segunda-feira, 15 de abril de 2024

Tilt Test e crise no setor [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Estamos em crise aqui no setor - e não é nada relacionado ao trabalho. Até porque se fôssemos ficar mal ou em crise por conta de nossa labuta, só sairíamos da cama para pular da janela - ainda que meus colegas me julguem um pouco exagerado nessa minha colocação. Assumo que pode ser, mas pedir o boné não parece uma alternativa viável no momento, em que rareiam empregos similares ao atual e não me anima a ideia de morrer de fome. Goreti sugeriu o Onlyfans, muita gente diz que dá bastante dinheiro, mas não acho que seja para nenhum de nós bombar nessa rede social - sem falar que é aquela: são quantos milhares de produtores de conteúdo para cada um que faz sucesso?

Enfim, a crise se deu por conta do Tilt Test, relatado em minha última crônica. Mais especificamente, a quem escolhi como acompanhante para o exame. Ou melhor, por não ter escolhido os demais para serem meu acompanhante no exame - exceção feita ao Desembargador, que sairia de férias dali dois dias e tinha que deixar alguns quiproquós em dia, para poder voltar na maciota. 

Notei que Carnegie andava um tanto lacônico e parecia arredio para com minha pessoa. Primeiro achei que fosse da minha cabeça, mas como seguia nessa toada, resolvi perguntar ao Macedo o que teria acontecido com nosso nobre colega.

Não conta para ninguém, mas ficou um climão, um ciúmes geral de você ter me chamado para ser seu acompanhante.

Mas que raios de ciúmes é esse?

Foi um turno inteiro que pude descansar, pôr minhas leituras em dia, sendo que eu tinha sido o último a sair de férias.

Eu te chamei porque você mora do lado do local do exame!

Sim, levantei essa hipótese para eles...

Eles?!

Ah, sim, você não notou nada de diferente com Meireles e Goreti?

Notei, mas achei que não fosse nada.

Eles aceitaram mais de boa o argumento da proximidade da minha morada, o Carnegie segue chateado, enciumado.

Em particular, conversei com Carnegie, que negou qualquer incômodo e disse que eu quem via coisas. Mais tarde, convoquei os colegas para uma reunião no bar, na sexta, para decidirmos critérios de escolha ou mesmo uma escala de acompanhantes para exames futuros no setor - e ele foi um dos mais entusiasmados com o tópico. Sinto que não foi sincero comigo ao se dizer de boa.


15 de abril de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sábado, 13 de abril de 2024

Nós, Cidadãos-Medusa [Diálogos com o teatro]

“Medusa, me transforme em pedra e me use”, grita o ator, pintado de prata. Uma forma de gritar mais forte a desumanização sofrida pelas pessoas que vivem na região central de São Paulo conhecida como Cracolândia. "Cracudos", "nóias", "zumbis das drogas" são termos que corriqueiramente se usa (muitas vezes em tom de piada em conversas de amigos, a mostrar a seriedade com que se olha para essa questão) para destituir essas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade de sua humanidade, para não ver nesses outros a mesma matéria que nos constitui, para não ver nessas vidas a culminância do nosso modo de vida - nosso quotidiano louvor do capital que tem como “externalidade negativa” de todo o ouro reluzente o prata aquecido em cachimbos improvisados. Com quantas pedras de crack se faz uma carreira de cocaína na Faria Lima?

Porém, Cena Ouro - Epide(r)mias, da Cia Munguzá, mais que denúncia de desumanização sofrida pelos usuários de crack da região, vem nos mostrar que essa desumanização também nos afeta. E o faz nos mostrando um pouco de algumas vidas que habitam a região. Histórias de pessoas, de vidas comuns, como a minha, como a sua que lê este texto, com diferenças dadas antes pela classe social, cor e gênero que pelo uso mesmo da droga. É nessas histórias de vida que vem a verdadeira denúncia da desumanização: a nossa própria, feita da nossa cegueira, do nosso preconceito, do nosso egoísmo, da nossa resistência ao assumir que a condição daquelas pessoas nos tem como corresponsáveis.

Na ótima tessitura do texto, ao dar vez e voz a seis personagens da região, o espetáculo permite que nos miremos também no espelho - quem sabe mesmo não nos mobilize a de fato mudar esse estado de coisas, ao invés de simplesmente aplaudir ao cabo. 

Afinal, somos nós a Medusa a quem o ator evoca, somos nós quem petrificados essas pessoas, que as estigmatizamos, que tornamos em pedra esses corpos - sequer a personificação do crack, antes uma metonímia, a própria droga. Pergunto aos meus concidadãos-Medusa: depois de reduzi-las a pedras, o que temos feito com elas?


12 de abril de 2024


PS: Aos que não puderam assistir ao espetáculo, há um podcast com a história em mais detalhes das pessoas frequentadoras da região envolvidas na peça: https://youtube.com/playlist?list=PLUNX2xPu9iqvxUVDriu77rIfsM7rt1CL9&si=4vJK11vvGJVTAVoG