consegue ser por completo: surgido da queda, imerso nos laços sociais que herdou de nossos antepassados, ele não se enxerga que não em fragmentos, e se desarticula, se desfaz do que sequer chegou a ser - mas parece ter vislumbrado em algum momento do passado como possibilidade (talvez ideal) -, a ponto de colapsar, primeiro como uma falha de imagem-espetáculo, até se ver robotizado e reificado, alheio a si próprio: "Estou sempre seguindo em vez de ir para onde quero ir”, diz, ao fim, um corpo humano de gestos mecânicos. 
Saio da Olido rumo à minha casa, que no dia seguinte preciso seguir com a vida produtiva que me faz parecer alguém.

02 de agosto de 2016



domingo, 24 de julho de 2016

Sujeitos-ruína [Diálogos com o teatro]

Diante de um rio que não mais existe - engolido por uma serpente de asfalto onde noite e dia rugem máquinas abastecidas com a decomposição de tempos imemoriais -, em um cenário que emerge dos destroços de uma vila, ela própria erigida com os escombros de um antigo teatro de São Paulo - esta cidade que hoje habito, feita das ruínas de muitas São Paulos em que mal se vêem vestígios, afogadas pelo novo-logo-velho movido pela força da grana -, ouço histórias de fugitivos de um país onde negros tiveram o desejo de direitos brancos e vêem gerações e gerações pagarem com penar equivalente à escravidão da qual se livraram a audácia de tentarem romper com a maldição européia que recai sobre a cor de sua pele. Fragmentos de vidas, pedaços de sonhos, restos de esperanças. A busca de algum espírito ancestral a guiar uma vida nova nesta cidade que perece dos mesmos velhos males sob roupagem pós-moderna. Pessoas que almejam o direito de ser e existir, quem sabe até ser feliz - por ora, tratados como escória ou algo pior. Da platéia acreditamos sermos pessoas integrais, acreditamos estar à salvo de sermos sujeitos só em parte - até nos avisarem que somos tão-somente o sonho de um personagem (uma hora perceberemos que somos pouco mais que parafusos da máquina que nos mói em nossa humanidade?). O Haiti é aqui - se soubéssemos entender para além das palavras o que falam tantos Louis, Marie, François, Matine, que aqui fincam a bandeira da esperança; se déssemos atenção ao que nos dizem Joões e Marias, fugidos e filhos de fugitivos das periferias destes Tristes Trópicos que buscam abrigo nas periferias da cidade. Metalinguísticamente, Cidade Vodu, da Teatro de Narradores, se perde entre duas dramaturgias que têm dificuldade em dialogar, se harmonizar, se entender. Seguimos separados, corroídos por algo que não sabemos o que é. Tal qual migrantes e imigrantes mal-vindos e recusados, tal qual pretos pobres periféricos enxotados a gritos a tiros e autos-de-resistência, somos sujeitos-ruína sobrevivendo numa pós-modernidade hostil à vida, assistimos à decomposição de nossa própria humanidade - não nos damos conta de que não é a cidade quem morre. Ainda assim, recuso Kafka: há esperança - até mesmo para nós: Cidade Vodu é a mostra que alguns ainda lutamos pelo sonho de um futuro feito de sujeitos plenos, necessário à nossa própria completude.

24 de julho de 2016.


PS: Texto brotado com muito atraso - havia assistido à peça em abril - e ao acaso, enquanto eu refletia sobre o espetáculo O Grito, de Marcos Abranches. A se pensar o caminho que levou de um a outro.