quarta-feira, 5 de abril de 2023

Má Influência [por Sérgio S., ex-Trezenhum Humor Sem Graça]

Quando somos crianças e adolescentes os pais sempre temem as temidas* más influências que nos cercam. Em geral, escolhe-se por má influência alguém próximo: um amigo, um vizinho, um primo, um colega - ainda que atualmente estejam ampliando esse círculo e incluindo professores, esses comunistas que querem receber salário, ao invés de trabalhar por amor -, o que me faz pensar que é muito mais a busca de um bode expiatório, de um judas para malhar, que de fato de uma má influência. 

Curiosamente, para os pais nunca a má influência é o seu próprio filho - no máximo ele está uma má influência temporária por influência de uma verdadeira má influência, cujos pais negam a condição de má influência verdadeira e vão atribuir a filho de outrem, e assim até chegar ao primeiro motor do mundo, se formos levar às últimas consequências (o que soa até razoável, se se pensar friamente).

Meus pais, claro, nunca acharam que eu fosse uma má influência. E não só eles: criança tímida, quieta, retraída, eu era tido como a boa influência por professores e pais de amigos, como se fosse positivo uma criança ser apática - e óbvio que nenhum deles desconfiava que quem dava as ideias das traquinagens inocentes feitas pelos amiguinhos e colegas, e que lhes custava sermões e castigos (e até mesmo a fama de má influências), fosse eu.

O que eu definitivamente não esperava era que depois de velho me transformaria em uma reconhecida má influência. E descubro que isso tem um agravante: com a idade que tenho, não há como atribuir apenas um estado momentâneo de má influência, cuja origem de fato seria de algum colega - até porque fazer esse tipo de ilação é de responsabilidade dos pais, e os meus já me conhecem o suficiente para não me defender em situações do tipo.

Quem me avisou desse meu novo estatuto foi Macedo, meu nobre colega, que tal qual uma criança com medo dos pais vetarem encontrar com um amiguinho tido por uma má influência, avisou que não contaria minha “aventura” para a senhora Maceda, sua companheira (sim, muitas aspas para essa aventura).

Tanto a senhora Maceda quanto Macedo, meu nobre colega, são duas pessoas muito organizadas e muito compenetradas no trabalho. Inclusive, Macedo, meu nobre colega, sempre foi visto como uma boa influência pelos chefes que já passaram pelo setor. Tentamos - eu e Meirelles, outra nobre colega cuja apresentação fica para uma outra crônica -, dissuadi-lo de todo esse rigor: explicamos que isto não é uma empresa japonesa e o método 5S estava um pouco démodé (mais, inclusive, que falar démodé); que trabalhar direito é uma coisa, mas quando se torna um golden boy para os chefes é sinal de que se está fazendo algo de muito errado. Ele se dizia tocado, mas não mudava - até apelarmos para as palavras do Capirotinho** e ele começar a entender como funciona a "desvida laboral" (ou seria antivida?).

Assumo que eu também tenho minha fama de organizado no trabalho: minha caixa de e-mail (corporativo) já arrancou suspiros de vários colegas, e meu SGBD para contatos do whatsapp chega a assustar pessoas desavisadas. Em suma: essa minha organização causa inveja (e preguiça) de meus colegas, inclusive do Macedo. E fiquei com a fama.

É quando chegou a hora de organizar minhas férias - esse momento em que, apesar de ser parte do trabalho, eu trato como se fosse pertencente a minha vida pessoal.

Estou eu cá, a uma semana de sair de férias e embarcar rumo ao exterior, quando comento com ele que preciso decidir o roteiro e comprar logo a passagem de volta, antes que aumente o valor. Ele me olha embasbacado: “você não viaja semana que vem?”. “Sim”. E explico que já tenho estresse demais no trabalho e me falta energia para arranjar esse estresse extra de planejar as férias em detalhes: sei quando saio, sei para onde vou (quer dizer, tenho algumas ideias de onde ir, talvez), preciso decidir quando volto. 

“Você vai sem planejar?”, ele quase se exaspera, larga os talheres para pegar o celular. Comento a definição do nobre colega Goreti, que achei muito oportuna: “é tudo planejado, mas com planejamento em tempo real”.

Do celular ele me mostra a tabela de férias que estão planejando (ele sai de férias quando eu voltar): uma linda planilha colorida, divididas quase que por horas, com tempos dos trajetos, pontos a serem visitados, o número das reservas dos vôos e hotéis. Agora é minha vez de me embasbacar: uma agência de viagens para classe média não tem nem 10% desse esmero - talvez uma empresa especializada em ricaços.

Se eu consigo entender o jeito dele, ele segue com dificuldades para entender o meu: “Você ao menos sabe que cidades vai visitar?”. “Planejamento em tempo real, Macedo! Nem ideia, por isso ainda não consegui decidir quando volto: se do sul eu for para o centro do país ou direto para o norte, duas semanas dão conta; se eu decidir passar por cidades das três regiões, seria bom ficar uma semana a mais”. “E as passagens?”. “Compro na hora que decidir”. “E que horas você vai decidir, se viaja semana que vem?”. “No momento oportuno”, respondo - e me foge usar o termo em grego clássico, καιρος, pra tentar dar um ar erudito (atenção, não confundam com o uso moderno do termo, com o qual a Maju despontou). Talvez esse verniz erudito tivesse feito ele repensar o que disse a seguir: “É... definitivamente é melhor eu não contar isso pra senhora Maceda”. O tom não deixou dúvidas: eu havia me transformado em uma má influência - e para além dos chefes. Ainda tentei consertar com uma tabela quase igual à deles, feito no final do horário de almoço, mas não fui convicente: sou oficialmente uma má influência, cujos companheiros e companheiras dos meus colegas fazem o lugar dos pais e me olham de soslaio, até mesmo duvidando que meu SGBD de whatsapp seja verdadeiro.



Reparem que minha tabela é muito mais colorida e bonita e prática



05 de abril de 2023


* Não estou sendo redundante, isto é influência (má, talvez) da língua de Sócrates (o filósofo, morto por ser uma má influência, ainda que o futebolista também tenha sido considerado como tal)

** Para isso usamos o Manifesto proletário.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

domingo, 5 de março de 2023

A Quinta de San Pedro Alejandrino

Fazer uma viagem com "planejamento em tempo real" tem seus problemas, seus percalços, pontos interessantes que se deixa de visitar, trajetos não muito espertos, gastos desnecessários, mas também abre oportunidade para ir a programas que não se imaginava, não estavam nos planos, e não raro acabam ficando entre os mais interessantes. 

Em 2006, quando fiz um mochilão pela Patagônia com meu irmão, também com planejamento em tempo real - ainda que com noção do que queríamos ver e aonde ir -, não conseguimos ir até Ushuaia (passagem só para dali uma semana), nem subir a Ruta 40 e visitar a Cueva de las manos (muito caro), mas em compensação fomos até El Chaltén, que se hoje é um programa consagrado, então era bem alternativo, sequer constava no guia que havíamos comprado (que sugeria bizarramente Trelew e Puerto Deseado, em compensação), e cuja estrada que levava até a cidade sequer era asfaltada - e uma das coisas que me agradou foi poder fazer as trilhas sem guia, no ritmo que queríamos, inclusive saindo um tanto do caminho, pra ir assistir ao sol se pôr por trás dos Andes enquanto tomávamos mate.

Nesta minha viagem à Colômbia, acabei vindo até "la zona costera". Em Santa Marta, haviam me dito das praias, em especial de Tayrona. Soube apenas quando passei por uma das praias da reserva, que só se chega de barco e possui apenas um hotel simples como atração, que era possível se hospedar ali. Um passeio que muito me interessava era o da chamada Cidade Perdida, mas exige um tempo que não tinha (além dos valores). 

No primeiro dia fiz o passeio mais básico, até a praia de San Juan, em que ganhei belas queimaduras de sol pelo corpo - e que me fez admitir que praia não é mesmo a minha praia (talvez as muito vazias, como a que falei acima), que eu gosto é de morro e trilha, ou então cidade. 

No segundo dia, até por não ter condições de ficar lagarteando ao sol, pedi indicação à dona do hotel onde estou hospedado, que me recomendou La Quinta San Pedro Alejandrino, a uma hora de ônibus dali, longe do centro de Santa Marta, da praia, perto da "rodoviária" e de dois shoppings centers. Não sei por quê, se preguiça ou pressa de sair, não pesquisei o que havia em tal quinta. Apenas fui, e cada vez mais arrependido conforme a viagem no ônibus urbano (que os colombianos chamam de "buceta", para delírio da quinta série B) se demorava e se afastava do que parecia ser mais turístico. Ao chegar, uma entrada simples e do outro lado da rua um shopping. Um parque de vegetação ressequida? Ou teria ela me indicado o shopping?! 

Descubro que preciso pagar a entrada. Recuso um guia, com medo de que me cobrem (mas tenho a impressão de que não é o caso) e também de ter que seguir um roteiro muito definido. As placas indicam o suficiente: é um antiga fazenda de cana, iniciada em 1608, que produzia rum. Estão lá a "Bagacera", o "Trapiche", a "Destilería" e o "Sótano" (cuidado com mais esse falso cognato, sótano é porão, cova) para a produção do rum, assim como a casa da fazenda, "la casa Quinta" - pelo visto, o local de morada dos escravos, e talvez mesmo dos serviçais, não foi preservada, tão ao gosto das nossas elites, de apagar o trabalhador da história. 

Certo, interessante a fazenda, ainda que se perceba que a conservação não é dos edifícios do século XVI, tais quais eram - até porque como foi utilizada por mais de duzentos anos, é de se imaginar melhorias e não sua preservação para comemorações futuras de um estado nacional que sequer existia. Na verdade, descubro depois, estaria bastante próxima do que era em 1830. 

É meio dia, o calor é intenso, abafado, a respiração fica pesada, estou com sede; as construções são interessantes e o trajeto no sol entre elas (devidamente vestido) faz minhas queimaduras do dia anterior arderem. Ainda que La hojarasca, do García Márquez* se passe num ambiente urbano (se minha memória não me trai, li o livro em fins de 2004), me impressiono capacidade de ele descrever esse calor que ali me pesa - e não é a primeira vez, há um calor muito específico que ele retrata no livro, que não me parece ser apenas Colombiano (talvez eu esteja lembrando de quando fui à Venezuela, o que nega minha afirmação anterior, já que seria a Gran Colombia).

Noto adiante construções brancas, em estilo clássico grego - saberei logo mais que uma é o memorial da pátria, de 1930, a outra, o Museu de Arte Contemporânea, já do fim do século XX. O contraste das construções da antiga fazenda com aquele branco tão clássico e monumental, e com uma estátua no meio do caminho, também ela branca, ainda por cima, num dia quente, muito quente, e pesado, com uma vegetação que parece de clima mais seco (fora algumas árvores maiores), quase sem nenhuma pessoa circulando, me faz ver um De Chirico na cena - faltou apenas o sol estar se pondo, talvez um trem no horizonte. Todo o ambiente é de um surrealismo melancólico, uma espécie de abandono que não é mal conservação, é algo mais profundo, de um vazio de quando falta o essencial - e isso já faz eu achar que valeu o passeio.

Na casa da Quinta, algumas salas dedicadas à independência do país e aos eventos de 1930. Até aí, interessante, mas nada demais. O cômodo seguinte que visito é o banheiro, com móveis luxuosos. O próximo, o quarto, e acima da cama, uma placa indica que ali foi dado o último suspiro do libertador da pátria, em 17 de dezembro de 1830. É nessa hora que entendo a importância do lugar e, mais que isso, é nessa hora que entendo que estou no meio do cenário de El general en su laberinto, também do Gabo! A partir de então tudo adquire muito mais mágica, me vejo encontrando trajetos esquecidos nos labirintos de minhas leituras e lembranças.

Primeiro que me surpreendo de ser ali o fim da vida de Bolívar. Na leitura, eu imaginava ele percorrendo a amazônia colombiana para chegar ao Pacífico (puro desconhecimento histórico e geográfico). Segundo, me arrependo de não ter relido o livro para a viagem (até aí, como eu ia saber, se Santa Marta só apareceu como possibilidade de destino quatro dias antes de eu chegar?).

E como em Cartagena de las Índias, me ponho a imaginar as cenas relatadas pelo livro - mas desta feita é um livro bem específico, e não um García Márquez genérico imaginado por mim. E tal qual na capital de Bolívar, me surpreendo como tudo parece tão óbvio de ser escrito, que Gabo não teria tido mais que o trabalho de pôr em palavras aquilo que via, sentia e imaginava. Sim, me repito com relação a meu texto sobre Cartagena. E me repito também ao dizer que a Quinta de San Pedro Alejandrino é que se tornou óbvia por causa do escritor, e não o contrário.

É no final da visita que vejo uma placa avisando das árvores centenárias defronte a casa, volto para observá-las. Elas já estavam ali quando Simón Bolívar chegou à fazenda, em 6 de dezembro de 1830. Nelas teria ele armado sua rede. Isso me faz desconfiar como Gabo conseguiu relatar com tanta qualidade o general em seu labirinto, em seus últimos dias de vida: talvez tenha sido uma delas a lhe cochichar a história.



05 de março de 2023


* Como já comentei na crônica anterior: não sabia que García Márquez era da região.